A ciência da vida e a ciência da morte

Existe uma ciência da vida e uma ciência da morte. A ciência moderna se afirmou no combate ao obscurantismo, à religião como única explicação do mundo. Mas o método indutivo da ciência moderna era claramente limitado, bem como a tentativa de se utilizar os modelos das ciências naturais para as ciências humanas, um erro grosseiro, mas compreensível na infância da ciência moderna. A ciência contemporânea, no entanto, faz parte das forças destrutivas do imperialismo. A ciência é parte da totalidade social. A ciência moderna surge no período do capitalismo de livre concorrência, do capitalismo industrial. A ciência contemporânea é a ciência da época do capitalismo monopolista, do capitalismo financeiro, é a ciência da era do imperialismo e do totalitarismo. A mistificação da ciência serve aos interesses da classe dominante. Tudo deve ser passível de crítica, essa é uma exigência da razão. As classes dominantes de todas as épocas sempre pretenderam transformar o seu discurso dominante em algo que não pode e não deve ser criticado. Foi assim na Antiguidade e na Idade Média, quando a mitologia e a religião serviam de legitimação da dominação social. A filosofia também tem funcionado como instrumento de legitimação da ordem, principalmente a partir do surgimento da burguesia, sendo o liberalismo a maior expressão da filosofia como ferramenta de legitimação política. O Iluminismo marcou uma mudança na filosofia, que deixou de ser o tribunal crítico do mundo e se tornou uma ferramenta de construção e de sustentação da ordem burguesa e capitalista. A partir do século XIX, a filosofia cede lugar à ciência como mecanismo de dominação ideológica. Mas essa ciência ainda guardava uma importante virtude: assim como o Iluminismo no seu início serviu para enterrar o Antigo Regime, o feudalismo, o absolutismo, o escravismo, a ciência do século XVII ao século XIX promovia um impulso ao conhecimento sem precedentes e promovia também a ampliação da vida, especialmente com os avanços da Medicina. No entanto, mesmo com as melhorias na qualidade de vida e o aumento da expectativa de vida, bem como um desenvolvimento tecnológico que transformou o que era ficção científica em realidade, a ciência contemporânea, atrelada à tecnologia e à racionalidade instrumental, dissemina o mito de que tudo o que se deseja pode ser transformado em realidade, acaba com qualquer perspectiva de sublimação, reduz o papel cognitivo da arte, que deixa de ser expressão da tragédia humana e se torna mero entretenimento vazio, e o papel progressivo da política, que deixa de ser uma ferramenta de transformação social ou de expressão de uma existência ética, de uma vida que se realidade na comunidade, para se tornar um instrumento científico e prático das burocracias partidárias e estatais e refém de uma tecnocracia que domina o Estado; o mito da ciência contemporânea é que tudo se reduz a uma questão técnica. A felicidade e a liberdade são questões técnicas. Quanto mais tecnologia, mais livre e feliz será o homem. Numa época de totalitarismo, com campos de concentração e líderes autoritários e partidos únicos no poder, e depois com o novo totalitarismo, de uma democracia de massas com Estados dominados por tecnocratas e uma sólida indústria cultural, não é possível falar em liberdade verdadeira. A ciência da morte, que faz da ciência mais do que a mais importante força produtiva da atualidade, mas uma força destrutiva, se evidencia na energia nuclear e na ilusão de que é possível controlar o átomo (nós podemos conhecer o átomo e o universo, mas achar que é possível conter uma das forças mais poderosas do universo, de que é possível controlar a radioatividade na medida em que acidentes ocorram, impedir que a fissão nuclear desencadeada saia do controle é de uma arrogância tremenda e algo que os acidentes com usinas nucleares já mostraram ser falso), a energia atômica também pode ser usada na construção de armas de destruição em massa e o terror que isso pode causar foi visto na Segunda Guerra. Também é um limite para o progresso histórico, já que a classe dominante no poder hoje pode defender sua posição de dominação ameaçando a existência da humanidade inteira, limitando as possibilidades de uma revolução final vitoriosa contra os imperialistas. A genética é outra área da ciência que deveria ser usada exclusivamente e com muitos cuidados para a pesquisa, para a obtenção do conhecimento, mas não para a prática. O impulso dado pelos nazistas à genética demonstra até que ponto esse conhecimento pode ser usado para o terror e é de uma ingenuidade imensa achar que num mundo em que poucos controlam a produção e a produção de conhecimento (e esses poucos estão numa relação de extrema alienação com o resto da humanidade) é possível utilizar para o bem um conhecimento como esse. A genética já está sendo utilizada para a constituição de bancos de dados com o DNA daqueles que são presos no EUA e essa medida também foi aprovada no Brasil e isso dá um poder totalitário aos governos. Os transgênicos e o uso de agrotóxicos aumentam a produtividade e a lucratividade da agricultura mas ameaçam a natureza e a saúde das pessoas. Essa ciência da morte, atrelada aos interesses dominantes, deve ser combatida. A ciência como instrumento de ampliação do conhecimento, da inteligência e da razão humanas não tem uma aplicação necessariamente prática. A ciência é uma tarefa do pensamento, assim como a filosofia, e não necessariamente da prática, a não ser naquilo em que realmente se é capaz de controlar e que não tenha severas implicações para a existência da vida. O homem começa sua odisseia na Terra dominado pela natureza, oprimido por ela, com medo das feras, da noite e das intempéries. A solução da inteligência humana para esse problema prático foi a dominação da natureza. Essa dominação se deu pelo trabalho, pela transformação da natureza, pela humanização da natureza, pela transformação da natureza em seu objeto e esse processo histórico que deu origem à humanidade fez da sua realização pelo trabalho (como ato de transformar a natureza) em sua condição ontológica. O ser do homem é definido pelo trabalho e pela linguagem, pelo trabalho e pela interação social, o homem é um ser social. Mas também é um ser natural e a alienação do homem em relação à natureza, uma alienação necessária para a sua sobrevivência, gerou a divisão social do trabalho e a exploração do homem pelo homem, e o fim da exploração não deve ter como consequência uma dominação maior da natureza, mas a dominação racional da natureza e o retorno do homem a si mesmo (um retorno que é uma síntese, o retorno de um homem transformado e, portanto, mais livre) deve ser a recuperação da unidade entre homem e natureza. Assim, se o homem começa oprimido pela natureza e depois se torna o seu conquistador, domina a natureza, com as forças produtivas existentes hoje (e outras que deverão surgir numa nova ordem social, que estejam mais de acordo com uma produtividade racional, que garanta o essencial para o bem-estar social e para a autorrealização pessoal, mas que acabe com a produção do supérfluo, com a produção para o desperdício e para o lucro) e na medida em que se constituam relações de produção livres da exploração, numa democracia direta de indivíduos produtores, o homem poderá encontrar a harmonia com a natureza. A harmonização do homem com a natureza, a naturalização do homem e a humanização da natureza, ao mesmo tempo, diferente do que se deu no passado, em que o homem saiu do seu estado "natural" para uma vida artificial e transformou a natureza selvagem e caótica em natureza humanizada e controlada. E nesse processo, a ciência deve ser novamente um instrumento da razão e da verdade e não um instrumento da dominação e da destruição, mas num nível superior, com novos métodos (hoje os métodos dedutivo, comparativo e dialético mostraram-se muito superiores ao método indutivo, que na sua versão estatística, une a indução e a matemática para mistificar a realidade de forma pseudocientífica; é importante ressaltar que o método indutivo e a estatística podem e devem ser utilizadas, mas como forma de confirmação de uma teoria e de uma pesquisa que parta do geral para o particular e do uso de analogias na investigação científica, integrando ainda a negação do que se afirma em hipótese ou na realidade para a comprovação da verdade e produção de novas sínteses e novas perspectivas, hipóteses, respostas). Com uma ciência mais preocupada com a verdade do que com objetivos práticos, mais próxima da filosofia do que da tecnologia, é possível que a arte e a política recuperem sua relevância social e a função cognitiva da arte possibilite à humanidade numa sociedade democrática a universalização dos valores mais elevados da humanidade para todos os seus membros e o lugar da imaginação, da fantasia, seja restituído de sua importância. O valor terapêutico da arte não está no ato de pintar e de expressar o vazio da existência do homem contemporâneo, mas no enriquecimento do homem para a compreensão do destino trágico da existência individual ao mesmo tempo que a possibilidade de felicidade e de liberdade que residem no futuro, na utopia, que não pode se realizar por decreto, mas que pode ser experimentada nas ações do homem em sua direção e na modificação interna desse homem que caminha com um objetivo pessoal maior, a serviço de sua própria felicidade mas também da felicidade de toda a humanidade, sem jamais abdicar da liberdade de criar e criticar. A vida que existe no sofrimento e na dor, que caminha inevitavelmente em direção à morte, é a mesma vida que aprecia e que cria a beleza e que se esforça na busca da liberdade e da felicidade, mas somente homens que não são amputados, mutilados, homens livres podem encarar a tragédia da vida não com resignação, mas com coragem, não se submetendo inteiramente a poderes externos a ele, mas buscando o espaço de autonomia que é possível nessa vida, sem, no entanto, alimentar a ilusão, uma ilusão fruto da insegurança e do medo, de que é possível controlar tudo e ser totalmente autônomo e senhor de todas as suas decisões. As escolhas que fazemos são condicionadas pelo nosso destino pessoal e pelo destino geral de toda a humanidade, estão restritas ao pequeno espaço de liberdade deixado pelo passado, pois somos produto das ações e omissões das gerações passadas e pelas ações dos nossos contemporâneos. Ressalvados esses limites, as escolhas existem, mesmo com a manipulação (existem escolhas manipuladas também) e são elas que dão o conteúdo ético da nossa práxis. A margem de escolha existente determina o bem e o mal que se expressa nas ações dos homens e é essa margem que permite o julgamento moral dos homens por outros homens, pelos que se foram, pelos que aqui estão e pelos que virão.