Ruminações (pseudo)filosóficas sobre a diferença entre destino e livre-arbítrio

Procurar entender mais sobre a diferença entre destino e livre-arbítrio é procurar entender mais sobre em que base estão alicerçadas as nossas noções de liberdade e responsabilidade na contemporaneidade.

O destino é tido como um acontecimento inexorável, uma fatalidade, uma finalidade objetiva que deve necessariamente acontecer. Por sua vez, o livre-arbítrio é tido como a capacidade do homem decidir, em função da própria vontade, o que ele faz e quem ele é.

É importante dizer que não existe um livre-arbítrio absoluto, pois o homem é parcialmente determinado por inúmeras causas – como as biológicas, as psicológicas ou as econômicas, por exemplo. Nesse sentido, consideramos equivocada a tese de um livre-arbítrio absoluto, assim como consideramos equivocado o pensamento de algumas pessoas que consideram que alguns acontecimentos de ordem natural ou mesmo que alguns entes abstratos são absolutamente determinantes sobre aquilo que o homem é ou no que ele poderá vir a ser algum dia.

É possível percebermos a evolução da nossa noção de liberdade e responsabilidade humanas justamente quando percebemos como a humanidade foi gradualmente se distanciando de uma noção de que entes abstratos determinam de modo quase místico os rumos dos acontecimentos humanos e passamos a considerar que o homem pode, mesmo que parcialmente, se responsabilizar pelos rumos dos acontecimentos que lhe acometem mais ou menos de acordo com a sua vontade.

Exemplificando o que eu quero dizer, quando lemos ou assistimos a uma tragédia grega como a do Édipo Rei, podemos perceber que a noção de destino, enquanto ente abstrato que determina de modo absoluto os acontecimentos humanos, se faz presente de modo absolutamente inexorável. Neste caso, o destino é totalmente responsável por encaminhar os rumos dos acontecimentos humanos, e caberá ao homem unicamente se conformar pelo que lhe ocorreu, pois em termos objetivos e subjetivos não haveria como o homem evitar a fatalidade que lhe estava destinada a acontecer.

Pois foi com o advento do cristianismo que essa noção de que o homem é apenas um sujeito determinado pelo destino, que não pode ser protagonista ativo pelo que lhe acontece de modo objetivo e subjetivo, tornou-se enfraquecida.

Ainda persistiu na visão de mundo cristã a existência de um ente abstrato que tem o poder de determinar o destino dos homens de modo absoluto e, de certo modo, inexorável. Entretanto, com o surgimento da noção do livre-arbítrio cristão, o homem passou a ter que se responsabilizar por tudo o que acontecesse em sua vida. Se algo de bom lhe aconteceu, é porque ele deve estar sendo um bom cristão, e, portanto, Deus permitiu que ele fosse beneficiado pela sua vontade divina – como se agora a vontade de Deus fosse aquilo que antes entendíamos como destino. E se algo de ruim lhe aconteceu, isto ocorreu porque ele não deve estar sendo um bom cristão, e é essencial que ele examine a sua consciência a fim de encontrar o motivo que lhe torna culpado diante de Deus, a fim de buscar a expiação de sua culpa através da confissão dos seus pecados e do perdão divino proporcionado unicamente por Deus.

Já no fim da Idade Média, em plena aurora do Renascimento, começa a propagação de uma grande fundamentação racional sobre a essência dos os acontecimentos humanos, que culmina numa noção de responsabilização maior pelas nossas escolhas, assim como culmina num desejo de maior liberdade para termos o direito de fazer escolhas, de preferência pautadas nos valores do Humanismo.

O Humanismo provocou uma mudança radical de visão de mundo em comparação com o período que o precedeu. Com o Humanismo, a nível metafísico, modificou-se a perspectiva humana de viés teocêntrico e adotou-se cada vez mais uma visão de mundo antropocêntrica, que buscava uma explicação racional para todas as coisas.

Em termos práticos, isso quer dizer que independentemente da existência ou não de Deus, com o Humanismo o homem passou a ser o centro de todas as coisas, sendo inclusive capaz de determinar os rumos do seu destino, pois ele é livre para fazer escolhas para si e é responsável de modo direto e indireto pela sua liberdade e pela manutenção da liberdade dos outros seres humanos.

Retomando um exemplo literário, quando uma tragédia grega como a do Édipo Rei era encenada, era explícito que o destino, enquanto ente abstrato, determinava de modo absoluto os acontecimentos humanos de modo inexorável. A partir do Renascimento e da mudança radical de visão de mundo proporcionada pelo Humanismo, o homem se tornou o centro dos eventos trágicos da sua vida e passou a ser o responsável direto ou indireto pelas tragédias que recaem sobre ele. Esse fato está bem representado, por exemplo, nas peças shakesperianas, tais como Rei Lear e Hamlet, onde as tragédias humanas são resultado de más escolhas individuais provocadas por acontecimentos originados através da imprudência, da arrogância ou simplesmente pelo desejo de vingança.

Nos últimos dois séculos, ao menos em boa parte dos meios intelectuais, ressurgiu com carga total a ideia de que um ente abstrato pode determinar de modo quase absoluto o nosso destino. Seja através de uma espécie de metafísica econômica, seja através de uma metapsicologia do inconsciente, seja através de uma engenharia virtual produtora de máquinas neurofisiológicas, o homem parece condenado a ser presa fácil do destino, vítima de escolhas na qual não pode se responsabilizar, tornando-se inimputável sob o ponto de vista da responsabilidade e da liberdade de escolher quem ele é ou quem ele poderá vir a ser um dia.

Encerro esse texto com um alerta que considero muito importante: temos que tomar cuidado com a nossa compreensão, digamos assim, supersticiosa sobre o poder do destino e de outros entes deterministas. Como bem disse Sartre em sua fase mais humanista do que marxista, “não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim”. O mesmo Sartre acertou na mosca quando vaticinou que ”o homem está condenado a ser livre”, e essa é uma dádiva única, uma dádiva divina. Todavia, esta é uma dádiva profundamente trágica, que deve ser desenvolvida na medida mesma em que nos desvencilhamos de uma visão de mundo infantil, em que existe algum ente abstrato que determina de modo mais ou menos absoluto ou místico os rumos de todos os acontecimentos humanos.