O experimentalismo estético nas Memórias póstumas de Brás Cubas

Memórias póstumas de Brás Cubas, uma complexa trama de ficção fantástica e obra de valor inquestionável sob quaisquer pontos de vista e sob todos os ângulos de análise objetivos e/ou subjetivos, estabelece uma série de ambigüidades, inclusive em seu caráter formal: apesar de o nome sugerir estarmos diante de uma obra autobiográfica, caracterizada pela unicidade autor-personagem, o que observamos são pelo menos três entidades distintas: o autor, Machado de Assis, o narrador que nos conta a história (o Brás Cubas morto) e o Brás Cubas protagonista (enquanto vivo). Como ocorre esta diferenciação? A narração em primeira pessoa não indica a presença do narrador-protagonista? Aí começa-se a perceber a complexidade da estética machadiana, enquanto aspecto formal: suas digressões, a aparente falta de “ordem” e “método” no discurso narrativo.

Ao anunciar-se como defunto-autor, o narrador indica uma situação inusitada: a morte confere-lhe uma visão distanciada e isenta de suas obrigações sociais e políticas, possibilitando o completo desnudamento de sua alma, ou melhor, da alma de Brás Cubas-protagonista que, definitivamente, não é mais a mesma pessoa depois de transpor os limites que separam a vida da morte. Esse distanciamento que a morte impõe ao narrador em relação à vida e suas implicações, provoca uma ruptura com suas ideologias, suas crenças, sua personalidade antes da morte, fazendo-o desdobrar-se em dois: o eu-protagonista e o eu-narrador; assim o narrador, ao contar sua história, visualiza não mais a si mesmo e sim a “ele”; outra diferença entre os dois é fornecida pela circunstância excepcional de espaço/tempo (atual - morte; passado - vida) em que se encontra o narrador-defunto; assim, a diferença ideológica entre o eu-narrador e o eu-protagonista legitima a visão de mundo do primeiro, favorecendo outra ruptura: o espaço/tempo narrado é diferente do espaço/tempo da narração, provocando uma oposição entre os valores textuais (que o fato narrado indica) e os valores contextuais (que a narração nos aponta). Vale destacar que essas rupturas encontram a sua correspondência na divisão entre o “ser” e o “parecer” que permeiam a incidência da crítica do narrador sobre o seu “eu-protagonista”.

A vida de Brás Cubas, objeto do relato, torna-se objeto da ironia do narrador e, por extensão, de toda a espécie humana; até mesmo o leitor é alvo de seu escárnio, pois o narrador julga-o sujeito às mesmas contradições ser/parecer - ele está vivo - e com as mesmas tendências para a inconstância e a fatuidade; somente ele, narrador, possui a isenção de vida necessária para ter plena consciência de si mesmo e do mundo que descreve (e onde está inserido o leitor).

Inúmeros estudos têm sido empreendidos com o intuito de desvelar o homem por trás da obra; tarefa ingrata esta, pois Machado esquiva-se à apologia a qualquer corrente filosófica e não se pode afirmar nem mesmo que sua ironia e pessimismo indiquem filiação com esta ou aquela doutrina; no entanto, pela constante oposição ser/parecer presente ao longo das Memórias, parece recair sobre esta dicotomia a atenção (e talvez uma indicação de sua posição ideológica...?) do autor. Pessoalmente, acredito em uma tentativa de despertar no leitor o espírito crítico e levá-lo a uma análise muito mais cuidadosa do texto e, principalmente, do contexto. Ao apresentar ao leitor uma narrativa repleta de aparentes contradições, Machado de Assis obriga-o a desenvolver todas as suas habilidades de interpretação; parece não conceber que o leitor permaneça extático, alheio, indiferente; provoca-o, incita-o a participar, reconstruindo a história a partir de óticas distintas: sua própria, do narrador, do protagonista.

Para finalizar, no ensaio O circuito das Memórias em Machado de Assis (que, devo confessar, muito contribuiu para a elucidação dos diferentes aspectos do foco narrativo e do presente trabalho), o que Juracy Assmann Saraiva designa experimentalismo estético presente em suas obras, apenas evidencia o fato de Machado não ter sido um autor qualquer: ele foi um crítico literário e, como tal, soube como ninguém criar variações inúmeras para uma mesma forma. Portanto, ao ler Machado de Assis, é bom ter em mente que a aparente ausência de método ou sistematização indicam estruturas extremamente complexas, que utilizam-se de variações estruturais e formais alicerçadas no mais alto grau de método, mas filtradas pela sua ótica cáustica e questionadora do ser humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1996. 176p. (Série Bom Livro).

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 33.ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 110-113.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 3.ed. São Paulo: Ática, 1995. 70p. (Série Princípios).

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 5.ed. São Paulo: Ática, 1991. 96p. (Série Princípios).

SARAIVA, Juracy Assmann. O Circuito das Memórias em Machado de Assis. São Paulo: EDUSP, 1993. 221p.

Ruiva da Noite
Enviado por Ruiva da Noite em 03/06/2007
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