O retrato da sociedade brasileira na obra "Triste fim de Policarpo Quaresma"

Lima Barreto insere-se no universo de escritores que acreditavam que a arte possuía uma função social, para muito além da representação do “belo”, do “elevado”, do que era considerado esteticamente relevante para os academicistas. Confundindo, por vezes, a obra com a própria vida pessoal, não deixou, no entanto, de sintonizar sua visão de literatura com as vanguardas modernistas que revolucionariam as décadas seguintes.

Nesse contexto, Triste fim de Policarpo Quarema torna-se objeto de discussão, inclusive nos dias de hoje, uma vez que na época de sua publicação a obra foi francamente ignorada. Isto deveu-se ao fato do autor bater-se com a imprensa e os meios de comunicação da época (especialmente através das críticas contidas na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha), apontando suas falhas, a falta de ética e os mecanismos de opressão exercidos por tais instituições.

Notadamente em face de seu relacionamento conflitivo com a sociedade da época, Lima Barreto tornou-se persona non grata nos meios burgueses e mesmo junto aos seus pares. Sentindo-se oprimido e posto à margem do circuito literário da época, entre outras razões devido à sua condição social e à cor da sua pele, o escritor inicia uma ofensiva sem limites contra os valores mantidos pelo "status quo".

Inúmeros aspectos levam à atualização da temática de Triste fim de Policarpo Quarema, entre os quais podemos citar o nacionalismo exacerbado da personagem principal, as trocas corruptas realizadas nos bastidores do poder e o retrato da sociedade da época, onde o indivíduo tem o seu valor determinado pelas influências que consegue mobilizar a seu favor.

No que se refere às investidas do seu nacionalismo, podemos distinguir claramente três momentos distintos na trajetória do Major Quaresma: o primeiro diz respeito aos seus estudos do idioma tupi-guarani (ocasião na qual sugere a substituição do Português pela língua indígena), e que culmina na sua internação em uma clínica para doentes mentais; o segundo refere-se ao seu investimento na agricultura (e sua crença inabalável na fertilidade do solo brasileiro), acreditando ser esta a mola propulsora para o desenvolvimento do Brasil; e, finalmente o terceiro, por ocasião da eclosão da Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, quando acredita ser através da política a melhor maneira de contribuir para o engrandecimento da Pátria.

No entanto, nenhuma dessas tentativas obteve êxito; antes, o Major foi considerado louco e visionário; o golpe final surge quando Quaresma manifesta a Floriano Peixoto o seu repúdio diante das ações arbitrárias cometidas contra os prisioneiros, sendo a seguir condenado à morte e abandonado por todos os seus conhecidos, menos por Olga e por Ricardo Coração dos Outros.

No tocante às trocas corruptas aparecem sob a forma das vantagens oferecidas pelo Marechal Floriano àqueles que o apoiassem nos confrontos com os rebelados: um cargo, uma promoção, um favor, pois “o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações”.

De acordo com Marcos Otávio Bezerra, historicamente o Brasil apresenta uma sociedade patriarcal, onde pessoas influentes ou pertencentes às classes sociais privilegiadas “apadrinham” os menos favorecidos; esses, por sua vez, estabelecem com o “padrinho” uma relação de dependência moral, em outras palavras, ficam “devendo um favor”.

Essa prática, intensificada no início do regime republicano devido à burocracia da máquina estatal, é naturalmente encarada pela população e não se restringe à vida privada das pessoas: ela se manifesta principalmente na vida pública, através de alianças, favores, presentes; tudo em nome de procedimentos alicerçados em conceitos moralmente aceitos como confiança, lealdade, amizade.

Já com relação ao terceiro aspecto, podemos citar o caso do “quase-genro” do General Albernaz, Genelício (e o fato é recorrente; além de Genelício, também o marido de Olga esforça-se por ostentar uma erudição que não possui), empregado do Tesouro, que conseguiu ascender na escala social através de manobras políticas e da publicação de textos considerados medíocres (porém aparentemente demonstrando grande erudição):

"Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiro gênio. Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas diárias. No intuito de anunciar aos ministros e diretores que tinha uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais longos artigos sobre contabilidade pública. Eram meras compilações de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de autores franceses ou portugueses." (BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma, p.49.)

Nessa situação aparece claramente a voz do autor Lima Barreto, sua indignação com a suposta erudição de grandes figuras da alta sociedade de seu tempo, demonstrando claramente o seu desprezo por tais artifícios através da ironia ostensiva (note-se o ponto de exclamação):

"Acresce que Genelício juntava à sua segura posição administrativa, um curso de direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de impressionar favoravelmente às preocupações casamenteiras do casal Albernaz. Fora da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre físico fazia cômico, mas que a convicção do alto auxílio que prestava ao Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!..." (Ibidem, p.50)

Além das denúncias e da intenção ‘engajada’ da obra, outro aspecto que a torna singular é a figura ingênua e altruísta do Major Quaresma; a um tempo trágica e cômica, a trajetória deste sonhador - considerada “quixotesca” por vários críticos (inclusive Alfredo Bosi) -, em tensão constante com a ironia que perpassa a narrativa em maior ou menor intensidade, permite-nos entrever claramente o embate que se trava, no autor, entre suas concepções/opiniões pessoais e o necessário distanciamento do objeto de sua criação.

"Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, (...). É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça." (Ibidem, p. 54.)

Um dos momentos em que Lima Barreto claramente critica o “império das letras” ocorre quando Genelício, em conversa com o Tenente Caldas e Sigismundo, atribui a loucura de Quaresma ao fato deste não ser formado e “meter-se em livros”, chegando a afirmar que “devia até ser proibido, a quem não possuísse um título acadêmico, ter livros” (Ibidem, p. 51). Note-se a crítica aberta de Lima Barreto aos intelectuais da época, uma vez que ele mesmo jamais havia sido aceito na ‘academia’.

Finalmente resta lembrar o quase anonimato em que permaneceram, durante décadas, as suas obras, somente resgatadas por volta dos anos 50; os “intelectuais de academia”, os quais Lima Barreto incansavelmente escarneceu e criticou, não conseguiram restringir, porém, o alcance de sua obra.

Atualmente é comparado a Machado de Assis devido à densidade psicológica, à complexidade na construção de suas personagens e à ironia que permeia a construção de suas tramas. Finalmente liberto do preconceito da crítica literária reacionária, foi reintegrado ao lugar a que tem direito no cenário da Literatura Brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Lima. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Antônio Arnoni Prado. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Literatura Comentada)

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1995. (Série Bom Livro)

BARRETO, Lima. Diário Íntimo - fragmentos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Anpocs, 1995.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

Ruiva da Noite
Enviado por Ruiva da Noite em 03/06/2007
Reeditado em 17/06/2007
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