O mito da indução e a construção de mundos

Qual teria sido o papel da indução na construção da física newtoniana? E na relatividade? Teria tido algum papel na construção da MQ?

Houve um longo tempo em que a igreja dominava toda a Europa. Fazia isso utilizando-se entre outras, de práticas invasivas, como a confissão, na qual o padre tinha acesso aos pensamentos mais íntimos de cada um. A ordem natural, a vida comum, era regida por um deus conservador e qualquer novidade podia ser atribuída a tentações demoníacas. Todas as crenças, todos os desejos eram sujeitos ao crivo da igreja. Novas ideias deviam ser triadas, conformadas aos propósitos dos padres e da igreja, fontes do conhecimento e do poder. A população analfabeta mantinha-se mergulhada em pesadelos aterrorizantes de infernos ameaçadores. Toda a direção, todas as respostas, eram dadas pelos sacerdotes, pessoas mais esclarecidas, com algum estudo, conhecedora das letras. Tais criaturas deveriam buscar todas as respostas em um objeto sagrado, um livro místico, misterioso, incompreensível; um objeto estampado por uma infinidade de letras que, magicamente, conferiam saber aos letrados.

Em tal contexto, como as pessoas tentarian responder qualquer questão que começasse a incomodar? Perguntariam a um padre que buscaria a resposta no livro sagrado, instrumento místico e incompreensível detentor, supostamente, de toda a sabedoria e poder.

Os que já folhearam uma bíblia sabem ser quase impossível descobrir nela a resposta para qualquer pergunta que lhes venha à mente; um analfabeto, no entanto, podia conceber aquele objeto mágico como uma fonte de conhecimento instantâneo; bastaria olhar para aquelas páginas estranhamente codificadas para que o conhecimento, magicamente, se transferisse para a mente dos despertos, conhecimento indubitável: a palavra de Deus.

Desse modo, os pilantras mantinham esse artifício como fonte de um poder que se sustinha século após século. Qualquer pergunta deveria ser respondida por uma autoridade. Só aos poderosos era permitido definir caminhos e metas.

Em algum momento, no entanto, o questionamento dessa autoridade começou a ganhar corpo. (A palavra “Autoridade” encerra até hoje uma estranha aura capaz de inibir o pensamento: com que autoridade você escreve tais coisas? podem me perguntar, exigindo um tipo de resposta que só pode ser absurda. Acredito na razão, em argumentos lógicos, sendo essa a “autoridade” fundamental na qual acredito; são os raciocínios claros e explícitos os que autorizam minhas palavras. “Autoridade” merece boa dose de reflexão). Não poderia um homem comum adquirir conhecimentos? Não poderia adquirir, por si, novas compreensões, novos entendimentos acerca dos fatos em geral? A resposta afirmativa seria impositiva se acoplada ao modo como tais descobertas poderiam ser efetuadas.

Uma resposta muito simples veio então à tona: para adquirir conhecimentos o homem comum deveria observar o mundo ao redor, e confirmar padrões que sempre se repetem. Poderia observar o sol surgindo dia após dia, para inferir que, então, ele levantaria todas as manhãs, numa ordem natural.

Difícil imaginar algo mais prosaico que a observação para a aquisição de conhecimentos, era o método capaz de apresentar os fatos corriqueiros, e de detectar e expor mentiras. A repetição do padrão de observação, por sua vez, assegurava a validade futura da constatação.

Procedimentos tão familiares podiam sustentar a oposição contra a autoridade, contra o poder. Era com os instrumentos mais simples da razão que se desafiava o poder após séculos de dominação opressiva e ferrenha (a mesma luta permanece viva até os dias de hoje, quando as forças obscurantistas tendem a deixar em segundo plano o apelo à autoridade [exceto, fundamentalmente, em meios acadêmicos] e se concentram em semear a confusão, o culto à irracionalidade). Enquanto o poder central, a autoridade, sustentava que todo o conhecimento deveria passar por seu crivo, por sua triagem, alguns indivíduos ousaram buscar, por eles mesmos, livremente, o conhecimento. Insisto em que as mesmas forças obscurantistas, o mesmo poder, encontra-se, ainda hoje, muito vivo, embora travestido, sob nova roupagem.

Ousando então observar o mundo ao redor e refletir sobre ele sem a mediação do poder central, tais homens iniciaram uma revolução no pensamento. Novos fatos começaram a ser analisados, novas ideias expostas, novas interpretações sugeridas.

Que autoridade sustentaria tais afirmações? A “autoridade” da própria razão, dos argumentos.

O ataque a tal ousadia tinha por objetivo desqualificar por inteiro a empreitada, a resposta inusitada à pergunta tortuosa se impunha com naturalidade. Era imperioso, no entanto, que se evidenciassem as justificativas, a metodologia, ou o que quer que fosse, que garantisse a credibilidade das conclusões desafiadoras. Lançou-se mão da indução, um suposto método de confirmação de conclusões universais; espécie de paródia de método matemático análogo.

A sugestão, devida pelo menos a Bacon, no início do séc. XVII, ganhou força nessa época em que a ciência engatinhava, talvez em consequência da inexistência de explicação alternativa. Desde então, e apesar da crítica de Hume, endossada por Popper ,e fortalecida por Goodman, a proposta continua a ser considerada por muitos, provavelmente em decorrência de sua fácil compreensão. Sob essa aura, permanecemos analisando a brancura dos cisnes, a negritude de corvos ou a condutividade do cobre desdenhando o fato de que tais necessidades, ou contingências, têm apenas uma relação muito distante com a ciência. Que relação teria a indução com a obra de Newton, por exemplo, ou a de Einstein? (Newton postula, contrariamente a todas as observações, que os corpos permanecem em movimento contínuo, na ausência de forças; Einstein subverte a física de Newton acrescentado um vendaval de conclusões estranhamente bombásticase nunca observadas).

Método de compreensão muito simples, a indução pode ser ilustrada com o seguinte exemplo: em meio a um nevoeiro intenso, um homem cai do alto de um edifício imenso; imerso em desespero, ele vai contando os andares pelos quais despenca 1, 2, 3... . Sem saber a altura da queda em meio à névoa, o desespero aumenta com a contagem: 6, 7... 10... e já não parece haver esperança, mas... 20, 21, 22 e nada aconteceu... 30, 40, nada... 50 andares, 60, 70! e a tranquilidade embala o homem ao inferir, por indução, que, se nada aconteceu até agora, nada lhe acontecerá.

Creio que o único forte apelo à indução seja a simplicidade de sua roupagem, a maneira fácil com que pode ser compreendida.

Acredito também, aliás, que as teorias científicas não se iniciam com raciocínios indutivos, mas com a construção de conceitos quiméricos, ou incongruentes, como o de “grue” (green-blue), ou “verzul”, idealizado por Nelson Goodman para ilustrar a debilidade da indução.

Um objeto é grue se é observado antes de t e é verde, ou se não é observado depois de t e é azul.

Ser grue significa ser verde antes de t ou azul depois de t.

Assim sendo, antes de t, todas as observações capazes de confirmar a hipótese, por exemplo, “todas as esmeraldas são verdes”, confima também a hipótese alternativa, “todas as esmeraldas são 'grue' ”.

Embora simples e instrutivo, o conceito “grue” nos parece artificial e, por essa razão, pouco significativo; podemos, no entanto, criar muitas outras quimeras análogas e mais familiares.

Vejamos o seguinte exemplo:

Creio serem aceitáveis as seguintes definições:

“Constelações” são agrupamentos de estrelas situadas proximamente, umas às outras, no céu.

“Grupos estelares” são agrupamentos de estrelas situadas proximamente, umas às outras, no espaço.

Os que compreendem ambas as definições sabem que as definições acima correspondem a conjuntos bastante diferenciados. De fato, a noção de “constelação” está associada à antiga visão geocêntrica e consiste em um agrupamento de estrelas vistas sob ângulos aproximados, situadas, portanto, próximas, umas às outras, na esfera celeste. A suposta proximidade entre estrelas de uma mesma constelação pressupõe a disposição das estrelas em uma mesma superfície a nos envolver.

A noção de “grupos estelares” pressupõe a distribuição das estrelas pelo espaço tridimensional. De acordo com tal concepção, as estrelas componentes de nosso grupo estelar situam-se nos mais variados ângulos, sendo vistas, portanto, em diferentes constelações, possivelmente em posições opostas, no céu. A maioria dos grupos estelares situa-se em minúsculas regiões do céu; só os grupos mais próximos compõem constelações aparentadas às tradicionais.

De fato, como mostrado por Kuhn, a substituição de teorias costuma tornar familiares novos conceitos quiméricos; podemos encontrar, em tais episódios, pares do tipo constelações/grupos estelares, éter/espaço, e muitos outros. O conceito de movimento retilíneo/repouso em Newton é desse tipo, todos os conceitos relativísticos também. As revoluções científicas pressupõem uma reconstrução de toda a visão de mundo na qual encontra-se imersa a antiga teoria. Revoluções não são conseguidas generalizando-se indutivamente antigas ideias, mas distorcendo-as em conceitos novos, revolucionários, que não se encaixam na antiga visão de mundo, exigindo outra, portanto.

Se perceber ter em mãos uma tal quimera, um conceito ilustrativo de algo profícuo, formado por uma espécie de fusão entre conceitos anteriores, ou distorção, e que não se encaixa na visão explicativa tradicional poderá tentar criar o ambiente receptivo ao novo conceito, o que adequa a sua forma.

Desafio mais radical será o de tentar, deliberadamente, engendrar tais quimeras. A fusão de 2 conceitos arbitrários muito provavelmente resultará em uma construção estéril. Mas talvez algumas das estranhas criaturas ganhem vida em algum estranho mundo. Se conseguir isso terá gerado ciência, ou, ao menos, bela ficção.

Construamos mundos!