Valor das Coisas 2 - Preço Real

Um dos assuntos que mais me interessa em filosofia é o acesso à realidade. Quanto em nossa fala (e em nossas percepções, nossos conceitos, nossos corações) se deve à uma percepção pura? Quanto, por outro lado, é “contaminado” veículo da comunicação? Talvez você ache que esta é uma discussão meramente acadêmica e sem impactos no nosso dia a dia. No entanto é relativamente recorrente as pessoas fazerem referência a este tipo de discussão. Algo mais próximo à realidade é “mais concreto” ou “mais real”, algo mais próximo aos nossos conceitos e elaborações é “mais abstrato”. Não compartilho este modo de entender o mundo, e você? Acredite, você tem uma posição sobre o conhecimento e sobre o acesso à verdade. Talvez não tenha uma elaboração racionalizada, mas no dia a dia o modo de pensar e as escolhas que faz se dão de acordo com o que você acredita que seja o conhecimento.

No seu dia a dia, por exemplo, você sabe o valor de uma cerveja? Se eu te disser que paguei dois reais por uma latinha em um show, você vai achar muito barata? Bem, hoje em dia dois reais é extremamente barato, o usual é cinco, sete reais... mas e se este show foi em 1997? Naquela época era possível comprar cerveja a um real em shows. Os preços das coisas vão passando por flutuações ao sabor dos ventos do tempo. Às vezes elas se apreciam, normalmente elas se depreciam. De modo que a informação ‘cerveja custa dois’ (preço nominal) é um tanto vazia. Pensando nisto os economistas criaram um conceito elegante: “preço real”. Diferentemente do preço nominal o preço real não varia ao longo do tempo, desse modo é possível aferir o valor real, o quanto aquele produto custou em relação ao salário de alguém ou em relação a outros bens que ele poderia ter comprado. Então temos dois tipos de preço. O preço nominal é usado no nosso dia a dia, é com ele que nos deparamos quando vamos comprar um pãozinho domingo de manhã. O outro é o preço real, é um preço invariável, é o preço (que como o nome “real” sugere) é “de verdade”. Não está sujeito a esta variação mundana de preços.

Antes de continuar gostaria de chamar atenção para a importância destes conceitos. Quando os trabalhadores se encontram em uma assembleia uma das informações que mais levam em consideração para decidir se entram em greve ou não é a manutenção do poder de compra real. Eles se encontram e dizem: “Nós não temos aumento há três anos, para comprar as mesmas coisas que comprávamos devemos ter um aumento de 10%”. Da mesma maneira no jornal vemos um especialista dizendo, “O país cresceu 5% este ano a preços nominais, mas descontando a inflação o país cresceu, na verdade, apenas 0,2%.” Já perceberam como a discussão sobre o que é real é importante aqui? Muito mais importante do que saber quantos reais você ganha é saber o quanto você REALMENTE ganha (o quanto é possível comprar com o seu salário).

E os economistas, veja que maravilha, conseguem dizer o preço REAL das coisas, conseguem descobrir o seu salário REAL! A mim me parece muito mágico, eles parecem profetas que enxergam a verdade de Deus e diz: “Esta calça que está com uma etiqueta de 80 reais na verdade tem o preço REAL de 65 reais, o resto é a ilusão da inflação.” Se não pararmos para entender como os conceitos funcionam é exatamente assim que eles funcionarão: como dogmas religiosos, como revelações, como VERDADES e, portanto, inquestionáveis.

Para achar o preço real na verdade é bem simples, basta descontar a inflação do período. Vemos quanto valiam os produtos em um determinado ano, ver quanto valem agora. A diferença de preço é a inflação. Mas será que se pegarmos os preços de um kilt (a saia dos escoceses), de maracujás e de mísseis nucleares de um ano atrás e compararmos com os preços que têm hoje teremos um índice de inflação? Sim, teremos. Será um índice bem inútil, mas é um índice. E se pegarmos os preços de cimento, de vigas de aço, e de preços dos salários de peões teremos um bom índice de inflação? Sim, neste caso o índice será bom... para empresas de construção, não para o meu dia a dia. Para um índice de inflação que fletisse os meus gastos pessoais a cesta de inflação teria que dar muito peso a cafezinho (tomo quase um litro por dia além de ir a cafés fim de semana), cinema e musculação, alimentação.... Mas quem se daria ao trabalho de fazer um índice de inflação que reflete exatamente os meus gastos?

Já dá para começar a compreender que esta “realidade” dos preços reais é construída, não? Se a intenção é contemplar a inflação para as pessoas a cesta de consumo médio inclui o que elas habitualmente consomem (tomate, arroz, escola para crianças...), se a intenção é compreender a inflação para a indústria de construção a cesta de consumo levará em conta o cimento, material de acabamento, tubulação, tratores, mão de obra... Tá! Mas ainda assim um crente (na REALIDADE da ciência econômica) ainda pode argumentar: Na prática é difícil calcular um índice perfeito, real. Mas é possível. Teríamos que conferir o preço de todos os produtos produzidos no país em um determinado período de tempo e compará-los com os preços de todos os produtos atualmente. Mesmo que isto fosse possível esta cesta ainda não seria neutra. Seria um índice excelente para uma determinada intenção, seria muito útil para os membros do Conselho Monetário Nacional, por exemplo. Mas de que serve a um pescador do Acre um índice que leva em conta os preços de compra dos aviões vendidos pela EMBRAER?

Se você for um genuíno crente ainda pode defender a existência da REALIDADE. Pode dizer o seguinte: ok, a realidade depende do recorte, mas para cada recorte existe um preço REAL. Existe um índice de inflação específico para a construção civil e ela expressa a realidade daquele segmento. Para aferi-la nós consideramos os preços dos produtos e serviços usados pelas empreiteiras há um ano atrás e os comparamos com os preços dos mesmos produtos praticados atualmente. Daí descobrimos a inflação do segmento e a partir dela chegamos aos preços reais do segmento. Ok, é verdade. Mas suponhamos que surgiu uma tecnologia que barateou muito as vigas de aço e as obras passam a usá-las muito mais. Ou o preço do cimento aumento muito e as empreiteiras escolhem substituí-lo tanto quanto possível. Neste caso, qual a cesta de consumo que vamos usar para medir a inflação e chegar aos preços REAIS? Vamos calcular a inflação usando a cesta antiga (dando um alto peso ao cimento) ou vamos calcular a inflação usando a cesta atual (que dá um baixo peso ao cimento)? Ano passado (2014), por exemplo, encareceu muito e foi o grande responsável pelo aumento da inflação. Obviamente muitas pessoas passaram a substituí-lo por algo mais barato (como extrato de tomate). Caso aqui no Brasil a inflação fosse calculada com base na cesta final nossa inflação teria sido considerada bem menor (pois as pessoas simplesmente passaram a consumir bem menos tomate).

Há quem se dê conta de que tudo o que é tido como REAL é uma criação humana e percebe que todas estas escolhas estão relacionadas à intenções. Daí as desqualificam como escolhas arbitrárias, viram apenas armas de inimigos ou de aliados. Defendo outro modo de ver os conceitos: A realidade é sim uma construção humana e de fato tem que ver com escolhas. Mas a realidade bem construída não é arbitrária, muito pelo contrário, é uma realidade muito criteriosa. Um bom recorte e um arcabouço teórico bem feitos mostrarão uma realidade muito útil para as escolhas de políticas públicas e para as nossas escolhas pessoais (votar a favor ou contra uma greve, por exemplo).

Concluindo: em geral as pessoas acreditam que existe uma realidade para além das criações humanas. Quem nisso acredita está a mercê de quem elabora a realidade. Por outro lado umas pessoas percebem como as realidades são produtos da mente humana e as desqualificam como arbitrárias. Estas estão tão perdidas quanto as primeiras, pois deixam de se valer de instrumentos importantes para as nossas tomadas de decisão. Acredito na realidade, acredito que ela é uma construção humana e deve ser compreendida como tal. É incrivelmente enriquecedor perceber as falhas e limites destas realidades. Mas os conceitos que nos levam a estas realidades não devem ser descartados por terem defeitos e limitações (todos a realidade a que temos acesso é construída com defeitos e limitações), eles devem ser deixados de lado quando estes defeitos e limitações o fazem não serem adequados para nossa intenção. Para fazer o julgamento de que realidade devemos comungar só há uma alternativa: a entendendo.