Interlocução sobre satisfação e humanidade

Ontem, quando levei meus filhos à livraria, para que escolhessem um livro de presente, não hesitei (como de praxe não hesito) – em dar a mim também um livro de presente (nessa hora invadiu meus pensamentos a afirmação convicta de meu filho, certo dia, ao amanhecer: “Mamãe, hoje eu preciso de um brinquedo novo!!!”... Sim, eu precisava de um livro novo, mesmo não tendo lido todos aqueles constantes da minha estante: a mão esquerda quebrada, o atestado médico, a ausência do trabalho... tudo isso pedia, com generosidade, uma leitura própria.

Enquanto meus pequenos se deliciavam em correr entre os livros infantis, colocados, propositada e pedagogicamente em mesas baixas, à vista dos olhos e das mãos, passei os olhos (essa expressão é quase sempre desmentida pelo desejo do tato) pela estante da Filosofia e me vi com o título Não nascemos prontos! nas mãos. O movimento das crianças, também envolvidas com os livros, permitiu-me a leitura da orelha do livro, em busca da identificação do autor. Sendo ele filósofo e escritor, com mestrado e doutorado em educação, considerei ser válida a aquisição, afinal, em meio ao universo de livros e autores do mundo contemporâneo, precisamos saber o que buscamos ou, nos momentos em que estamos a explorar (meu filho sempre usa esse termo para se referir ao desbravamento de coisas e lugares para ele desconhecidos), temos que saber a quem dar crédito, na preciosa vivência do tempo que se concretiza com a leitura.

Ainda ontem, antes de ficar satisfeita com o dia, li o primeiro capítulo ou primeira provocação – o subtítulo da obra é “Provocações Filosóficas” – o qual me deixou, felizmente, provocada. Invocando a beleza e o quase (por que não necessário???) desafio que há nas palavras do gênio mineiro, o autor introduziu seu texto com as seguintes palavras: “O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Na seqüência, alertou: “a advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento”. Disse, ainda, ser “assustador” quando alguém diz “fiquei muito satisfeito com você”, porque isso significaria que nada mais se espera dessa pessoa. “Ora, o agradável é quando alguém diz: “teu trabalho (ou carinho, ou comida, ou sala, ou texto, ou música etc.) é bom, fiquei muito insatisfeito e, portanto, quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas”.

Se parece haver consenso que um bom filme é aquele que, quando termina, nos deixa insatisfeitos, desejando que ele não acabasse... Se também um bom livro deixa esse gostinho de quero mais, considerei perigosa, em tempos tão marcadamente voltados para a aquisição e substituição pato-tecnológica de coisas, a afirmação (não dita, mas concluída) de que a satisfação humana não pode ser desse mundo ou, quiçá, deva ser reservada para o suspiro final.

Fiquei pensando no ensinamento de minha mãe, também transmitido aos meus filhos, quando, ao final das refeições, ante a oferta de mais algum alimento, devemos dizer: “obrigado (a), estou satisfeito (a)”. Pensei, ainda, em tempos de obesidade (inclusive infantil), como seria educar sem mencionar a idéia de satisfação. Não pude evitar que meus pensamentos fossem tristes expectadores de uma festa que não acabasse.... E não seria justo esquecer a estratégica utilização, em experiências de exploração do capital humano, de frases como: “você pode mais”.

Acho que escapou ao autor a velha, mas urgente distinção aristotélica entre qualidade e quantidade (ou já não se pode mais falar de qualidade, depois que homem moderno colocou entre os elementos definidores da modernidade a categoria da quantidade???). Posso concordar que eu não deva ficar satisfeita com coisas cuja medição é qualitativa (embora também isso seja duvidoso...), mas não posso acatar à insatisfação perene com aquilo que se mede quantitativamente - dinheiro, por exemplo. Seria (é) triste, quase patética, a insatisfação de algumas (não poucas) pessoas com dinheiro e a perversa e progressiva complexificação das necessidades, quanto mais dinheiro se alcança.

Não é menos incômodo (acho que isso é um educado eufemismo) assistir a alguém devorando incontroladamente sanduíches (ou qualquer outro alimento... sanduíche, aqui, é só a captura mais fácil para a memória, no cenário dos corriqueiros fast foods espalhados pelos quatro cantos do planeta) como se o seu apetite não tivesse fim. Veio-me, à mente, mais uma vez, as lições de Aristóteles quando, no Capítulo 1 de Política diz: “o homem, quando desprovido de virtudes é o mais impiedoso e o mais selvagem dos animais, principalmente em relação ao sexo e à gula”.

Voltando às palavras do gênio, “o animal satisfeito dorme”, devo confessar ter ficado insatisfeita por não lembrar, entre aquilo que li da obra de Guimarães Rosa, onde estava aquela frase. Achei que seria um crime “passar os olhos” em Grande Sertão: Veredas, bem como em Noites do Sertão e Manuelzão e Miguilim (alguém poderia simplesmente passar os olhos nessas obras???) e fui, com menos pudor, para as Primeiras Estórias e, de maneira mais afoita, para a Ave, Palavra, onde eu me lembrava haver algumas passagens sobre animais (aliás, como alguém pode descrever liricamente tão diferentes animais??? (Ave, Palavra!!!!). Sem sucesso!!! (não se pode esperar muito de uma passada de olhos).

Em Ave, Palavra encontrei que “amar os animais é aprendizado de humanidade”, além de reler o poema que serviria, hoje, de epitáfio no meu túmulo: “Alongo-me – O rio nasce/ toda a vida. Dá-se/ ao mar a vida vivida./ A água amadurecida,/ a face ida. O rio sempre renasce/ A morte é vida.”. Essa é a outra questão que me parece importante quando o assunto é satisfação: o tempo. O que me satisfaz, hoje, pode não me satisfazer amanhã, o que não exclui a possibilidade de eu me considerar, como sujeito histórico e culturalmente definido, como alguém satisfeito ao longo (e não ao final) do processo da própria vida. Haverá algo de desumano nisso??? A ideia de nos definirmos sempre como “seres de insatisfação”, me parece, parodiando Nietzsche, essa sim, “desumana, demasiadamente desumana”.

Gosto de poder dizer e, sobretudo sentir, por exemplo, satisfação com a casa onde moro, com a profissão que abraço (a cada manhã, quando o dia começa, sinto que nos abraçamos), com as escolhas que sustento em meu presente. Eu gostaria, por exemplo, hoje, de morar em nenhuma outra casa, de exercer nenhuma outra profissão ou de ter nenhum outro filho (com toda a incompletude que pode haver em tudo isso!!!). E, sem qualquer contradição (ou assumindo-a no seu máximo de humanidade) eu também gosto de acordar e desejar ser, hoje, uma pessoa melhor do que fui ontem e de ter a certeza (uma certeza que combina vida e morte) de que não nasci pronta.