A ÉTICA DA AVENTURA
                                                              Sidnei Garcia (1)

Caminhando pelas primeiras páginas da clássica obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, nos deparamos com afirmações surpreendentes a respeito de quem somos neste vasto território sul-americano. O consagrado historiador, além de observar que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”, nos instiga a “averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de que somos herdeiros”, ou seja, procurar os sinais ibéricos presentes ainda – de algum modo – no jeito de ser, viver, conviver, pensar e instituir do brasileiro atual. Raízes do Brasil foi escrito em 1936 e revisto pela última vez na 3ª edição de 1956, mas a averiguação das características lusitanas na sociedade brasileira, em nossos dias, é uma tarefa possível, apesar desta sociedade, no seu processo de formação, ter passado por muitas transformações.
      Sabemos que os ventos dos tempos apagaram muitas marcas lusitanas na superfície do nosso solo social, mas, se procurarmos com diligência, vamos encontrar, nas raízes históricas, sinais que até hoje são visíveis no cotidiano da nossa gente. O espírito de aventura do português que se embrenhava nos mares para conseguir riqueza à custa da ousadia e não do trabalho, está latente em muitos brasileiros que almejam lucros mais imediatos, aventurando-se em atividades, dentre as quais algumas apresentam até risco para suas vidas. Em muitos casos seus “expedientes” não lhes permitem um caminho de volta.
     Aqui, neste texto, proponho acompanharmos, alguns passos desse espírito ibérico que caminha em nossas ruas, praças, estradas e sertões, além das sinuosas trilhas das especulações financeiras onde a moeda trabalha e o seu dono espera os frutos dessa ação numa atmosfera característica do ócio, deleite de antigos fidalgos.
     São Paulo: Rua 25 de Março, Praça da República, Viaduto do Chá, Estação da Luz,...Ao burburinho das lojas e dos consumidores que passam, que olham, que compram, que pechincham um menor preço para um maior lucro – no caso de revenda –, somam-se às vozes em coro dos vendedores ambulantes, dos marreteiros, dos camelôs, dos “homens da cobra”; brasileiros que procuram e encontram – na maioria das vezes – uma saída para resolver suas necessidades econômicas do dia a dia. São os “profissionais” que tem como área de trabalho o espaço público, e ali desenvolve o seu “comércio informal de rua”. Vendem quase de tudo: de cachorro-quente a tênis “Nike”, de redes da Paraíba a medicamentos falsos para uma série de males (incluindo leucemia), de chupetas para bebês a produtos abortivos. Misturam-se nesse mar de gentes esses “trabalhadores da economia informal”; uns pela sobrevivência numa atividade mais simples e mais trabalhosa, uns visando seus lucros de forma mais honesta e moderada e outros que, sem pudor, apegados somente a ética do lucro e da aventura, vendem até milagres falsificados.
     Assim, pelas vias públicas das grandes e médias cidades do país, e em praias e estádios de futebol, ambulantes sobrevivem vendendo lanches, pipocas, cafezinhos, água de coco, churrasquinhos, redes, sandálias e vários outros produtos, muitos desses ambulantes com autorização oficial. Expondo seus artigos em suas barraquinhas improvisadas, ou em lonas nas calçadas, estão os chamados marreteiros que, como os ambulantes, não tem sempre um produto definido para vender e não tem, sob hipótese alguma, permissão oficial para essa atividade. Dentre esses existem aqueles que vendem lanches ou miudezas em geral, não violando muito a legalidade com seus produtos, mas definidamente na contramão da lei estão, mesmo correndo risco de perder suas mercadorias e irem presos, os marreteiros de produtos piratas como CDs e DVDs, principalmente, e “remédios” produzidos em porões, entre outras falsificações.
   No topo da escala está o camelô que goza de certo status, pois, geralmente é aquele que tem sua barraca montada num ponto definido da cidade, concorrem em preços com as lojas vizinhas com suas mercadorias, geralmente compradas – de modo legal ou por contrabando – no Paraguai ou na Bolívia, ou, em se tratando de confecções, em fábricas de cidades brasileiras.
   Dentro desse mercado informal existem aqueles que, desprovidos de honestidade, aventuram-se a vender, ilegalmente, de produtos falsificados, contrabandeados ou roubados de caminhoneiros como relógios, discos, produtos eletrônicos, tênis “Nike” e “Adidas” e programas de computador, por exemplo, a medicamentos (falsificados) para “tratamento” de leucemia, anabolizantes, abortivos e estimulantes sexuais proibidos no mercado.
    Mesmo tendo ciência que esses contraventores que aparecem no comércio informal não apresentam, em sua essência, as idênticas características do aventureiro português, há que se admitir que a sua ambição pelo lucro mais imediato – protegido, é claro, pela ausência de tributação – faz com que esses mercadores se apeguem, sem restrições, a uma ética em que ter vantagens é preciso, ser honesto nem sempre é preciso, e assim, propõe-se a arriscar-se nas rotas do contrabando (como faziam nossos ancestrais portugueses que burlavam a coroa), nas viagens aos países vizinhos, com intenções furtivas de comprar e trazer mercadorias (escondidas) acima do limite estabelecido por lei, além daquelas estritamente proibidas de comercializar. São viagens arriscadas, como eram também as aventuras de conquistas dos mercadores portugueses que, no século XV, durante o périplo africano, na cobiça pelo ouro, especiarias e escravos, antes de possuírem as caravelas, empreenderam viagens marítimas de muito risco. Os navios não tinham muita vida útil além da insuficiente qualificação da tripulação – sobre esses navios escreveu Pyrard de Laval: “Vão para voltar... se for possível”. E iam “por mares nunca dantes navegados” atrás do lucro obtido mais pela aventura do que pelo trabalho.
   Seria possível, nos dias atuais, encontrar vestígios daqueles mercadores viajantes em nossos irmãos brasileiros que escolhem a vida de “sacoleiros” nas rotas do Paraguai e da Bolívia? Não estaria nessa gente uma parcela daquele espírito português que buscava especiarias e seda chinesa para vender (e lucrar) nos mercados europeus?
  Estes questionamentos, além de incentivar à investigação, pontuam esse texto com as características do ensaio, expondo nossa intenção nesse sentido, já que não queremos estabelecer afirmações conclusivas sobre o tema. Não estou também equiparando, no sentido financeiro, nossos mercadores brasileiros com uma abastada burguesia lusitana – ressaltando, porém que havia também a média e pequena burguesia. O que chama nossa atenção é a escolha de uma atividade que proporciona mais aventura do que trabalho, e tudo direcionado na intenção do lucro mais fácil e mais imediato. São muitos, homens e mulheres – alguns com poucos recursos financeiros – que atravessam, por dia, a ponte da Amizade em busca de mercadorias no comércio paraguaio (componentes eletrônicos – especialmente –, artigos importados, que são novidades no mercado e que compram por preços mais baratos, além de produtos, cuja venda é proibida. A atividade de sacoleiro (a) está intrinsecamente ligada ao comércio informal dos camelôs, marreteiros e ambulantes das grandes, médias e até pequenas cidades, contudo existem muitos comerciantes formalmente estabelecidos que pegam carona nessa via de acesso à mercadorias lucrativas e, burlando o fisco, vendem às escondidas esse fruto por vezes contrabandeado.
   É dentro deste contexto que eu coloco a minha lupa para averiguar a presença do espírito do português aventureiro e ávido por vantagens que lhe ajudasse a subir na escala econômica e social.
    Nesse enredo existem outras personagens. Se no Século VI o pau-brasil, extraído de forma predatória das virgens florestas da Mata Atlântica, significou lucros e riquezas para o rei de Portugal e sua burguesia privilegiada, o que dizer hoje do vasto comércio de madeiras? Associado à ação dos grandes pecuaristas nos desmatamentos de extensas áreas, o mercado madeireiro é alimentado por um extrativismo irracional de essências florestais, sendo considerado um dos maiores fatores de degradação ambiental em nosso país.
    Ao longo de décadas, especialmente no Século XX, esse mercado atraiu muita gente, pois se toda atividade extrativista visa ganhos imediatos, o corte de madeiras para o comércio não deixa de ser um filão muito desejado: com exceção daqueles que optaram, também, pelo reflorestamento – depois, é claro, de ter feito a sua parte no processo de devastação – a grande maioria dos madeireiros são avidamente atraídos pelo lucro mais rápido ao comercializar madeiras que a própria natureza se ocupou de plantar. É bem mais cômodo, e também mais prático, “comer” nossas matas in natura do que com o “tempero” do trabalho de reflorestar terras devastadas. Não poderíamos comparar a avidez desses nossos contemporâneos brasileiros com os colonos portugueses que destruíram parcela imensa de nossas florestas no longo processo de colonização? É oportuno, aqui, recorrer às palavras do nosso historiador, Sérgio Buarque de Holanda: “Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou como dizia o mais antigo dos nossos historiadores (2), queriam servir-se da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, ‘ só para a desfrutarem e a deixarem destruída’ “(Raízes do Brasil, p.21).
     Não estaria o velho espírito colonizador povoando as mentes e os corações desses homens que, fora o usufruto da madeira retirada, pouco se importam com o destino das terras? Poderíamos até isentar o madeireiro que extrai madeira legal, ou seja, madeira de florestas onde se executou um projeto de manejo, mas o grande impacto do desmatamento ocorre por conta as extração de madeira ilegal e mais ainda – é necessário evidenciar esse fato – pela sanha devastadora de grandes e médios pecuaristas que, para formar suas pastagens e engordar seus bois, derrubam florestas inteiras e ateiam fogo, não aproveitando sequer a madeira derrubada. Fatos assim têm ocorridos em larga escala no norte brasileiro ao longo – principalmente – das últimas seis décadas, o que resultou no estabelecimento de grandes fazendas e no enriquecimento de grandes latifundiários. O que fizeram, no passado, os senhores de engenho no nordeste do Brasil e noutras regiões açucareiras? Por acaso não devastaram sem limites, e irracionalmente, as nossas matas litorâneas? Creio que aí também, no meio desse universo dos reis do gado, vivem sementes daqueles antigos senhores que dominavam a terra e enriqueciam nela a custa da destruição da mesma e dos que nela derramavam o seu suor (escravos e homens livres).

    Continuemos nossa busca...
    Não encontraríamos também sinais ibéricos nos nossos políticos?Quantos são aqueles que para galgar uma posição privilegiada não faz os mais escondidos acordos? Não queremos dizer que todo aquele que almejava a fidalguia na sociedade portuguesa fosse, necessariamente, desonesto, mas sim que o oportunismo era (e ainda é) uma chave que abria muitas portas para se poder chegar a degraus mais altos da escala social e econômica ao lado, e à sombra, da nobreza. Vale lembrar aqui o nepotismo que é praticado, por muitos políticos, à luz dos holofotes, e também secretamente, beneficiando parentes com bons cargos e gordos salários. Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que no contexto político brasileiro encontram-se as mais amargas raízes do espírito colonizador.
   Um tipo bem característico de oportunista é o chamado “assessor político”, que nada mais é do que uma denominação mais garbosa para cabo eleitoral, que há algumas décadas já soava, pejorativamente, como o popular puxa-saco. “Assessor” dá mais status. Essa figura procura sempre viver dos favores e do dinheiro que ganha de um ou de outro político que, por sua vez, se beneficia com os votos conseguidos à custa da tal assessoria na cidade ou região que, ironicamente, o político denomina de “meu curral eleitoral”. Em muitos casos o dito “assessor” passa a ser candidato, geralmente a vereador. E assim vemos marcas de um passado que ainda permanece na formação da nossa sociedade. Quantos são os “nobres” senadores e deputados que se adentraram na carreira política por essa via? Quantos cargos foram apadrinhados para amigos mais “chegados”, para assessores fiéis? Creio que esse “modo” de fazer política no Brasil, que essa ambição aventureira e corruptora e essa falta de postura e dignidade, ainda são frutos da nossa formação social.
   E no campo da especulação financeira? Há uma atmosfera de ócio nesse mundo, pois se o dinheiro “trabalha” o dono folga no exercício cômodo da observação e da pesquisa. É evidente que se trata de um jogo, de uma aventura, mas avidez e cobiça pelo lucro faz com que os “filhos” dos lusitanos se apeguem a essa roleta de uma ciranda que começou há muito tempo, quando se percebeu que emprestar dinheiro a juros era um alto negócio. Aí também, furtivamente, esconde-se aquele espírito ganancioso e aventureiro, que além de compreender, e de aceitar, que navegar era preciso e que viver não era preciso, entendia também que viver com os lucros e as riquezas angariadas em suas aventuras era bem melhor. Especialmente como fidalgo na corte do rei.
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(2) Professor da rede pública de Rondônia, Licenciado em História pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e Pós-graduado em História do Brasil pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá - RJ

(1) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, 3ª Ed. (São Paulo, s.d., pág. 16)