Sobre o absurdo

Desde muito cedo, percebi a ubiquidade do absurdo perpassando tudo o que fosse humano. Não vejo absurdo em um regato descendo a montanha, nem no alarido harmônico dos pássaros na mata. Mas o encontro, gritante e óbvio, em todas as obras humanas, em todos as nossas idealizações e arranjos.

Costumava tentar imaginar a origem de tão estranha peculiaridade, a raiz dessa incongruência essencial e intrínseca a tudo o que é humano. Não são absurdos os pássaros, nem suas ações. Também não são absurdos os peixes nem os insetos, e nem muito menos as árvores, montanhas, rios e mares, nem mesmo as nuvens, os planetas, nem as estrelas. As cobras são absurdas.

Constituindo uma particularidade extremamente rara em toda a natureza, o absurdo se evidencia ostensivamente em tudo o que é humano, tendo sido esse fato, um motivo, para mim, de curiosidade e encanto que me motivou a longa perscrutação em busca de sua justificativa, a qual, creio ter finalmente encontrado.

Convém advertir e acentuar que a justificativa para a presença ubíqua do absurdo em todas as ações humanas não poderia deixar de ser, ela própria, também completamente absurda, ou se negaria a si mesma. Por essa razão, deve o leitor tomar o absurdo da explicação como evidência de sua pertinência, e não o contrário. Aduzirei razões muito lógicas para o absurdo recorrente em tudo o que seja humano.

A causa de todo o nosso absurdo é muito simples, embora certa estranheza inerente ao fato me obrigue a determinados circunlóquios com o intuito de tornar compreensível algo que a proximidade excessiva oculta.

Nem o leão, nem a zebra, e nem a ostra encravada na rocha são nunca absurdos. O leão persegue e devora a zebra porque tem fome, a zebra foge porque tem medo do predador voraz, enquanto a ostra permanece agarrada à pedra, ao sabor da maré, porque não pode ser outra a sua vida. Assim, também a árvore espalha seus ramos em busca de luz, e suas sementes pela terra, perpetuando os ciclos. Quanto a nós, vamos agindo absurdamente em tudo o que fazemos, e isso em decorrência de uma condição tão simples quanto surpreendente.

Ocorre que o leão é um leão, e apenas um leão. Assim também a zebra é a zebra, e só ela, e a ostra é a ostra. Também a árvore é apenas ela mesma. Por essa razão todas essas criaturas existem una e naturalmente, assim como os seres inanimados, cada um deles.

Nós, ao contrário, somos diferentes de tudo isso, de todos os outros seres que vemos ao redor, sendo nisso que consiste nossa humanidade, identificável, ela mesma, com o absurdo. Ocorre que não somos unos, não agimos por nós mesmos, perdemos nossa unicidade. Existimos e agimos de maneira análoga às formigas, como partes de algo.

Tomadas unitariamente, as formigas não têm o menor sentido. Suas ações, sua existência, só podem ser compreendidas sob o ponto de vista do formigueiro. Sob esse modo de ver, cada formiga compõe o formigueiro como um membro, ou seja, como uma perna, ou qualquer outra parte do corpo de um outro bicho. Quero dizer: ao contrário dos indivíduos usuais de todas as espécies, incluindo bichos, plantas e coisas, as formigas não têm uma existência individual, mas compõem uma unidade desconexa, o “formigueiro”, um enorme indivíduo composto por pequenas partes desconectadas, as formigas. Por essa razão, as ações do formigueiro são todas naturais e explicáveis por si, como as do leão e as da zebra, enquanto as da formiga não se justificam e são absurdas, de modo que inúmeras delas nascem e vivem apenas para recolher folhas, mecanicamente, como pernas que vivem para caminhar.

Éramos animais, como os outros, nossas vidas e ações tinham sentido, como as dos outros. Mas então nos conectamos uns aos outros em uma rede sem fio, e nos tornamos humanos. Humanos e absurdos; duas designações para uma mesma manifestação.

Ao nos conectar, através da fala, criamos uma supra-entidade individual, autônoma, muito maior que nós, à qual nos afiliamos, como formigas a um formigueiro, ou neurônios a um cérebro.

É sob o comando desse ser imenso que costumamos agir, inconscientemente. É ele que nos patrocina o tédio, e a intolerância por nós mesmos, obrigando-nos, dessa maneira enviesada, a agregar e fortalecer a grande rede. Assim, “nossas” ações não são nossas, mas comandos do ser composto, executados por marionetes.

A grande rede a que pertencemos vem crescendo exponencialmente, sugando toda a energia do mundo, e devorando todo o planeta. Agimos sob seus comandos, sob seus desígnios. É sob esse modo de ver que nossas ações absurdas fazem sentido. Por que compramos tantas coisas das quais não precisamos? Por que insistimos e nos empenhamos em nos manter em uma hierarquia, em uma posição que nos desagrada, oprime e entristece? Por que continuamos destruindo o planeta tão futilmente?

A maior evidência do absurdo é a maneira frívola e obtusa com a qual queimamos o nosso tempo, nosso bem mais precioso. O grande ser coletivo inventou o tédio e a intolerância a nós mesmos. Aos que não resta mais tempo, essa verdade autoevidente é finalmente desvelada, quando já é tarde demais, e apenas para que se desesperem, obrigando-os a gastar seus preciosos instantes finais imersos na amargura do arrependimento.

O absurdo de todas as nossas ações decorre, simplesmente, de estarmos atrelados a uma grande rede, cada vez mais poderosa, que nos congrega e comanda de maneira análoga à que um cérebro controla seus neurônios, partículas das quais herdamos, aliás, a mesma tendência à conexão e à ação conjunta. É dos neurônios que herdamos a tendência manifestada muito explicitamente nos bois de canga de nos conectarmos uns aos outros, propensão expressa também em todos os rebanhos.

Cabe ressaltar, nesses tempos de exacerbação do absurdo, que estamos em vias de promover nova e estrondosa ampliação em nossa rede. Tendo incorporado telefones, depois computadores e internet à nossa grande rede, estamos em via de englobar nela toda a infinidade de objetos que temos fabricado. Muito em breve, todos os trilhões de objetos, e até partes deles, se conectarão à gigantesca rede envolvendo todo o planeta.

Agiremos, assim, conformes às coletividades, aos grupos; perderemos, por completo, nossas individualidades, transformando-nos em partes, em nodos de uma rede. É sob esse ponto de vista que nossas ações, que nossas existências humanas têm feito algum sentido, é esse o cerne do absurdo: não somos nós mesmos.

Transformados em fantoches, ou bois de canga, pela imensa supraentidade que compomos, seremos neuronizados, incorporados a ela como um entre trilhões de componentes.

A emergência do fenômeno decorrerá de uma propriedade dos grupos.

É em nome do próprio absurdo que o absurdo se explica.