Breve pensar sobre três personagens que encontraram a saída mergulhando dentro de si mesmos: Riobaldo, Eduardo Marciano e Hans Castorp

Impressionantemente, alguns seres de papel, personagens fictícios, acabam se apresentando em nossas vidas como verdadeiros guias, tanto espirituais quanto intelectuais, no sentido de nos fazer sentir ou experienciar o que não temos coragem para sentir. É o tal efeito estético. Eles colocam a sua vida em risco só para nos mostrar os extremos e os limites de experiências que nem sequer de longe ousamos chegar perto. Acabam sendo professores da vida, de modo até mais impactante e epifânico do que seres de carne e osso que habitam o mundo a nossa volta.

Três deles me chamaram muito a atenção na leitura que fiz de seus mundos, quer dizer, dos livros que habitam, dos mundos que seus autores criaram para si. Demonstrando, em cenas que exigiram ao máximo de sua atuação, esses sujeitos da ficção acabaram por me ensinar coisas que nem mesmo o mais velho sábio haveria de ter me dito na vida cotidiana. São eles o Riobaldo, do Grande sertão: veredas, o Eduardo Marciano, de O encontro marcado, e, por fim, mas na ordem cronológica inversa, o Hans Castorp, de A montanha mágica. São sujeitos que perpassaram pelas mais angustiantes provas de discernimento sobre as coisas da vida. Confrontados pelo arrebatamento feroz e agressivo dos grupos ideológicos a sua volta, eles acabaram se fechando na realidade da sua ficção e se abrindo para a invenção de sua mais real solidão. Sempre no intermezzo de duas ou mais culturas hegemônicas, representados por personagens fortes e convictos, eles acabaram encontrando no interior de si mesmos, no sertão da sua alma, aquele antídoto para todo o tipo de veneno do discurso totalitário e maniqueísta existente. É como se um misto de medo e coragem os impulsionasse a uma descida profunda pelas masmorras de suas paixões, a fim de que eles pudessem vislumbrar uma terceira margem, uma ilha para se abrigar das lutas descabidas e manipuladoras que tanto assolam o mundo cá fora.

Seus autores, o Guimarães Rosa, o Fernando Sabino e o Thomas Mann, claro, possuem muito em incomum, pois criaram estilos, formas e estórias muito diversificadas. No entanto, seus apelos à construção de um ser imaginário que pudesse figurar aquilo que, talvez, estivessem sofrendo em vida fez com que suas criações extrapolassem meros relatos de ficção, e passassem a figurar grandes epopeias modernas acerca das travessias que o sujeito de então enfrenta. Nesse caso, o embate e os conflitos interiores de cada um desses protagonistas se tornaram verdadeiros pontos de densos tratados filosóficos, ao invés de boas representações, comumente em voga, que opusessem classe operária e burguesia liberal. Foram muito além dos inúmeros romances que destinavam as reflexões dos seus leitores a uma compreensão da luta de classes e da conscientização do conceito de ‘mais valia’. O que as trajetórias de Riobaldo, Eduardo Marciano e Hans Castorp aludem é ao infinito problema da utopia da vida, ou seja, da capacidade de criação e de invenção de qualquer ser humano, antes mesmo que ele seja enquadrado pelos discursos, as culturas e as políticas do momento. Uma fuga às batidas dos insones e incansáveis policiais da mente.

Assim, nenhum filósofo dialogou melhor com essas travessias e com essas problemáticas vivenciadas nas leituras que fazemos desses personagens do que Jean Paul Sartre. O continuador das ideias fenomenológicas, que aperfeiçoou a ideia do existencialismo, quer dizer, daquele sentido que indica a possibilidade da escolha do ser humano, ao invés do seu prévio enquadramento via determinismo social ou evolucionismo biológico, foi responsável por abrir ainda mais as veias do pensamento pós-segunda guerra mundial, quando não se acreditava mais em discursos totalitários e homogeneidades sociais. Quiçá, após as suas lutas reflexivas travadas com mentes, ainda ultrapassadas de então, tenha surgido essa abertura que vemos, nos dias atuais, de vários discursos rumo a uma pluralidade que nem de longe parece encerrar-se em apenas duas propostas totalmente antagônicas. O ser acabou por ser mais estilhaçado ainda. Não cabe mais colocar um personagem caminhando em plena corda bamba no alto de dois grandes edifícios, mas agora, me parece, que o ser está caminhando numa corda ainda mais estreita, com diversos nós e saídas possíveis, que ao mesmo tempo em que os sufoca, também lhe oferece mais oportunidades. Também é ilusório acreditar que a simples escolha consciente de um dos túneis escuros abrirá uma claridade inequívoca mais à frente.

Retornando aos personagens-filósofos, pode-se dizer que esses não têm nada a ver com o estilo professoral iluminista e cartesiano de outrora, que carregava as chaves da razão para abrir as portas fechadas com os dogmas medievais, mas antes, aproximam-se mais de um professor aberto ao diálogo e disposto às fraturas do novelo de conhecimento que desenrolam no presente de suas narrações. Vivem suas vidas de modo a não esconder os seus medos, as suas angústias e as suas dúvidas. Exibem, na magistral composição de narrativas de consciência e questionamento que seus mestres autores criaram, as agruras do tempo e do espaço que experienciam. Seja nos momentos em meio à multidão de capitais recém modernizadas, ou na errância pelos vastos sertões das gerais, ou mesmo na exploração das montanhas geladas e pintadas com a brancura da neve, os sujeitos que enfrentam e topam o desafio de adentrar tais paisagens acabam por nos transportar para os vastos mundos que habitam os seus próprios pensamentos. Mundos esses que vemos serem esticados pelo inestimável poder da criação, no momento mesmo em que as suas angústias os apertam e lhes exigem uma alternativa para a continuidade da vida.

É assim que esses protagonistas acabaram por arrebatar os instantes magníficos de encontro entre a trajetória que seguiam e a leitura que propus a fazer. Tenho certeza que a transformação se deu em mim enquanto leitor, sobretudo nos momentos áureos em que tais personagens se viram encurralados numa cena onde o mundo a sua volta exercia uma força descomunal sobre seus pensamentos, lhes impelindo a tomar partido, a escolher uma das trilhas, a abandonarem o ponto alto do muro, para, enfim, deixarem de ser inacabados e dispersivos. Porém, o mais legal disso tudo é que a resistência de tais seres de papel encontraram uma outra saída, não pelas estradas externas, as posições extremamente radicais e já postas, mas por dentro de si mesmos, no sertão profundo do humano e na janela interminável de suas invenções, que ao se misturar com os sonhos, os devaneios e os delírios, acabaram por aumentar os caminhos da vida e do mundo.

Por fim, interrompo esse breve fluxo de minhas memórias de leitor de um jeito diferente de finalizar um texto. Optei por conceder as palavras finais desse pequeníssimo ensaio aos verdadeiros seres de papel que mencionei, os personagens fictícios que deram vida a essas tortas e mirradas palavras que ajuntei aqui. Pois, eles, sim, detêm a real autoridade dos pensamentos que foi possível despertar, tanto nas leituras quanto no texto que aqui se apresentou. Fiquem com as máximas desses filósofos inexistentes e utilizem as suas mágicas palavras como convite para conhecer melhor as suas travessias, lendo os mundos que habitam e que tornaram conhecidos alguns dos grandes escritores do século XX. Mergulhem nas suas solidões e realizem um verdadeiro encontro de almas sedentas pelo conhecimento. Leiam os livros!

"Riobaldo" ('Grande sertão: veredas', de Guimarães Rosa)

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.”

"Eduardo Marciano" ('O encontro marcado', de Fernando Sabino)

“De tudo ficaram três coisas. A certeza de que estamos começando. A certeza de que é preciso continuar. A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar. Façamos da interrupção um caminho novo. Da queda, um passo de dança. Do medo, uma escada. Do sonho, uma ponte. Da procura, um encontro!”

"Hans Castorp" ('A montanha mágica', de Thomas Mann)

“Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos.”

Referências:

MANN, Thomas. A montanha mágica. In: CARO, Herbert (Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Link para texto na web: http://lelivros.website/book/download-a-montanha-magica-thomas-mann-epub-mobi-e-pdf/

ROSA. João Guimarães. Grande sertão: veredas. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

Link para texto na web: http://lelivros.website/book/download-livro-grande-sertao-veredas-joao-guimaraes-rosa-em-epub-mobi-e-pdf/

SABINO, Fernando. O encontro marcado. 96. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

Link para texto na web: http://lelivros.website/book/download-o-encontro-marcado-fernando-sabino-em-epub-mobi-e-pdf/

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 21/01/2016
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