Pérolas aos porcos ou a manutenção da ignorância

Há uma certa corrente ideológica que ganha força, ou que sempre houve e agora volta com muita desinibição no cenário cultural do país, cuja defesa ou bandeira parece, ou só parece, desconhecer a fundo os mecanismos opressores e, por sua vez, paradoxais que mobiliza. Muitas vezes, assumindo uma postura heroica ou justiceira, coletivos, movimentos e sujeitos passam a defender diversas manifestações rasas e extremamente simplórias da cultura de massa, publicando uma opinião que, ao invés de demonstrar algum senso crítico, pelo contrário, acabam por veicular uma salva de palmas à ignorância.

Isso se pode notar nas declarações calorosas que alimentam as redes sociais oriundas de sujeitos que defendem abertamente a voz de “artistas” populares e suas produções que exigem pouco ou nada dos leitores/espectadores/ouvintes, mas que mesmo assim ganham notoriedade no cenário cultural e acabam sendo reconhecidos como ícones da verdadeira comunicação com o “povão”. Num país com índices astronômicos de analfabetismo como é o Brasil, sempre surge um novo cantor ou uma cantora, uma banda ou uma dupla sertaneja, que ainda assumem a pecha de serem “universitária”, para tomar os palcos de shows realizados para multidões de norte a sul. Utilizando-se da internet para divulgar hits fáceis de se afixarem na mente das pessoas, geralmente cansadas da rotina estressante do trabalho cotidiano, com letras pífias que transmitem nenhum conteúdo para reflexão, os novos artistas abundam a cena artística do país e se transformam em heróis de uma legião com pouca disposição à questionar o que consome pela oralidade e pelo visual. Afinal, como bem apontou Theodor Adorno, “a repetição cega e a rápida expansão de palavras estabelecidas une a publicidade à palavra de ordem totalitária.” (2002, p.71-72).

Dois exemplos tristes, mas banais, podem ilustrar o relato. O primeiro deles veio de uma entrevista às previas do carnaval de 2016, quando uma jornalista da Rede Globo perguntou ao cantor veterano, Zezé di Camargo, o que ele estava achando da situação de ser, junto com seu irmão e parceiro de dupla sertaneja conhecida nacionalmente, homenageados por uma escola de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Questão que ele respondeu, como sempre respondem à perguntas parecidas, que era uma emoção diferente e que estava muito feliz. Para contemplar o que estava dizendo, o cantor sertanejo ainda disse que era um encontro feliz dos dois estilos musicais que mais falavam com o “povão”. Ou seja, para ele há um tipo estereotipado de público e muito bem definido que consome a produção da sua arte. Um grupo homogêneo que parece prescindir apenas de músicas que apelam aos sentimentos fáceis e que não necessitam, ou mesmo que não podem, consumir outros tipos de arte, quiçá um tanto mais exigentes com relação à atenção dos ouvidos de classes mais desfavorecidas economicamente. Isso para não entrar muito na questão da própria estereotipia e homogeneização dos estilos musicais, a exemplo do samba, que ele profere em sua declaração.

Um outro fenômeno que serve como modelo do que vem acontecendo, já há um bom tempo no país, com relação a uma massificação de produtos culturais que se autodenominam “artistas”, pode ser visto na ampla adesão que teve um hit de uma banda de arrocha da Bahia, chamada A Vingadora. A música, intitulada “Paredão metralhadora”, invadiu o verão da Bahia, do Nordeste e até do Sudeste, além de ter sido preterida como a música de um dos maiores carnavais nacionais que é o de Salvador. Sendo executada por vários artistas e bandas conhecidas do cenário baiano, a música e seu clipe viralizaram pela internet e passaram a ser uma espécie de cartão de visitas do grupo e de sua jovem vocalista. Uma música que, a exemplo de outras tantas por aí afora nos dias atuais, conta com poucas palavras, que são mal articuladas e ainda carentes de algum sentido construtivo ou incômodo para uma recepção produtiva.

Carregada de um refrão que remete ao cenário bélico, do qual não se sabe a quem se propõe uma guerra, a canção carece de efeitos rítmicos e sensoriais que estimulam o raciocínio do leitor ouvinte. Mesmo que a justificativa seja a mera brincadeira carnavalesca de uma “dancinha legal para se fazer na avenida”, não há nada que prove a reprodução maciça de algo tão superficial, que nem de longe valoriza a imagem da mulher e do seu tal “empoderamento” perante um cenário machista. Novamente, o que se tem é a venda barata de uma imagem de mulher que “rebola”, “senta”, e faz o que estiver disposta a fazer para “enlouquecer” os homens. Aliás, as aspas só indicam que tais vocábulos fazem parte do repertório da banda por serem tantas vezes evocadas nas outras músicas que tocam, confirmando a satisfação dos músicos por virarem chiclete na boca dos consumidores de mass media.

Poderia este texto ser acusado de ser proveniente de um ser humano da classe média, que desde cedo frequentou os melhores colégios particulares, fez cursos de arte e música erudita, e que só está incomodado com os outros seres da classe baixa que estão roubando a cena e invertendo a situação de extrema desigualdade social que, ironicamente, ainda não caiu por terra depois deste carnaval. Mas, não. Este ser também é pobre, não possui casa própria, anda de ônibus coletivo, frequentou escolas públicas de bairros periféricos, e ainda luta para ter uma vida decente.

É por isso que no meio desta discussão não se pode perder o foco, que é discutir qual o real impacto causado pela reprodução maciça deste pensamento tacanho que a mídia ajuda a pulverizar e que os sujeitos das classes mais baixas insistem em tomar como representatividade de si mesmos. Não há nada de empoderamento nisso tudo e nem existe uma mudança social radical, ainda mais pelo péssimo discurso de que há mais músicas que “falam com o povão” ganhando visibilidade. As taxas de analfabetismo continuam absurdas, a pobreza impera como nunca e os preconceitos parecem só aumentar. Inclusive, as agressões físicas e os assédios às mulheres continuaram neste carnaval, mesmo com as tais metralhadoras no ar. É preciso repensar o que se ouve, o que se lê e tomar a decisão consciente do que se deseja consumir, para até não cair no paradoxo de impulsionar manifestações contrárias às suas opiniões atuais.

Pensando ainda em termos de arte, também não se pode deixar de refletir que há questões complexas que permeiam os sentidos desta palavra. Por isso, neste momento, evoco dois pensamentos de grandes escritores que se esforçaram ao máximo para criar uma arte profunda no cenário latino-americano, que são o Júlio Cortázar e o Guimarães Rosa. Dadas as suas devidas proporções, ambos criaram uma obra vasta, com uma densidade e pluralidade de textos, que para muitas pessoas foram considerados herméticos ou distante da capacidade de compreensão da maior parte da sociedade. Acusados muitas vezes de não serem simples e de irem na via contrária das revoluções sociais que aconteciam no continente a partir de meados do século XX, os dois resistiram às suas convicções de que o gratuito e o realismo fácil não seriam formas adequadas de combater as injustiças sociais e, muito menos, que seriam considerados estilos revolucionários. Optaram por atingir e propor a construção de sentidos a partir de outras e diversas realidades, criando textos bem elaborados que exigiam um pouco mais da atenção e da entrega dos leitores. Escreveram sobre gente e coisas simples, mas de maneira sublime, demonstrando que a travessia da leitura provoca a transformação, diferentemente de um panfleto e de uma notícia que estava muito mais preocupado com a mera informação.

Tomo como exemplo as palavras de Cortázar que, em conferência em Paris sobre a arte de escrever contos, disse o seguinte:

cuidado con la fácil demagogia de exigir una literatura accesible a todo el mundo! Muchos de los que apoyan no tienen outra razón para hacerlo que la de su evidente incapacidad para comprender una literatura de mayor alcance. Piden clamorosamente temas populares, sin sospechar que muchas veces el lector, por más sencillo que sea, distinguirá instintivamente entre un cuento popular mal escrito y un cuento más difícil y complejo, pero que le obligará a salir por un momento de su pequeño mundo circundante y le mostrará otra cosa, sea lo que sea, pero otra cosa, algo diferente. (CORTÁZAR, p. 414-415)

Já o nosso Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros e mundiais, disse em certa entrevista sobre qual o tipo de leitor para quem escrevia e que gostaria de ter:

meus livros não são feitos para cavalos que vivem comendo a vida toda, desbragadamente. São livros para bois. Primeiro o boi engole, depois regurgita para mastigar devagar e só engole ‘de vez’ quando tudo está bem ruminado. Essa comida vai servir, depois de tudo, para fecundar a terra. Meus livros são como comida de bois (ROSA apud STARLING, 1999, p. 13).

Bom, a partir de tais excertos, dá para se ter uma ideia de que os artistas da palavra em questão detinham um projeto de intervenção cultural, muito mais engajado do que um projeto de viralização midiática, que é feito via curtidas de Facebook e de amplas reproduções de sons e vídeos de canções sem letra ou de coreografias sem conteúdo via Youtube, prática costumeira hoje em dia. Deixando a questão das especificidades de cada arte de lado neste momento, seja a literatura, a música, a dança ou qualquer outra, pode-se pensar o quanto se regrediu de 40 ou 30 anos para cá, uma vez que é quase escasso nos dias atuais verificar uma gama de pessoas dedicando um pouco de seu tempo para refletir ou mesmo buscar ir além das superfícies dos discursos com os quais interagem.

Caso necessitasse ir mais a fundo nesta questão, poderia se fazer um comparativo com representantes de muita inteligência e sensibilidade que utilizaram as letras, os ritmos e os sons para exigir uma transformação de consciência de seus leitores/ouvintes outrora neste país, a exemplo de cantores como Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso. Eles souberam utilizar o poderoso instrumento da música para driblar os paredões e as metralhadoras da ditadura militar que ficavam o tempo todo à espreita para censurar e punir severamente quem ousasse falar sobre a existência do “povão” e de seus sofrimentos. Fizeram lindas canções com sentidos duplos, mas com o intuito de provocar uma dúvida necessária e revolucionária nos ouvidos a que conseguiam chegar. Transformavam os poucos gados que se arriscavam a escutar vossas mensagens em ruminantes mais dispostos a fazer a mudança social a partir do seu próprio ofício.

Contudo, o que há e o que parece não ter fim é a imensa construção do castelo de horrores, onde pessoas que pouco sabem o que são cifras, notas, cadências rítmicas, assonâncias e aliterações cospem três palavrinhas de duplo sentido, o vulgar e o trivial, no ouvido mouco e acessível do que gratuitamente aceita ser chamado de “povão”. Que a educação do país vai mal e que muitos assumem não ter tido a oportunidade de vivenciar outras possibilidades e experiências mais produtivas de crescimento pessoal a partir da cultura e da arte, tudo bem. Mas que, diante do péssimo quadro pintado todos os dias por uma população que tem um palhaço e um jogador de futebol como os menos piores representantes da política, ainda existam pessoas que se julguem “politizadas” e “cultas” justificando a horrorosa marcha de carnaval além dos 4 ou 6 dias de fevereiro como um manifesto de empoderamento dos que mais necessitam, aí é de metralhar mesmo viu.

Como disse acima o Cortázar, é preciso tomar cuidado com aqueles que defendem o gosto raso e a superficialidade na arte, pois esses parecem ter preguiça de pensar algo diferente e querem que outros tantos sigam o seu exemplo. Ou seja, manter os pobres porcos no seu chiqueiro é melhor do que deixá-los sujar o resto da fazenda. Mas é melhor para quem?

Referências

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. In: ALMEIDA, Jorge Mattos Brito de (Seleção de textos); LEVY, Julia Elisabeth et al. (Trad.). São Paulo: Paz e Terra, 2002. (Coleção leitura)

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Unesco, Paris. p. 403-416.

STARLING, Heloisa Maria Murgel. Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1999.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 10/02/2016
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