Uma breve reflexão sobre a experiência literária

(Apresentado numa mesa redonda intitulada 'Literatura e Vida: escrita e experiência', na 1ª Mostra Conquista Literária, em 2014, realizada na cidade de Vitória da Conquista-BA)

Já dizia em palavras tortas o ‘filosofeta’ do imaginário rosiano, Riobaldo, “(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1967, p. 51-52). Portanto, iniciemos este breve diálogo sabendo da impossibilidade de se chegar a algum lugar seguro, iluminado e determinante, mas, antes, buscando apenas compreender que é a própria travessia, a reflexão em si, o sertão que aqui procuramos. Por isso, começo dizendo que falar da experiência literária é complexo, porém, não impossível. Antes de tudo, é inventar palavras para falar sobre o árduo processo de escrita criativa e imaginária, que geralmente se esconde.

Parto, aqui, do pensamento de um grande ficcionista do século XX, o estadunidense William Faulkner, que, numa visita a São Paulo em 1954, disse em entrevista:

"um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que duas dessas, às vezes até mesmo uma, podem suprir a falta das outras. Comigo, uma história geralmente começa com uma ideia ou memória ou imagem mental."

Ótimo. Vejamos então. É verdade que em outras épocas, bem no auge do século XIX, por exemplo, o texto literário era comumente interpretado pelos seus leitores habilitados como um reflexo da vida do indivíduo que se dispusesse a escrever. A chamada leitura de cunho biográfico-psicológica, ou análise biográfica, para usar uma expressão mais adequada à terminologia histórico-científica do XIX, centrava-se numa busca incessante de indícios e sinais da vida do autor que pudessem explicar a obra literária. Um caso para Sherlock Holmes resolver.

Mas, esse tipo de leitura interessada na biografia do autor ainda não explica a relação entre a experiência e a escrita literária. Portanto, vejamos algumas noções que possam ajudar a refletir sobre o assunto. Preliminarmente, um sentido para se compreender a experiência literária pode ser aquele atribuído pelo poeta francês Charles Baudelaire, apregoador da poética moderna, como muitos afirmam. Para o mesmo, a arte deveria nascer das vivências e das imagens captadas pelos olhos do indivíduo ao vaguear pelas ruas em meio à multidão da cidade moderna, como um observador partícipe, um transeunte, um “flâneur”. O sujeito, então, retiraria do frêmito, da pressa e do instante fugidio dos movimentos incessantes da modernidade os alimentos necessários para a nova arte, buscando eternizar o instante presente através de sua pena ou de seu pincel. Nas palavras do autor de As Flores do Mal,

"poucos homens são dotados da faculdade de ver; há ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor. A fantasmagoria foi extraída da natureza. Todos os materiais atravancados na memória classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica à força de ser ingênua!" (BAUDELAIRE, 1996, p. 23-24, grifo do autor)

Essa visão moderna, de certa forma, acaba por problematizar aquele sentido, de outrora, em que a experiência estava atrelada somente à vivência empírica do sujeito da pena, de corpo e alma transmutada por palavras, como se fosse preciso apenas colher elementos explícitos e implícitos do texto e associá-los a aspectos da vida do autor, para obter uma compreensão “correta” da obra. Há, ainda, quem persista nessa perspectiva. No entanto, já surgiram leituras que optaram por refletir o sentido de experiência muito mais como um mote seguro para iniciar uma peleja entre o sujeito e sua pena com o papel ou, de acordo com os materiais da contemporaneidade, com a página em branco do Word, para não parecermos tão antiquados assim. Apenas um ponto de partida para uma viagem imaginativa, onde a realidade e a vida se transformam em invenção e em mentira verdadeira.

Além disso, não se pode cair facilmente no engodo e esquecer de que o próprio indivíduo que escreve não compreende apenas uma realidade, mas transita por realidades, como a que vive no mundo lá fora e aquela do seu mundo criado cá dentro do texto. Há, ainda, o traço mediador e transformador da linguagem que se utiliza para a criação de imagens, personagens, tempos e espaços diversos. Enfim, tudo isso cria um campo complexo de entendimento sobre a experiência literária e não se pode reduzi-la a meros indícios transparentes e neutros da vida do sujeito escritor no texto.

Mas, a propósito, o que é mesmo experiência literária? Bom, em primeiro lugar, torna-se relevante entender que a própria posição da autoria é um lugar de construção, que pressupõe uma relação entre um produtor, uma linguagem e o estilo de uma época e de uma sociedade, além do próprio receptor da obra, seu leitor. Por isso, logo, vê-se que a experiência literária não se dá de forma totalmente subjetiva, mas, sim, de forma mediada, fragmentária e dialógica. Essa experiência se distingue da vivência do autor, justamente no momento em que ela passa a ser vivida com o outro, ou com os outros, todos aqueles envolvidos no ato da comunicação. A vida do sujeito não é simplesmente expressada de modo aberto e desinteressado, embora essa ideia suscite curiosidade de alguns e ajude a aquecer as vendas do mercado editorial de vez em quando. O autor passa a se dedicar, desde o instante em que a gota de tinta cai no papel, a uma conversação, a uma comunicação e a uma construção social de ideias, impressões e saberes. Para não delongar muito nisso, apenas recordo a grande discussão da segunda metade do século XX, em que críticos e filósofos, a exemplo de Roland Barthes e Michel Foucault, se debruçaram.

Nessa estória toda, o ‘eu’, cartesianamente pensado como acabado e suficiente, sofre uma intensa transformação durante o trabalho de escrita, que fará com que já não seja tão ‘eu’ assim lá na experiência de leitura de outrem. Ou se desdobrará em muitos outros eu’s. Caso típico foi, e ainda é, o do poeta português Fernando Pessoa, pois a sua obra é prova exemplar das disjunções do ser e da fragmentação da voz poética. Vejamos como esta reflexão aparece num dos poemas de seu heterônimo Ricardo Reis:

"Tenho Mais Almas que Uma

Vivem em nós inúmeros;

Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia

Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto

Disputam em quem sou.

Ignoro-os. Nada ditam

A quem me sei: eu 'screvo."

Logo, em seguida, podemos refletir um pouco sobre o tempo da escrita literária, que não se confunde nunca com o tempo da experiência física. Isso porque ao adentrar no universo da experiência literária ou ao mundo da fantasia, da criação e da invenção verbal, o sujeito autor, de certo modo, abre uma fenda no tempo biológico e psicossocial e passa a viver noutro tempo, agora muito mais arbitrário e controlado. Com isso, ao romper as barreiras entre a vivência e a experiência literária, o sujeito comum, que se transforma em autor, modifica-se e acaba vivendo de novo, mesmo que o texto que ele escreva venha a ser, posteriormente, classificado como autobiográfico. Isso porque o seu momento de escrita é o mesmo nas duas dimensões, porém, o que escreve no papel naquele momento não é a mesma coisa que está lá fora, exatamente como a reinventa. Quando se está escrevendo, o autor participa de um mundo em que, mesmo que as coisas representadas nesse mundo existam no mundo físico, elas não serão as mesmas ao mesmo tempo nas duas dimensões. Ou seja, o agora é sempre e nunca ao mesmo tempo. Por exemplo: não posso escrever que está trovejando e acreditar que isso se dá numa simultaneidade perfeita com a realidade sensível, pois não conseguirei prever o tempo exato quando ocorrerá tal fenômeno da natureza. E se vier a escrever que isso está acontecendo, com exceção do mero acaso, só poderei estar pensando numa ação do pretérito ou, então, do futuro, porque é essa a condição que a linguagem concede.

Nesse sentido, a própria ficção nos dá uma imagem da eterna busca pela palavra pontual que nunca virá. É como a narradora-personagem do romance Água Viva, de Clarice Lispector, confessa ao tentar, incessantemente, fixar o “instante já” da coisa através da palavra certa. Assim ela diz:

"agora te escreverei tudo o que me vier à mente com o menor policiamento possível. É que me sinto atraída pelo desconhecido. Mas enquanto eu tiver a mim não estarei só. Vai começar: vou pegar o presente em cada frase que se morre. Agora: (LISPECTOR, 1999, p. 76-7)."

Ademais, não se pode deixar de lado a condição construtiva e extremamente inventiva da memória. Nesse caso, há uma ligação entre o tempo, a linguagem e a experiência literária, que não se pode deixar de lado. Pensemos assim: quando olhamos para as ações e as personalidades que conhecemos dos outros, tentamos esboçar uma interpretação gratuita e segura dos sentidos dessas vidas e não conseguimos muito progresso, mesmo que se esforce imensamente para isso. Imagine agora olhar para a sua própria história e tentar ler o trajeto da escrita da sua própria vida. Além de esbarrar nas ruínas da memória e de buscar reconstruir com cacos os imensos buracos deixados por uma vivência esquecida, ainda tem a questão da plena imersão subjetiva que não permite que um ser veja as coisas com tanta clareza assim. Enfim, a memória passa a ser uma parte especial da experiência literária por que já faz parte da imaginação, da invenção e da criação do sujeito. É como disse Mário Vargas Llosa, escritor peruano ganhador do Nobel de 2010:

"para quase todos os escritores, a memória é o ponto de partida da fantasia, o trampolim que impulsiona a imaginação em seu voo imprevisível até a ficção. Recordações e invenções se misturam na literatura de criação, de maneira frequentemente inextricável para o próprio autor, que sabe, mesmo que pretenda o contrário, que a recuperação do tempo perdido que a literatura pode realizar é sempre um simulacro, uma ficção em que o recordado se dissolve no sonhado, e vice-versa. (LLOSA, 2004, p. 23-24)"

Porém, no processo de invenção, mesmo que diante de variados elementos que impõem a mediação, haverá, ainda assim, sempre um algo particular, subjetivo, fruto da experiência do escritor. Isso porque, ainda que retiremos a distância temporal, a mediação da linguagem e as imagens arruinadas da memória, restará uma bagagem de leitor, fruto de uma experiência individual que jamais poderá ser anulada, o que permite ao artista da pena transitar pelos meandros da criação verbal, a partir de um impulso único que o faça vivenciar essa que é uma das atividades mais libertárias da humanidade - a escrita.

E, assim, de forma abrupta. Antes mesmo de que se pudesse avistar qualquer paragem considerada segura na reflexão artística, algo ilusório, tento estancar o fluxo que impulsiona esse breve instante de ruminação sobre a arte da palavra não com as minhas palavras, mas as de um grande mestre da pena, chamado Carlos Drummond de Andrade. O mesmo, em certa correspondência com outro que viria a ser, anos depois, também um grande poeta, o seu João Cabral de Melo Neto, lhe dá um conselho que podemos tomar emprestado nesse momento oportuno:

"desde que estejamos vivos, as experiências se realizarão dentro e fora de nós, e haverá possibilidade de progredir na aventura poética. O essencial mesmo é viver e acreditar na força formidável da vida, que é nosso alimento e nosso material de trabalho. (CDA, 2001, p. 175)"

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor. In:______. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. In: COELHO, Teixeira (Organizador). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FOUCAULT, Michel, 1969: O que é um autor? In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.280-286.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. In: MAGALHÃES, Cordélia (Trad.). São Paulo: Arx, 2004.

MELO NETO, João Cabral de. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. In: SUSSEKIND, Flora (Org., Apres. e Notas). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.

ROSA. João Guimarães. Grande sertão: veredas. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

Links:

Texto do William Faulkner: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/o-bom-escritor-nao-pede-auxilio-a-uma-instituicao-cultural-disse-faulkner.

Poema do Ricardo Reis/Fernando Pessoa:

http://www.citador.pt/poemas/tenho-mais-almas-que-uma-ricardo-reisbrheteronimo-de-fernando-pessoa.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 22/03/2016
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