Sobre porcos, pérolas e nordestinos

(O escrevinhamento de um Nordestino-pertencente a um Nordestino-envergonhado)

Em 1994, Fernando Henrique Cardoso venceu Lula no Nordeste na eleição para presidente pelo placar de 58,67% a 28,18% (67,55% dos votos válidos) e depois, em 1998, por 48,19% a 29,95% (61,67% dos votos válidos). Antes, Collor havia derrotado Lula, em 1989, com significativo apoio do Nordeste. Nas três ocasiões votei em Lula, portanto, estive do lado dos "perdedores" (como dizemos lá na terrinha: “peguei no cabo da raposa”).

O Nordeste foi protagonista nas quatro vitórias presidenciais do PT (2002, 2006, 2010 e 2014). Também a região fora determinante nas vitórias de Getúlio Vargas (1950) e Juscelino Kubitschek (1956). Dispensável ressaltar a relevância dos dois governos na história do país. Votei no PT quando o partido elegeu seus representantes. Assim, nas derradeiras eleições, meu lado venceu (“eles pegaram no cabo da raposa”).

Obviamente, fiquei satisfeito com os últimos resultados das eleições presidenciais e antes me aborreceram as derrotas que o Nordeste impingiu ao meu candidato. Além dessas derrotas, também me aporrinharam as adesões de Gonzagão à ditadura militar e de Jorge Amado a ACM. Da mesma forma, as críticas ácidas (e no meu entender, injustas) de João Ubaldo a Dilma contrariaram as minhas expectativas em relação ao posicionamento político do meu escritor baiano mais querido. (Poderia passar um dia inteiro relatando dessabores semelhantes, mas creio que esses já sejam suficientes ao meu intuito.) Todavia, em nenhum momento passou por mim a ideia de desqualificar o povo nordestino ou de diminuir (um punhado que fosse) os talentos do “Rei do Baião”, do Amado Jorge (outrora comunista), do criador da obra prima “Viva o povo brasileiro” ou de qualquer outro admirável nordestino que tenha assumido posição que fosse de encontro à minha.

O fato de alguém nascer em um lugar (ou mesmo crescer nesse lugar) não significa que esse alguém pertença a esse lugar. Por certo, o local de nascimento é uma ocorrência independente da vontade ou da ação do indivíduo. A fora as questões metafísicas, a nacionalidade ou naturalidade é o resultado da loteria geográfica. O pertencimento, ao contrário, é fruto de um processo contínuo de percepção crítica, identificação e comprometimento. É, portando, uma construção autônoma, própria do livre arbítrio. Ninguém escolhe onde nascer, mas pode decidir (mesmo que inconscientemente) a que lugar pertencer.

A percepção crítica nos dá a capacidade de recolher, ao longo do nosso existir, as pérolas que nos encantam (acontecimentos, testemunhos, tradições, valores éticos, estéticos, transcendentes físicos etc.) e guardá-las no nosso alforje cultural. A coleção dessas pérolas é a identidade (identificação) cultural de um indivíduo. A cultura de um povo é o conjunto das pérolas mais comuns nos alforjes dos indivíduos que o compõe. E o comprometimento é a defesa dessa riqueza, acumulada em forma de pérolas. Por conseguinte, um indivíduo faz parte de um dado grupo se além das pérolas que lhe são mais caras, ele é também guardião das pérolas mais comuns. Se a pessoa desconhece essas pérolas comuns não há como defendê-las, já que não é possível se compreender como parte do todo. E não se consubstancia o pertencimento. Além disso, o pertencimento não se antagoniza com a individualidade (identificação), já que não há dois alforjes idênticos, senão, faz parte dela.

Todos os indivíduos são capazes, em alguma dimensão, de produzir pérolas. Assim, a convivência, a observação, a comunicação e, sobretudo, a solidariedade e a empatia enriquecem a todos, fazendo aumentar a oferta no mercado de pérolas, que tem como moedas tão somente o tempo e o querer. E é por isso que há uma relação direta (mas imperfeita) entre proximidade espacial e semelhança de alforjes, fazendo surgir a cultura local, que é dinâmica, se transformando a cada novo conhecimento (endógeno ou não). “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe” (Gilberto Gil). De fato, o aumento do saber é também o aumento do querer e do buscar.

Quando um brasileiro desdenha, desqualifica ou ofende o POVO NORDESTINO pelo simples fato de ele ter majoritariamente assumido uma opção (a partir da sua realidade) que difere da escolha de uma elite econômica (egoísta e perversa) – que, com isso, explicita o desejo de estabelecer uma aristocracia-material, de fato, em um ambiente de democracia de direito –, intuo que, além da incapacidade da empatia, a ignorância lhe serve como um poderoso entorpecente, fazendo com que um tolo preconceituoso (incapaz de superar a sua mixórdia e indolência cognitiva) se perceba sábio quando na verdade é só um idiota instruído (quando muito).

Quando um nativo do Nordeste expõe publicamente sua “vergonha”, também pelo fato de os seus conterrâneos (de direito) não adotarem suas certezas encasteladas – chegando ao ponto de nos comparar a porcos famintos, adoradores dos nossos (supostos) algozes, por também serem eles quem nos alimentam –, constato que esse Nordestino-envergonhado, além de ter sido acometido pelos mesmos males da ignorância e do egoísmo já expostos, é absolutamente desprovido do sentimento de pertencimento ao Nordeste. Seu alforje não contém nossas pérolas comuns. De outra forma, como explicar a absoluta falta de solidariedade, empatia e respeito aos seus irmãos? Como explicar o carecimento de espírito democrático para aceitar a vontade da maioria dos que deveriam ser seus pares? E ainda, como explicar a ausência no irmão da altivez inerente ao POVO NORDESTINO?

Assim, irmão Nordestino-envergonhado, eu, um Nordestino-pertencente, lhe trago uma boa nova: não há mais porque se envergonhar, pois vergonha é um sentimento percebido a partir do resultado das nossas próprias ações (ou das ações dos nossos próximos), e como sua escolha vai de encontro à maioria e de fato você não é um Nordestino-pertencente, então o “filho feio” não é seu. Você até pode ter nascido no Nordeste, por obra e graça (ou desgraça, ao seu olhar) da loteria geográfica, mas, definitivamente, o irmão não pertence ao Nordeste. Pois, “só é [nordestino] quem trás no peito o cheiro e a cor da sua terra, a marca de sangue dos seus mortos e a certeza de luta dos seus vivos”(1) (Vital Farias).

E, assim sendo, o irmão está alijado do sentimento da vergonha e livre e habilitado para galgar um pertencimento mais “nobre”. E “Que Deus te guie porque eu não posso guiar” ou “Que [Joaquim Nabuco o] resgate”(2) (Caetano Veloso). Só não ofereça as nossas pérolas aos porcos reacionários e racistas, tão corriqueiros ultimamente nas mídias sociais, pois elas são o tesouro dos Nordestinos-pertencentes.

Axé a todos e Inté intão (Uai sô, tô vivendo em Belzonte e já juntei um cadin de pérolas de cá também. Mas meu alforje é grande e não precisei, e nem vou precisar, me desfazer das minhas boas e antigas joias!).

Notas:
(1) Aforismo original: “Só é cantador...”.
(2) Verso original: “Que Chico Buarque de Holanda nos resgate”.
(3) Este texto foi produzido logo após os resultados das eleições 2014, mas serve como resposta a todos que, em um momento de derrota eleitoral, tentam desqualificar o contraditor adotando o discurso fascista e antidemocrático, independentemente do resultado eleitoral ou da ideologia de cada um. É uma ode ao direito de escolha do indivíduo e ao respeita à vontade popular. Em Salvador, ACM Neto acaba de ser reeleito já no primeiro turno. Em São Paulo, o moderno e visionário Haddad foi derrotado pelo pulha Dória. Lamento imensamente os resultados (assim como tantos outros), mas em nehum momento vou desqualificar soteropolitanos, paulistanos ou a população de qualquer outra localidade brasileira pela sua escolha (02/10/2016).