TODA MUDANÇA SURGE DE UMA NECESSIDADE

"Plenitude é guerrear pelo que almejamos, e ser o melhor que conquistamos." Dudu Fagundes, o Maestro Das Ruas.

TODA MUDANÇA SURGE DE UMA NECESSIDADE e quando abri a porta da geladeira naquela manhã, só havia água quente, notei que até a luz tinha sido cortada..."

"... a executiva da Multinacional me ligou em tom de riso:

-Você já viu seu saldo bancário hoje?

Nunca havia visto tanto dinheiro na vida"

Entre essas duas informações há uma longa historia... vamos a ela!

Embora eu tenha um histórico como professor, as minhas aulas nunca foram muito convencionais. Como músico empírico, transformei a minha casa e a casa de muitos artistas da minha comunidade, uma das pobres do Rio de Janeiro, em poderosas oficinas de arte, cultura e esportes. Pessoas de todas as idade, que como nós viviam abaixo da linha de pobreza, tiveram a possibilidade de estudar cinema, música, teatro, artesanato, confecções de instrumentos, artes plásticas, capoeira e diversas outras modalidades artísticas e esportivas gratuitamente, a única exigência que fiz: "quem sabe mais, é obrigado a ensinar a quem sabe menos", e assim centenas de vidas foram totalmente transformadas por uma rede analógica de difusão de aprendizagem. Mas para chegar a esse ponto foram anos de uma batalha solitária, montado em uma bicicleta velha, pedalando pelos becos e vielas da comunidade de Senador Camará, o maior conjunto de favelas em extensão geográfica do Rio de Janeiro. Convencendo pessoas, batendo de porta em porta, clamando por socorro à minha gente pobre, corroída pelas mazelas oriundas da miséria e do descaso. Graças a Deus consegui! Transformei a minha favela numa enorme oficina de difusão de conhecimentos e transformação de vidas!

EM UMA MANHÃ DOS ANOS 90, abri a porta da geladeira e só havia água quente, notei que até a luz havia sido cortada. O olhar de reprovação do "Porf", meu cachorro "poodle" a reclamar sua comida sempre em falta, me dizia claramente que era hora de mudar. Ajoelhei-me no chão da sala e entre lágrimas, lambidas de carinho e de fome do meu pequeno cão, gritei aos céus o meu pedido mais sincero e desesperador:

-"Deus eu preciso de uma ideia!"

E o milagre aconteceu! Levantei-me imediatamente. Deixei meu cachorro na casa dos meus pais, pulei o muro da linha férrea, entrei de carona no primeiro trem e fui parar no centro metropolitano do Rio de Janeiro, bem na porta da Escola Nacional de Música da UFRJ, local onde os compositores registram suas composições. Dali em diante, passaria a escrever partituras musicais para os artistas das ruas, os que pudessem pagar ou não pelo meu serviço. Queria era construir uma enorme rede de relacionamentos. Passei seis meses sem conseguir um cliente, comendo o que conseguia pela rua, sem dinheiro para voltar para casa, sofrendo humilhações. Até que veio o primeiro cliente, Paulo Carnoth, um angolano fugindo da guerra civil que assolava seu país. Por incrível que pareça, ele estava em condições bem piores que as minhas, pois eu passava fome mas estava em meu país. Ele tentou arranjar trabalho, pediu ajuda a muita gente, mas nada conseguiu. Até ser ameaçado de expulsão do Brasil. Eu, que sempre vi na dificuldade uma oportunidade de crescimento, prometi que o sustentaria enquanto ele estivesse no meu País. O meu amigo angolano ficou extremamente grato e emocionado. Mas logo em seguida o pobre coitado tomou um enorme banho de água fria ao confessar-lhe também as minhas dificuldades. Só que ao invés de chorar, reclamar, se revoltar, nós fomos à luta! Passei a ensinar-lhe música, ambos sentados no meio da rua, invisíveis aos olhos da multidão de transeuntes do centro da cidade. Ele aprendeu muito rapidamente. O aconselhei a valorizar suas raízes e que compusesse algumas musicas em dialetos angolanos. Ele assim fez. Um dia liguei para um amigo que tinha um pequeno estúdio de música em um bairro muito distante do centro. Pedi-lhe que me emprestasse seu estúdio para gravar os sons do ex-soldado angolano. O amigo do estúdio me cedeu o espaço gratuitamente, mas só durante seu horário de almoço. Corri para lá com meu amigo angolano. Primeiro gravei suas trilhas de voz à capela, somente dentro do tempo e do tom de cada música. Depois toquei todos os instrumentos, mixei tudo rapidamente, a ponto de entregar o estúdio ao dono do espaço que acabara de chegar do almoço. Maravilha, estava pronto o Cd com o qual o meu querido irmão de Luanda iria galgar os degraus do mundo. Arrumei uma grana emprestada, fiz diversas cópias desse compacto e entreguei tudo nas mãos do novo artista. Não lhe pedi um centavo sequer, queria apenas que ele vendesse os cds de porta em porta e garantisse seu sustento na caríssima Babel carioca. Mas para o meu desespero, em poucos dias o pobre angolano desapareceu. Fiquei muitíssimo preocupado, fui em vão a todos os lugares a sua procura. Estava certo de que havia sido pego pelas autoridades e levado forçosamente para Angola, onde certamente morrera fuzilado por alguma milicia inimiga.

O tempo passou e um dia recebi noticias dele. O meu irmão de Luanda parecia ter ressurgido das cinzas, trazendo a força, a raça e o velho orgulho africano! A História que vou contar agora é realmente inacreditável. Com o dinheiro das vendas do Cd, ele foi parar na Inglaterra, onde conseguiu asilo político, apoio, respeito, dignidade, cidadania, se formou em uma das melhores universidades da Grã-Bretanha, casou-se com uma inglesa, teve dois filhos ingleses e é dono de um poderoso estúdio onde só produz música africana de raiz! Hoje quando vou a Londres, ele me recebe com uma super BMW maior que os banheiros da Escola Nacional de Música da UFRJ, local onde eramos proibidos de entrar nos anos em que vivíamos na rua. Quando desembarco no "Heathrow", o maior aeroporto de Londres, ele sempre me recebe em companhia de sua família, me abraça e diz:

-"irmão, venha morar cá na Inglaterra, eu quero fazer por ti somente a terça parte do que tu fizestes por mim."

E eu sempre lhe agradeço por nossa irmandade que atravessa décadas. Mas amo viver no Brasil, onde tenho que comandar a minha empresa de artes, que começou em um velho banquinho no meio da rua e hoje conta mais de 45 mil clientes espalhados pelo Brasil e pelo mundo.

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 22/06/2017
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