O Sussurro do Vento

A porta bateu com força, mas dessa vez Ian não protestou. Ouviu o som da chave girando as engrenagens da fechadura e continuou imóvel. Geralmente, o garoto corria até a saída bloqueada e batia na madeira da porta até que as mãos doessem. Naquele dia, ele não tinha vontade de fazer isso, sabia que não adiantaria de nada.

Ian odiava ficar no escuro. Sentia-se preso, claustrofóbico e observado pelas sombras, mas Moira não tinha pena alguma. O garoto teria que cumprir o castigo de qualquer modo. Ela não se importava com seus medos bobos de criança.

Ele tentou engolir as lágrimas, mas a dor das marcas, que o cinto deixara em suas costas frágeis, e a tristeza reverberavam por todo o corpo, causando-lhes soluços audíveis, dos quais Moira classificava como "o som mais irritante da face da terra". Seus braços também doíam, mas Ian não se lembrava como os havia machucado. Talvez quando tentava impedir um novo golpe furioso da mãe, quem sabe.

Dirigiu-se até a cama, procurando não olhar para os cantos mais sombrios do quarto. Subiu, agarrando-se as cobertas desbotadas e se colocou de pé. O teto era baixo até mesmo para uma criança de cinco anos e Ian sabia que o que chamava de quarto, na verdade era só o sótão. Não que isso o incomodasse.

Precisou subir na cabeceira para alcançar a janela no alto da parede e mesmo com o tamanho reduzido do recinto, teve dificuldade em alcançar o fecho da janela com seus dedinhos curtos.

Uma vez aberta, o vidro escuro levantou e um feixe da fraca luz da tarde entrou no quarto. Ian inspirou fundo o frio ar canadense, sentindo-se um pouco mais aliviado. Tudo o que podia ver dali era parte do quintal do vizinho, cercado por pinheiros grandiosos, que cresciam num gramado verde e denso. Havia uma casinha, onde dormia um cachorro gordo e preguiçoso, além do que Ian achava ser um taco de baseball, quase perdido em meio a grama.

Ele não entendia porque não podia ser como os outros garotos. Ter uma família feliz, sair para brincar com os pais, ou ter um cachorro. Não entendia porque Deus havia lhe dado a Moira, se ela parecia não o amar. Esquecia até mesmo de alimentá-lo, às vezes.

Naquele dia, Ian havia tentado ser como todos os outros. Sua turma do jardim de infância faria algumas atividades em Wellington Beach, a praia que ficava a apenas cinco minutos de caminhada dali. Como a mãe havia deixado bem claro que não estava disposta a acompanha-lo, Ian resolveu arriscar e ir sozinho. Obviamente, não tinha dado certo. A Senhora Gulliewer não pensou duas vezes em telefonar para Moira e a expressão dela, mais tarde, ao encontra-lo ali, não era nada agradável. Assim como não havia sido nada agradável a "conversa", que tiveram na sala. Onde o estalar do cinto contra a pele era o mais próximo de uma palavra dita por Moira.

Ian respirou fundo mais uma vez. Apesar de toda a sua raiva, tristeza e revolta, da dor ardente espalhada pelo corpo, não queria continuar a chorar. Fechou os olhos, e imaginou uma cena feliz, onde brincava com um amigo nos balanços do parquinho da praia, tentando assim apagar da memória o terrível episódio onde alguém ria dele quando a mãe apareceu enfurecida para busca-lo.

Talvez, Ian pensou, ele fosse mais feliz se tivesse um amigo. Alguém na vizinhança, ou escola, com quem pudesse brincar e conversar. Talvez, mas ninguém queria ser amigo de Ian, sabe-se lá porque.

O vento soprou com força, sem aviso prévio, surpreendendo o garoto que se agarrava ao parapeito da janela quando jogou seus cabelos escuros para trás. Ian precisou segurar firme para não desabar na cama e sentiu um arrepio estranho percorrer o corpo.

Em seguida, a porta do armário abriu na penumbra, com um rangido longo e alto. O ambiente adquiriu uma atmosfera densa, que deixava claro que algo estava diferente. Ian sentiu a mudança de imediato, algo no ar possuía um cheiro doce e esquisito, como a seiva fresca de pinheiro. O silêncio se tornou tão profundo quanto a caverna em que Slonfor, o personagem de desenho favorito de Ian, morava. E continuou assim, até que a porta do armário se fechou, emitindo o mesmo ruído.

Com os batimentos acelerados no peito, Ian desceu da cabeceira e se enfiou no meio das cobertas. Sempre temera o escuro e agora o fazia mais do que nunca. Arfava de medo, mas não havia ninguém a quem recorrer. Moira era bem capaz de bater nele de novo para que ficasse quieto.

Minutos se passaram e Ian não se moveu. Segurava as cobertas firmes ao seu redor, esperando por um novo som, mas nada aconteceu. Apesar disso, ele continuava a tremer de medo, pois mesmo que não pudesse ver quem quer que se escondesse no escuro do seu quarto, podia sentir a sua presença. Tão material que chegava a ser como se lhe tocasse o corpo.

Quando o ar embaixo dos tecidos grossos começou a faltar, Ian não pôde continuar esperando. Repetiu para si mesmo que havia um esquilo no seu armário, tentando se convencer a qualquer custo. Devagar, colocou a cabeça para fora dos lençóis e encarou o quarto a sua frente.

A porta continuava trancada, tudo permanecia escuro, exceto pelo feixe de luz que entrava pela janela aberta. Contudo, Ian não estava sozinho. Seu olhar encontrou o dele e congelou, devido ao pavor puro. O coração do garoto bateu forte, o suficiente para fazer o peito queimar. Um grito travou na garganta e as pálpebras recusavam-se a fechar. Era a pior sensação que a curta vida de Ian já havia lhe proporcionado.

Não podia ver muito do visitante, apenas tinha a noção de que ele estava ali, mas ao mesmo tempo estava tão distante desse mundo que chegava a não pertencer a ele. Isso era o mais aterrorizante. Ian sentiu-se tonto, a ponto de desmaiar, mesmo não sabendo dar esse nome ao mal-estar.

"Porque está chorando?" Perguntou o ser das sombras, sem tocar a luz vinda do lado de fora.

Ian sentiu a lágrima quente rolar pela bochecha. Não se dera conta, mas voltara a chorar como a criança medrosa que era. Pensou em correr, mas notou as pernas tremendo embaixo das cobertas. Além disso, para onde poderia correr? Estava preso ali.

"Porque está chorando?" Perguntou o visitante, mais uma vez. Agora, usando uma voz calma e infantil, assim como a de Ian. Aquilo o acalmou um pouco.

"Quem... Quem é você?" Rebateu o garoto, gaguejando. Esse era um de seus hábitos, se livrar de uma pergunta fazendo outra.

"Seu amigo." O visitante respondeu, aproximando-se e parando ao pé da cama. Ian ficou alarmado, mas não tentou impedi-lo.

"Amigo?" Indagou ele, confuso.

"Sim. Não era isso que queria?"

Ian acenou positivamente com a cabeça e o visitante subiu na cama, com movimentos suaves e fluídos. Ian tentou imaginar se ele o faria algum mal, mas não conseguiu chegar a nenhuma descrição. Ele era tão diferente de tudo, além da sua compreensão. Entretanto, Ian também era diferente. Ele não era como as crianças da escola, não se comportava como elas, não conversava com elas e elas não gostavam dele. Talvez, Ian e o estranho pudessem ser amigos, já que ambos eram diferentes.

"Qual é o seu nome?" Indagou o garoto. Nome era algo importante.

O visitante pareceu não entender.

"Não tenho um."

"Como não?" Perguntou Ian, surpreso. "Todo mundo tem um nome. O meu é Ian Foster." Completou. Sentia-se levemente mais confortável, menos amedrontado pela presença vinda do armário.

"Ian Foster..." Repetiu o visitante, como se saboreasse prazerosamente cada sílaba pronunciada. Por um momento, sua voz soou muito mais rouca, como a de um homem velho que aparecia na Tv, quando Moira assistia novelas. Imensamente diferente da voz infantil que tinha um segundo atrás. A variação durou pouco, foi tão rápida, que Ian achou ter só imaginado aquilo quando o ouviu continuar: "Bem, não tenho um nome. Pode me dar um?" Pediu.

Ian concordou. Não precisou pensar muito. Lembrou-se do desenho favorito, sobre leões marinhos que viviam numa caverna. O melhor amigo de Slonfor se chama Dave, e Ian concluiu que aquele era o nome perfeito.

"Se é assim, Dave é o meu nome!" Concordou o estranho, com demasiada euforia, chegando ainda mais perto do garoto, que agora já havia baixado a guarda completamente.

"Shhhhh" Ian o repreendeu. "Minha mãe não pode saber que está aqui. Ela machucaria a nós dois e o mandara embora para sempre."

Dave pareceu se divertir. " Não se preocupe. Ela não pode me ver. Na verdade, ninguém além de você pode."

Aquilo o deixou curioso. "Como? Sabe fazer mágica?"

"Sou feito dela." Afirmou Dave e Ian não tinha dúvidas sobre isso. Olhou bem para ele, tentando encontrar qualquer traço humano, qualquer semelhança com uma pessoa, ou qualquer traço que pudesse pertencer a um rosto, mas não havia nenhum. Só sombra, organizada de forma confusa.

"Legal." Foi tudo o que conseguiu dizer.

Ouviu-se passos na escada. Moira deveria estar subindo até o sótão para tirar o filho do castigo.

"Minha mãe está vindo" Constatou Ian, embora que Dave parecesse ter notado isso.

"É melhor eu ir." Disse ele, descendo da cama.

"Você vai voltar?" Perguntou Ian, antes que se desse conta do que dizia.

Dave pareceu satisfeito com a pergunta e voltou para perto do garoto. Mais próximo do que antes.

"Quer que eu volte?" indagou ele, num sussurro baixo.

"Bem... é que você disse que seria meu amigo. E amigos visitam um ao outro." Explicou, sem jeito.

"Vou voltar." Respondeu Dave. "Mas preciso que queria que eu volte."

Ian não notou o tom malicioso contido naquela voz, nem entendeu o que deveria fazer.

"Diga." Comandou o visitante.

"Eu quero que você volte, Dave." Ian obedeceu e no mesmo momento, sentiu que tinha feito algo muito ruim.

Primeiro, ouviu um rugido animalesco, como bolhas explodindo no fundo da garganta de uma pantera. Depois, Dave saltou em cima dele, empurrando seu peito e forçando-o a ficar deitado.

"Você disse que era meu amigo!" Protestou Ian, tomado novamente pelo medo, já sentindo as lágrimas brotarem novamente nos olhos. Algo queimava onde Dave o tocava.

"Shhhhhhh" exclamou o visitante, assim como o garoto fizera pouco tempo atrás, silenciando-o ao pressionar os pequenos lábios rosados. "Sou muito mais do que isso agora." Disse Dave. A voz rouca estava ali outra vez. Clara, real e macabra. "Eu sou você e você sou eu. Para todo o sempre." Completou.

Em seguida, as sombras tomaram a visão, a mente e o corpo de Ian, arrastando-o por um espiral de desespero contínuo, até que sua consciência fosse totalmente adormecida.

Quando Moira abriu a porta bruscamente, encontrou o garoto enrolado nas cobertas. "Sei que não está dormindo, ouvi você falando." Disse ela, e ao se aproximar, constatou que de fato, Ian não estava dormindo. Estava gélido e inconsciente.

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Oi pessoal, esse é o prólogo do meu livro, O Sussurro do Vento. Ele está disponível e completo no Wattpad. Caso tenham gostado e queiram continuar a leitura, é só acessar esse link aqui: https://www.wattpad.com/story/77241593-o-sussurro-do-vento

lsguilherme
Enviado por lsguilherme em 02/08/2018
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