O que é arte - Obra

Quando eu tinha uns doze anos um amigo próximo, o Felipe (atualmente Silver), me mostrou um tipo de jogo que me impressionou muitíssimo: os jogos de interpretação (Role Play Game, RPG). Muitos anos depois, nos fantasiamos de vampiros, cada um de acordo com seu clã. Eu era Ventrue. No meu dia a dia andava descalço, completamente à vontade e até descuidado. Na noite da ‘live action’ me vesti impecavelmente. Nem meus amigos me reconheceram. Esporte fino era pouco para me descrever, passei gel no cabelo, peguei roupa social emprestada com meu tio Paulo. Ah, se ele soubesse que que sua roupa mais chique voltaria manchada de sangue… Nossos jogos eram erráticos, nossas aventuras eram descontinuadas. Gostava mais de fazer personagens e de ficar revisitando o universo apresentado pelos livros do que de jogar. Até hoje pegar ‘Lobisomem o apocalipse’ me encanta extraordinariamente. Na capa do livro vinha marcas de uma garra! No começo há uma história em quadrinhos introduz ao universo do Lobisomem. O livro é recheado de ilustrações e citações. Conhecemos o universo (a cosmologia em que o mundo se passa), mas conhecemos sub universos (o de cada tribo).

Há uma descrição racional: uma escrita descreve e explica as regras do mundo. Também há uma descrição empática: através de desenhos, narrativas e poesias a arte explica o mundo em seus tons emocionais. Nas páginas finais, harmonicamente junto ao texto, há o desenho de dois lobisomens. Sempre que viramos a página vemos uma trecho de sua luta. A narrativa visual é tão boa que a sensação é a de ver a luta ao vivo. Cada um dos desenhos é suficiente em si mesmo. Mas também é parte de uma narrativa maior: a luta. Que por sua vez faz parte de outra narrativa ainda maior: a descrição da cosmologia do Lobisomem. A descrição de cada golpe está no livro de regras. Mas cada desenho demonstra como é o golpe, e a sequência de desenhos mostra como é uma luta. O livro ‘Lobisomem - o apocalipse’ é um livro de regras, mas também um grande mosaico artístico.

Temos uma visão clara dos limites de uma obra de arte. Em um filme, por exemplo: tudo aquilo a que o título e os créditos fazem referência são uma obra. O poeta Paulo Leminsky publicou ‘Distraídos Venceremos’, neste caso a obra de arte é o próprio livro. Em Girassóis, do Picasso, toda a pintura é uma obra de arte. Uma música é aquilo que está dentro do arquivo em MP3. Entretanto, quando começamos a investigar sistematicamente a divisão fica um pouco mais complexa: uma música é uma obra de arte. Mas em um clipe, o vídeo é uma obra de arte e a música é outra? E o que acontece quando um intérprete mistura duas, três músicas? Ele interpretou três obras ou apenas uma?

No ensaio anterior propus que um DJ é um artista da mesma maneira que um diretor de cinema. Em alguns filmes toda contribuição do diretor é indireta: o roteiro, a atuação, a direção de arte, a fotografia, o desenho de som, a trilha sonora, a produção e todo o mais são feitos por outros. De maneira análoga o DJ trabalha com músicas de autoria de outros. Mas ao botar o som há um investimento de algo extremamente pessoal. Neste ensaio a questão que abordo é: o que é uma obra de arte? Onde e quando uma obra começa? Onde e quando ela termina? Será que cada um dos desenhos que compõem a luta dos lobisomens é uma obra? Será que alguns versos soltos de uma poesia são uma obra de arte? Será que os trechos de música que o DJ toca são uma obra de arte ou apenas as músicas inteiras? Será que a interpretação de um ator em um filme é uma obra de arte? Será que as cores nos filmes do Almodóvar são uma obra de arte? Será que apenas um solo em uma música é uma obra de arte? Generalizando: será que trechos de uma obra são destacáveis e podem ser vistos como obras de arte? Ou ainda: será que uma playlist pode ser vista como uma obra de arte? Um disco pode ser visto como uma obra de arte? Um livro de poesias selecionadas? Um filme? Uma mostra de cinema? Uma exposição de gravuras? Será que o livro de regras ‘Lobisomem - O apocalipse’ pode ser visto como uma obra de arte? Generalizando: será que a reunião de obras de arte podem ser consideradas uma obra de arte?

O objetivo deste ensaio é definir os limites de uma obra de arte. Para tal é necessário definir genericamente dois tipos de pessoa: as que fazem a obra (artistas) e as que consomem a obra (espectadores). Para o artista a obra de arte é aquela na qual há o investimento de si mesmo no que há de mais pessoal. A experiência artística se dá através da expressão. Para o espectador obra de arte é aquela que lhe proporciona uma experiência artística. Ou seja, para o espectador obra de arte é aquela em que através de elementos reconhecíveis ele apreende algo de extremamente íntimo ao autor da obra. Definirei precisamente este “algo íntimo” que o artista põe na obra e que o espectador apreende no ensaio “Experiência Artística”. Apenas para instigar vou adiantar um pouco: o que o artista diz conscientemente serve de veículo a este algo íntimo.

Você já leu um livro que te deu um encantamento impossível de se por em palavras? Por acaso aconteceu de, neste livro, ter um trecho que sozinho te encantou muito? Amei o livro ‘Desonra’. Nele há um capítulo em que o personagem principal vai visitar os pais de uma ex-aluna com quem ele teve um caso. O livro como um todo me proporcionou é uma obra de arte, mas apenas o capítulo também é uma obra de arte - na medida em que me proporcionou a experiência artística. A experiência artística, tal como a proponho, pode ocorrer múltiplas vezes. Da mesma maneira uma música: ela sozinha pode me proporcionar uma experiência artística - e por isto ser uma obra de arte. Mas o seu contexto maior (como um show ou uma playlist) também pode me proporcionar uma experiência artística e, portanto, ser uma obra de arte.

Defendi em outro ensaio que existe subjetividade (de acordo com o entendimento individual) e intersubjetividade (de acordo com o entendimento coletivo). Objetividade (uma verdade para além da elaboração) é uma ilusão. Ainda assim é possível o aperfeiçoamento do conhecimento - seguindo, por exemplo, o negativismo do Popper. Uma obra de arte tem, necessariamente um elemento intersubjetivo (que tanto o artista como o espectador reconhecem) como o elemento subjetivo (particular ao artista). Quem consome uma obra reconhece o elemento intersubjetivo e, através dele, apreende algo subjetivo ao artista. De maneira muito semelhante a quem apreende uma sintaxe de uma língua. Entretanto, ao aprendeendermos uma frase estamos aprendendo uma língua. Ao apreendermos uma obra de arte estamos aprendendo um sistema de navegação de conhecimento. Estamos aprendendo uma meta língua, a língua das línguas. Aquela com a qual atribuímos sentidos ao que a vida nos apresenta.

Concluindo: obra de arte é diferente para quem produz a arte e para quem a consome. Para o artista é aquela obra na qual ele se investiu em algo muito pessoal. Para quem consome é aquela obra que permitiu a experiência artística. A experiência artística é a leitura do uma obra na qual o espectador tem acesso a algo intersubjetivo (comum ao artista e ao espectador) e a algo subjetivo ao artista. Ao apreender o sistema de navegação do artista (subjetivo) há a experiência artística. Assim um verso, uma música, uma playlist ou um show são obras de arte se proporcionarem a experiência artística. A designação ‘obra de arte’ é relativa a quem consome. Então uma música pode ser uma obra de arte para mim e ser insignificante para você, depende da experiência que cada um de nós vive a música. Trechos de obras de arte, se me proporcionarem uma experiência artística, são obras de arte: uma interpretação em um filme, o vídeo em um clipe. Da mesma maneira reuniões de obras (como uma exposição de quadros ou uma playlist) podem ser uma obra de arte para mim se elas, como um todo, me permitem a experiência artística. Um texto científico pode ser muito interessante, muito significativo. Entretanto ele só será visto como uma obra de arte se também comunicar algo subjetivo ao escritor. Você gosta de ler textos científicos? Você já teve uma experiência artística lendo um? Será que isto é possível? E este ensaio, te provoca, te acrescenta, te seduz, te proporciona uma experiência artística? Ou apenas te acrescenta em seus conhecimentos intersubjetivos? Ou - espero que não - é insignificante para você? Se puder me diga o que achou:

chicoacioli@gmail.com

“De uma pilha de volumes empoeirados,

Peguei o do topo e o folheei

Tremendo ao ler suas palavras curiosas

Que pareciam guardar segredos apavorantes”

H. P. Lovecraft

Retirado de Lobisomem - O apocalipse

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 05/09/2018
Reeditado em 24/10/2018
Código do texto: T6440034
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