O que é arte - Contexto e críticos de arte

Um dia meu primo, Miguel, me mostrou um desenho que um colega fez. Ambos cursavam artes plásticas. Durante uma aula chata Taigo fez um desenho dividido em duas partes. Havia uma bolinha de papel no chão. No lado direito do papel ele desenhou esta bolinha. Você já tentou desenhar uma bolinha de papel? Eu nunca, tenho certeza de que é bem difícil. Tem sombras, volume, traços… Só esta parte do desenho me maravilhou! No lado esquerdo havia uma rosa. Havia algo em comum entre a rosa e a bolinha de papel, uma semelhança difícil de explicar. Miguel me disse que Taigo desenhou a flor a partir da bolinha de papel. Fiquei embasbacado. Uma vez fui a uma exposição dele em que as pessoas eram desenhadas uma parte com volume, uma parte em traços. Me encantou. Falei para ele que, para mim, os desenhos são melhores do que os do Leonardo da Vinci. Percebi o desconforto dele. É verdade, se for para ignorar o valor financeiro da obra eu preferia ter na minha casa um dos quadros do Taigo do que aquela moça sem graça (Monalisa).

Na exposição fiz algumas perguntas, gostaria de entender um pouco aquelas obras. Percebi que ele se enrolou. Começou a dar uma explicação meio complexa, tropeçando nas ideias… Pode ser que ele tenha se sentido pressionado e a timidez o tenha feito perder as palavras. É o tipo de coisa que acontece comigo. Por que minha pergunta teve um peso tão grande a ponto de desconsertá-lo? Eu já o aprecio como artista, é desnecessário um texto a mais para me convencer de que ele é foda. Afinal de contas, uma obra de arte é suficiente em si mesma, não é mesmo? Ou será que as justificativas de um artista ou as explicações de um crítico de arte conferem valor a uma obra?

Um dia conheci um clipe do grupo ‘A banda mais bonita da cidade’. Em ‘Oração’ câmara vai acompanhando o Leo Fressato por uma casa. O clipe todo repete poucas melodias e versos. Em cada cômodo alguém o esperava cantando e tocando. Sempre as mesmas notas, a mesma letra, mas a cada vez com o toque pessoal de voz, de instrumentos e de entusiasmos particulares a cada um. No fim todos se juntam na sala em uma grande comunhão artística: todos aqueles instrumentos trazem sua própria riqueza, todas as pessoas trazem sua própria energia. A filmagem é em apenas um take, tudo “ao vivo”, uma coreografia de câmara e músicos em uma luz espetacular. Me apaixonei pelo clipe, me apaixonei pela música. Anos mais tarde me disseram que a filmagem virou um clipe por acaso. Uma pessoa estava prestes a morrer. Os amigos, em uma homenagem derradeira, se reuniram para fazer um vídeo de despedida. Nossa… o significado da música e do clipe mudaram! A letra fala de uma última oração para salvar seu coração. É quase literal. Vamos salvar seu coração, coração que é mais complexo do que imaginamos, que cabe várias vidas, que cabe uma penteadeira. Nossa, como divaguei em relação a esta penteadeira. Com certeza ela teria um valor muito grande para este amigo que estava morrendo. Seria a penteadeira de sua avó? Seria a penteadeira de seu amor? Seria onde escondia seus segredos na infância? Procurando na internet descobri que esta informação é falsa. Toda aquela carga emocional era um equívoco. A música é a mesma. O clipe é o mesmo. Mas o contexto foi mudando conforme as informações foram chegando.

Isto acontece pois a obra é a ligação de três lados: um é o da pessoa que consome a obra (a espectadora). O segundo é o da obra de arte (neste mundo encontramos o investimento pessoal da artista). O terceiro é o do mundo. Já escrevi um ensaio sobre subjetividade e intersubjetividade. Nele defino subjetivo: o que é único a cada pessoa. Também defino o que é intersubjetivo: comum entre o artista e quem consome a obra. Há um terceiro elemento que chamo vagamente de ‘mundo’. A maneira que o mundo se apresenta a cada pessoa é o contexto pessoal da obra. É um contexto profundo. Engloba tanto o lugar e o momento em que a pessoa conhece a obra (como uma sala de cinema sexta feira). Como também todas as experiências que formam a particularidade de cada pessoa (como ter sido criado em uma família compreensiva). Engloba também todas as contingências do momento (como estar morrendo de vontade de fazer xixi).

Quando adolescente eu gostava muito de uma música que fala de um namorado controlador, possessivo e ciumento. O eu lírico reclamava deste “você” que proibia a gente de se amar, de ser feliz. Afinal, conheci umas pessoas assim. Tão possessivas que a felicidade dos cônjuge as ofendiam. Em uma viagem a Itacaré me explicaram que este “você” era um regime político, era a ditadura militar. Esta informação adicionou um contexto à “Apesar de você” e transformou minha leitura da obra de arte. Quem me contou o contexto foi uma amiga mais velha. Mas existem pessoas que tornam a explicação das obras de arte seu ofício: são os críticos de arte.

A crítica mais maravilhosa que tive foi a de um amigo, Daniel Kirjner , me explicando o vídeo “Café de Amanhã”. Ele me fez uma análise profunda envolvendo psicanálise e mitologia grega em um filme de apenas 20 minutos. Até então eu defendia que o filme nega o incesto. O Daniel, entretanto, descortinou interpretações que eu sequer imaginava e me converteu ao seu ponto de vista. Ele conseguiu falar muito melhor da obra do que eu conseguiria. Isto é intrigante porque eu sou o roteirista e diretor do filme! Sigo diversos críticos de cinema, suas explicações transformam minha percepção de cada obra e das obras de cinema em geral. Também me transformam: meu olhar artístico se torna mais acurado. É certo que um um artista ganha com estudos, com conhecimento racional. Este é um caminho para aperfeiçoar seu olhar e técnica. Mas a arte necessariamente está ligada a algo que foge às palavras. Muitas vezes o artista nem percebe o que torna sua obra especial aos outros. E o que é especial para uma pessoa pode ser trivial ou inacessível para outra. Sendo assim, por que o Taigo se sentiu tão acuado ante meu pedido de explicações a respeito de seus quadros?

O crivo para o sucesso de algumas obras de arte é o sucesso comercial. Assim se dá com filmes, músicas e quadrinhos. Farei um ensaio sobre o tema. Basicamente será um resumo de ‘Hitmakers’ e ‘O andar do bêbado’. Aqui é necessário adiantar que o sucesso se dá pelo esforço pessoal, pela sorte, pelas estruturas de mercado e pela qualidade da obra. Ter acesso às estruturas de mercado faz parte da sorte: conhecer um produtor, por exemplo. O esforço pessoal é usar a própria energia para dar mais chances à sorte: a cada vez que um escritor leva um livro a uma editora ele joga os dados da vida novamente. Dessa forma o sucesso comercial depende da qualidade da obra e de sorte.

O crivo para o sucesso de outras obras é o reconhecimento especializado. É o caso de pinturas e esculturas. No âmbito privado vemos pessoas que se preocupam com o preço futuro da obra muito mais do que com a experiência que aquela obra pessoalmente lhe proporciona. No âmbito público o financiamento de arte era por apadrinhamento e favorecimento - muitas vezes envolvendo desvio de dinheiro. Para melhorar esta situação foram criados editais. Quem ganha o financiamento, tanto em âmbito privado com em âmbito público, é quem consegue convencer que sua arte é boa. Desta forma é selecionado quem melhor navega nos mares da burocracia. quem escreve editais com uma boa justificativa e preenche todos os requisitos demandados no edital. No âmbito privado é selecionado quem melhor se relaciona com as pessoas do mundo da arte e quem consegue convencer (racionalmente) que sua obra é boa. Ou seja, a arte é selecionada através de mediadores. Também em relação a obras de reconhecimento especializado o sucesso depende do esforço pessoal, das estruturas do mercado (ou do Estado) e da qualidade da obra. O esforço pessoal de, por exemplo, procurar diversos editais. A estrutura de mercado consiste em ter curadores e galerias (ou editais públicos). A sorte em achar curadores que acreditem que a obra se valorizará ou achar examinadores que se sensibilizem com a sua justificativa (ou o azar da própria estrutura burocrática perder um documento essencial ao edital).

Olhando em a partir da nossa experiência parece que aquele filme que amamos é uma obra maravilhosa e foram as qualidades da obra que a levaram ao sucesso e a virar um clássico. Sim, as qualidades importam. Mas desconheço instrumentos ou ferramentas conceituais que permitam mensurar como as qualidades da obra contribuem para que ela se destaque. Escreverei um ensaio especificamente sobre isto. Por hora basta ter em conta que o sucesso comercial é um processo que seleciona a partir do esforço pessoal, das estruturas de mercado, da sorte e da qualidade da obra. Gostaríamos, como consumidores, de ter acesso ao que é melhor para cada um de nós. O mercado quer nos convencer (e nos convence) de que aquilo que oferece é o melhor para nós - e nós desembolsamos dinheiro para experimentar aqueles filmes.

Em relação às obras de reconhecimento especializado o mercado se dá de maneira inversa. Paga-se um especialista atribui um valor a uma obra e nos convence a comprá-la. O mercado existe, mas é minúsculo. Compare o mercado dos quadros mais famosos do mundo com o mercado de um hit de música sertaneja. Muito mais gente se apresenta para comprar um ingresso de um show da Maira e Maraísa do que se apresentam possíveis compradores de um quadro do Picasso. Dada as especificidades do mercado o valor de um quadro ou de uma escultura dependem muito do curador dono da galeria. E ele é tão honesto quanto qualquer vendedor que aufere sua renda de seu comércio. É claro que a experiência artística influi na compra de um quadro. Ou seja, é claro que a qualidade da obra influi no valor financeiro. Mas quanto mais se percebe uma obra como um investimento menos a qualidade da obra como arte tem peso em seu valor. Isto se dá por que o valor da obra como arte é intrínsecamente subjetivo, o valor da obra financeiro é intrínsecamente intersubjetivo.

Ainda em relação às obras de reconhecimento especializado, há uma maneira que subverte o mercado. O mercado se dá tendo em vista a o que o consumidor está disposto a consumir. No parágrafo anterior defendi que em alguns casos o que o consumidor opta por consumir é o que ele acredita que lhe dará o maior retorno financeiro. Isto afasta o valor da obra da experiência artística. Em editais públicos o financiamento se dá por opção do Estado. O gosto pessoal entra em última instância, apenas quando do consumo da obra. Assim se consome muito dinheiro em filmes que pouquíssima gente assiste. Em relação a obras de reconhecimento especializado o valor da obra é terceirizado em favor da especulação financeira ou em favor das opções do Estado. Nas obras de reconhecimento especializado - como é o caso das pinturas do Taigo - os argumentos racionais têm muito peso na atribuição de valor financeiro. Com eles que os curadores argumentam em favor da venda, com eles se vencem editais.

Existem outros tipos de arte, é certo. As que são financiadas por encomenda, as que são financiadas indiretamente (em um comercial), as que fogem a qualquer mecanismo de financiamento. Os ensaios que vocês lêem, por exemplo, almejam algum sucesso. Mas são feitos primeiramente para auto-satisfação. Simplesmente sinto que tenho algo a dizer para o mundo - se me escutarem ficarei extremamente feliz. Mas apenas ser capaz de ordenar as ideias de maneira clara já me traz uma satisfação incrível.

Tive duas intenções neste ensaio. Primeiro dizer que o contexto em que a obra é produzida e o contexto em que ela é consumida fazem parte da experiência artística. Conhecer o contexto em que a obra foi produzida pode alterar a experiência de uma obra de arte. A segunda intenção é desvendar o motivo pelo qual os críticos têm um peso grande em parte do mundo da arte. Para isto fiz uma distinção entre dois tipos de arte. Deixei outras formas de arte fora deste ensaio. Esta divisão leva em conta a maneira para a qual seu financiamento é engendrado. Os tipos são: de sucesso comercial e de reconhecimento especializado. As obras do tipo sucesso comercial almejam um grande público pagando por elas. As obras de reconhecimento especializado têm um intermediário que atribui valor à obra. No âmbito privado este intermediário é um curador, no âmbito público é o Estado. Comparando exclusivamente estas maneiras de produzir arte considero que quanto maior o envolvimento do mercado mais as qualidades da obra contribuem para seu sucesso. Em ensaio futuro falarei de outros tipos de obra. Defenderei que existem outros mecanismos além do mercado para relacionarem o sucesso e as qualidades da obra. Também mostrarei opções em que o Estado pode financiar arte e o mundo artístico incluindo as qualidades artísticas das obras.

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 11/09/2018
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