O que é arte - Ignorância

Umas amigas criaram um projeto super ousado, a ‘Galáctica’. Através de um novo modelo de negócios se envolvem em várias causas: veganismo, igualdade de gênero, legalização da maconha. Enfim, se for orientado para um mundo solidário a Galáctica apoia. Me chamaram para fazer uma animação: criar um mosaico animado no instagram. Animei a logo e a desmembrei em nove quadros. O pedido era para que eu animasse apenas o fundo, desse um movimento pequeno. Acabei fazendo um disco voador passando em cada post e abduzindo um rapaz. Mesmo ficando bonito o resultado me desagradou. Percebi que as especificidades do projeto seriam satisfeitas com um desenho estático. Tive muito trabalho, especialmente por ter cometido alguns erros. Fiz um projeto em uma definição desnecessariamente alta. Animei na logo - a imagem original, antes de ser desmembrada. Se tivesse animado o disco voador em cada quadro o mosaico teria sido muito mais dinâmico (tem a ver com como o Instagram inicia as animações). Cometi diversas falhas que tornaram a animação ligeiramente desinteressante e multiplicaram meu trabalho. Com o conhecimento que eu tinha até então era impossível antecipar os pequenos problemas que me incomodaram.

Um tema que me maravilha é a ignorância. É difícil falar sobre ela. É infinita e o vislumbre de sua existência só se dá através do conhecimento. É relativamente fácil falar sobre conceitos cuja existência conhecemos. Conseguimos referenciar conceitos que têm nome. Afirmo com convicção: sei jogar futebol. Conheço as princiapais regras, tenho um domínio de bola que me permite jogar com meus amigos. Afirmo com convicção: desconheço mecânica quântica, psicanálise e heráldica. Mas minha afirmação de ignorância só é possível porque tenho algum conhecimento: o da existência destes campos de conhecimento. Sei que existe a ‘mecânica quântica’, sei que ignoro todo o campo científico que o comportamento da matéria em pequenas dimensões. Sei que existe a ‘psicanálise’, que estuda o comportamento das pessoas com base no inconsciente, também sei que ignoro os mecanismos através do qual o subconsciente se manifesta. Sei que existe ‘heráldica’, que estuda os emblemas usados na idade média. Mas sei que ignoro sua origem, desenvolvimento e significado. Para eu saber que ignoro um conceito preciso saber que aquele conceito existe.

Uma vez me aconteceu algo incrível. Fui com a minha namorada (agora ex) a uma festa na casa do João. Logo fomos cumprimentar um amigo próximo, o Pedro. Ele olhou o colar que ela usava e falou, “Lindo colar, parece uma coruja.” Isto me impressionou muitíssimo porque aquele colar sempre me chamou muito a atenção. Sempre o achei bonito, mas tinha algo a mais. Era isto: ele sempre me lembrou uma coruja! É algo que eu vi diversas vezes ao longo de meses, talvez anos e que me chamava a atenção. Eu ignorava a minha própria percepção. Eu sabia que o colar parecia uma coruja, mas ignorava que eu sabia isto (caso contrário eu teria feito esta elaboração). Esta ignorância é inversa àquela da mecânica quântica: na ignorância da mecânica quântica sou consciente da minha ignorância. No caso do colar sou inconsciente a respeito do meu conhecimento. Antes do Pedro trazer à tona a elaboração racional seria impossível eu falar a respeito disto.

Agora pare um pouco de ler e pense na extensão da ignorância. Em relação à minha ignorância começo investigando as pessoas mais próximas a mim. Afinal cada pessoa é um universo infinito. Quanto realmente conheço a minha mãe? Quanto realmente conheço de mim mesmo? E cada pessoa do planeta! E cada pessoa que já existiu! Cada pessoa que ainda vai nascer! E sistemas de conhecimento? Mesmo o português (minha primeira língua) ainda me guarda segredos. Imagine o que tem a oferecer cada língua do planeta! Alguns conceitos só podem ser elaborados em determinadas línguas. Como a matemática, alguns conceitos só podem ser entendidos em uma determinadas matemáticas. E a astrologia, as religiões, os mitos! Quanto disto tudo ignoro. Quantos conceitos e formas de pensar que só podem ser enunciados em línguas distantes. Quantos conceitos ainda estão por ser inventados, quantos conceitos já foram esquecidos. Quanta informação trivial e insignificante eu ignoro! Quanta informação que está moldando nosso mundo eu ignoro.

A ignorância se relaciona ao conhecimento. David Hume foi quem me trouxe mais luz sobre como funciona o entendimento humano. David Hume diz que nascemos com um instinto. Devido à similaridade com a ciência da computação vou usar um jargão atual, chamarei instinto de sistema de navegação. Através deste sistema de navegação é possível o aprendizado. Isto é, este sistema de navegação com o que nascemos nos permite gravar outros sistemas de computação (de mais alto nível) e a gravar dados. Tratarei do conhecimento, do engano, do erro e da metáfora em ensaios futuros. Por enquanto basta ter em conta de que existem sistemas de navegação (como uma língua ou uma teoria). Também há conhecimento de informação (como uma palavra em uma língua ou uma observação em um experimento). Portanto há ignorâncias de sistema de informação e há ignorância de informação. E só temos como descobrir nossa ignorância através de uma pista, pista esta que é um conhecimento.

Fui à Galáctica após meu trabalho. Conversei com a Marcela sobre a animação em mozaico e voltei para casa a pé. No caminho antecipei alguns desafios que o projeto lançava e os resolvi antes mesmo de sentar para trabalhar. Após a renderização (após o vídeo ser gerado) percebi que havia um problema que nunca enfrentei antes. Levou tempo para resolvê-los. Após ver os vídeos publicados no instagram percebi que o resultado estava diferente do que imaginei, estava mais pobre. Esta situação me intrigou. Como me preparar para desafios que desconheço? Qual a estratégia robusta? Em certa medida evitamos esta enrascada estudando. Podemos nos antecipar aos problemas mais comuns lendo a respeito das experiências das pessoas. Mas é tanta informação, tanto conhecimento que os livros e tutoriais guardam, que é impossível contemplar tudo antes de ir trabalhar. Mesmo após anos estudando meu domínio sobre o After Effects ainda seria incompleto, suas possibilidades são infinitas. Se faz necessário complementar estudos com trabalho. Durante cada trabalho nos deparamos com os problemas difíceis de antecipar - e aprendemos através deles. O livro Startup Enxuta sistematiza um método de aprender enquanto trabalhamos, enquanto lançamos produtos. Seu foco é a aprendizagem.

De certa maneira a estratégia da Startup Enxuta é próxima à linguagem falada. Quando falamos temos um feedback instantâneo do interlocutor. Se trata de um feedback múltiplo: quanto à semântica, quanto à sintática, quanto à pronúncia e quanto ao entendimento. O feedback se dá quanto a cada trecho da fala. A cada conceito, a cada frase, a cada palavra. Através do feedback aprendemos a usar o sistema de navegação de alto nível (linguagem). Já a escrita de livros, literatura e ensaios têm um feedback mais demorado. Apenas após ler todo o ensaio eu (escritor) terei o feedback de algum leitor que porventura me faça o grande favor de dar sua opinião. Gostaria de aproveitar para agradecer quem comenta meus textos, muito obrigado! A estratégia do livro Startup Enxuta é se aproxima da linguagem falada: feedbacks rápidos. Ao passo que o texto escrito (em ensaios) se aproxima da abordagem tradicional: apenas após o texto pronto o disponibilizo para leitores.

A linguagem falada é um sistema de navegação de alto nível. A pessoa que fala aperfeiçoa seu sistema de navegação à medida em que conversa. Cada frase é um teste - da mesma maneira que um produto minimamente viável em uma startup. A dinâmica da conversa falada nos dá a possibilidade de testar nosso sistema de navegação. Cada conceito, cada frase, cada palavra é testada. O desentendimento de quem ouve é similar ao falseamento a que se refere Popper: cada desentendimento põe uma frase em cheque. Quem diz deve se questionar se o problema está em seu sistema de navegação (a linguagem falada) ou se está em quem ouve. É o mesmo que ocorre na ciência. Cada hipótese deve ser testada em experimentos. Ao haver uma falha o cientista deve se questionar se a hipótese foi falseada ou se o experimento foi falho. A linguagem permite diversos testes diários. Cada teste é uma oportunidade de quem fala notar sua ignorância e, a partir daí, se corrigir, se aperfeiçoar, se tornar um bom falador. Por isto a linguagem falada é dominada por todas as pessoas saudáveis.

Alguns conhecimentos estão sujeitos a estes testes instantâneos: linguagem, jogar futebol, carinhos, dirigir carros. Conhecimentos factuais diversas vezes se prestam a testes instantâneos. Conhecimento: a meia está na gaveta do meio. Teste: abrir a gaveta. Conhecimento: a chave está no armário da sala. Teste: procurar a chave no armário. Outros conhecimentos se prestam a testes cujas respostas demoram a chegar. Só sabemos se um texto escrito comunicou sua ideia após ele estar pronto e ter sido lido. Só sabemos se a programação funcionou com certeza após ele estar minimamente viável (o que pode demorar semanas) e ter sido lançado ao mercado. Só sabemos se um negócio (como um restaurante) é lucrativo meses após ter sido lançado. Diversos conhecimentos se prestam apenas a testes indiretos. Conhecimento: Dom Pedro I proclamou independência do Brasil. Teste: buscar em livros. Conhecimento: Jesus transformou a água em vinho. Teste: buscar na bíblia. A respeito da confiabilidade de testes indiretos David Hume tem uma excelente reflexão. Um conhecimento factual ou um conhecimento de sistema de navegação (uma habilidade) tem muito mais possibilidade de ser aperfeiçoado quanto mais o sujeitamos a testes em situações diferentes. Uma construção sintática que é testa com diversas pessoas e em diversas situações provavelmente será muito melhor aprendida do que uma construção sintática que é testada apenas em dois ou três exercícios em um aplicativo de aprender inglês. É claro que o aplicativo ajuda (e muito) na aprendizagem. Mas ir a um país e falar aquela língua nos proporciona testes mais diversos e ricos. Da mesma maneira um conhecimento em que todos os testes indiretos remetem, em última instância, a uma mesma fonte é menos confiável que um conhecimento indireto que pode ser achado em diversas fontes. Daí o perigo de averiguarmos uma informação em diversos sites. Talvez todos digam a mesma coisa, mas todos talvez tenham se baseado em uma mesma fonte. Neste caso estaríamos indiretamente acessando apenas uma fonte. Já escrevi um ensaio em que falo sobre a “verdade”, é o ensaio “objetividade x intersubjetividade”. Em breve escreverei um ensaio sobre a percepção da verdade.

Como isto tudo se relaciona com arte? A primeira vez que quis escrever sobre este tema foi ao sair do cinema. Lembro bem de estar ao lado da minha mãe, saindo naquele corredor felpudo vermelho do Liberty Mall e pensando: “Este filme me atingiu, tive uma experiência incrível, mas não consigo elaborar o que aprendi.” Um conhecimento só é possível dentro de um sistema de navegação. Ao receber a informação, ao proferir, ao conversar, ao pensar sobre ela aprendemos novos conhecimentos e aperfeiçoamos conhecimentos antigos. É assim que aprendi a palavra ‘apple’. Vi um desenho de uma maçã com uma legenda e uma professora disse “apple”. Este conceito está dentro de um sistema de navegação de alto nível (a língua inglesa). Mas eu já sabia o que é uma maçã. Um conhecimento acessado usualmente através do sistema de alto nível ‘língua portuguesa’. Por isto é mais fácil aprender o que é uma maçã do que se eu nunca tivesse criado a categoria “frutas” e “alimentos”. O que quero dizer é que acesso ‘maçã’ em português. Mas o próprio português faz parte de um sistema de mais baixo nível. Para uma criança que aprende inglês e português simultaneamente ambos os sistemas estão no mesmo nível. Para mim o inglês é um sistema de mais alto nível do que português. Cada frase eu penso no equivalente em português antes de falar. Aquele filme que vi no Liberty Mall atingiu algo profundo em mim: foi uma experiência que aperfeiçoou um sistema de navegação de baixo nível. Eu até poderia me esforçar muito para investigar - com ajuda de vários sistemas de alto nível - como o filme me atingiu. Para isto eu recorreria ao português, para teoria de cinema, para teorias de psicologia…. Talvez eu conseguisse esmiuçar com muita precisão a experiência que eu tive. Mas aquele filme - assim como toda arte que propicia a experiência artística - nos permite nos aprimorarmos em sistemas de baixo nível. Ou seja, a experiência artística nos permite que o nosso eu mais profundo adquira conhecimento ou o aperfeiçoe. Como é um aperfeiçoamento em um sistema de baixo nível (mais básico do que os sistemas de comunicação) é extremamente até ter consciência do conhecimento que adquirimos ou aperfeiçoamos. Aquilo que aprendemos através da experiência artística em regra é um conhecimento que ignoramos termos adquirido. Da mesma maneira é algo sobre o qual é muito difícil falar. Pois a experiência artística é o aperfeiçoamento do sistema de baixo nível.

Sou um cético empirista. Desconfio de todo o conhecimento. Assim a confiança das pessoas em fazer afirmações fortes me causa estranheza. Percebo como nós (seres humanos) somos alheios à fragilidade do conhecimento. Isto se dá, em grande medida, porque a percepção da ignorância só é possível através de uma investigação. A pista que leva a esta investigação é um conhecimento. É irônico: a percepção da ignorância se dá a partir do conhecimento. A ignorância também se dá em relação a nós mesmos: ignoramos o que sabemos. Eu ignorava que via uma coruja no colar da minha ex-namorada. Em várias conversas captamos um subtexto que só elaboramos se alguém perguntar a respeito. Assim como ignoramos que conhecemos algo ignoramos que aprendemos algo. O aprendizado de uma estrutura sintática, do senso de humor, da ironia se dão longe da nossa consciência. Somos ignorantes do aprendizado que se dá em sistemas de baixo nível. A experiência artística é uma maneira específica na qual o aprimoramento do sistema de baixo nível se dá. Se você acompanha meus ensaios talvez tenha percebido que já avancei muito na descrição da experiência artística. Mas farei um ensaio exclusivamente dedicado a ela. Para o aprendizado a experiência desempenha um papel crucial. Na ciência um experimento pode apontar falhas a partir das quais podemos nos aperfeiçoar. Na vida diária fazemos experimentos corriqueiramente ao falar, ao dirigir, ao pensar, ao ver filmes, ao ler poesia. Desta maneira aperfeiçoamos sistemas de alto nível. A experiência artística é uma maneira específica através da qual podemos aperfeiçoar um sistema de baixo nível. Através da experiência artística aprendemos algo impossível de ser posto em palavras. Como disse Mário Quintana: A poesia não se entrega a quem a define.

Obs 1: Atualmente é bem comum as analogias com a ciência da computação. Anos atrás quem me apresentou esta analogia pela primeira vez foi o Gustavo Gollo. Ele quem usou a terminologia “sistema de navegação”.

Obs 2: Creio que este ensaio mostrou como o feedback é importante para mim. Qualquer crítica é muito bem vinda. Escreva para chicoacioli@gmail.com

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 29/09/2018
Reeditado em 03/10/2018
Código do texto: T6462737
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