O cervo

A calça ensanguentada de lama encharcou o tecido tactel e gelou as suas pernas enquanto descia o morro.

Braçada por braçada, agarrava troncos e pequenos gravetos. Os pés deslizavam e afundavam cada vez mais naquela terra preta e úmida. Pequenos pedregulhos eram arremessados ladeira abaixo, mas ele se mantinha firme. Faltavam só mais uns duzentos metros.

Chovia, e como chovia.

A camisa em tons de roxo, com listras mais roxas que o roxo de seu rosto, demonstrava exaustão. A barba falhada e por fazer não indicava absolutamente nada. Ele não gostava de se barbear e não seria ali, nas colinas verde esmeralda, que ele se preocuparia com a lixa que crescia sob àqueles olhos determinados.

Usava um boné de um time norte-americano de basquete. Não importa qual. O boné sempre serviu apenas como disfarce. Toda vez que vestia o aparato a secretária sabia que algo macabro preencheria a capa principal do noticiário local, que geralmente era infestada pelas pragas que assolavam as plantações de repolho ou pela falência de outro apicultor.

Não adianta, ninguém mais tomava mel. Ruim? deveras que não, mas desde que o pequeno mercadinho começou a receber carregamentos de nutella a coisa ficou feia para as abelhas.

- Essa me deu dores de cabeça! Eu preciso chegar o quanto antes no carro ou vou derreter nesse lamaçal asqueroso... balbuciou para si mesmo.

O bar do Joe ainda estava aberto quando o carro chegou na cidade. Não pensou muito e era lá que iria comer o de sempre.

- ovo frito sem gema, amendoim e batatas fritas! ah e não esquece do meu chopp, velho Joe.

- pode deixar doutor. - como foi a caçada? Com essa chuva é quase impossível avistar um maldito cervo.

- Por falar nisso, você está fedendo, poderia ter passado em casa antes, não? Falou Joe rindo enquanto limpava sem qualquer delicadeza o copo usado por Julio Rubão.

- você me conhece... Eu detesto voltar de mãos vazias, mas dessa vez não foi por conta da chuva Joe, não foi mesmo.

- deixa disso meu velho amigo, há dias que nem a luz do sol penetra por aquelas matas. Você devia agradecer por ter conseguido descer e não ter que passar mais uma noite nas colinas.

O chopp estava encorpado, amarelo dourado e borbulhante.

Sentiu o gosto de sangue.

No dia seguinte, Janaína deu bom dia e, como de costume, sorriu mostrando quatro dentes de cima e metade de três dentes debaixo, inclusive o meio torto que volta e meia Paulo tinha que alertá-la do feijão.

Ele odiava aquele sorriso robótico, causava-lhe arrepios. Será que não poderia ter contratado uma pessoa mais natural. Será que Janaína, mesmo depois de oito anos de trabalho, ainda se sentia tensa quando o encontrava? Apesar do pensamento ele já sabia a resposta.

Ela sabia, mas não tinha certeza se ele sabia.

Ele adorava aquele jogo e provavelmente só por isso ela ainda continuava viva.

- Dr. Paulo, o senhor viu o noticiário? - Janaína perguntava com a certeza de seu chefia iria mentir.

- Não vi Janaína, eu tenho muito trabalho a fazer. Como você deve ter visto, nos últimos meses nossos funcionários decidiram abandonar a empresa, nos trocar pelo desgraçado do Mario Nelson advogados e associados. FILHOS DA PUTA!!! Berrou que quase enrouqueceu. Tossiu duas vezes.

- Seu Paulo... parece que mais uma moça foi dada como desaparecida, pelo menos é o que diz o noticiário. A mídia de hoje em dia não é nada confiável né Doutor? Vai saber, eles precisam vender os tabloides e hoje com internet e netflix, fica complicado...

- Janaína!!! Fecha a matraca! Pelo amor de Santo Cristo, eu preciso pensar na audiência de amanhã, o caso ainda não está bom.

- Seu Paulo, olhando melhor a foto da moça no jornal eu acho que já vi ela por aqui. Faz tempo, mas eu tenho quase certeza.

- Janaína... Venha comigo, vamos para a sala dos arquivos.

- Tá bom doutor... mas eu falei algo que não devia?

A burrice dissimulada de Janaína a salvava sempre, mas naquele dia Paulo estava diferente.

- Tá vendo aquele livro?

- Estou, o que tem ele?

- Todos os malditos funcionários que já trabalharam aqui estão listados ali, e a moça que você acha que já viu por aqui, foi a última funcionária a ir embora do departamento jurídico, até sobrar só eu e você Janaína, entendeu?

- Doutor... eu não estou entendendo, porque está me dizendo isso?

- Janaína, eu sei que você sabe e acha que eu não sei. Eu estou cansado. Ontem enterrei o corpo. Nenhuma surpresa para você, que já notou que eu subi as escadas mancando e também todos os arranhões e o roxo do meu rosto.

- Você já me viu com algum rifle de caça?

-Não doutor... Janaína não estava surpresa, mas começava a ficar com medo, a franqueza da conversa era inédita, geralmente o assunto se encerrava com uma risada após a notícia fatídica, quando havia.

- é porque eu não caço, eu nunca cacei cervos.

- Eu sempre te aturei Janaína, sempre te aturei. A sua pretensão de achar que eu não sabia que você sabia me dava prazer e ao mesmo tempo me fazia rir.

- Mas hoje acabou. Agora você sabe que eu sei que você sabe. Eu sempre soube que você sempre desconfiou.

- Ainda desconfiando, você continuou a vir para o trabalho, eu admiro isso em você Janaína e como admiro. Você é como um cervo.

- Doutor... me desculpa eu juro que não sei o que está acontecendo. Um cervo?

- Um cervo Janaína. O cervo é um animal gracioso, tímido, mas altamente idiota. Ele pressente o perigo, ele já escapou da morte algumas vezes, porém ele teima e continua indo para a zona de caça. Na esperança de que o caçador tenha deixado de ser caçador ou então se comova com a graciosidade e ingenuidade com que ele leva sua pacata vida.

A tensão atingiu o limite, Janaína transpirava por todos os poros de seu corpo.

- Às vezes, por misericórdia o caçador tira o dedo do gatilho, Janaína, e assim o cervo sobrevive por mais algumas temporadas.

Foi exatamente o que aconteceu naquela segunda-feira. Janaína pensou inúmeras vezes que aquilo jamais tivera acontecido, embora o medo fosse constante e congelava sua espinha mesmo quando pensava debaixo do chuveiro quente.

Continuar a rotina era a única for de aliviar aquele medo, estar próximo era melhor. Ao menos ela sabia que não poderia fugir.

A secretária trabalhou com o dr. Paulo por mais 02 anos, até sua carteira de trabalho declarar sua demissão.

- Mais uma que trocou de escritório... essas infelizes nunca aprendem. Eu odeio ter que fazer novas entrevistas....

Uma Quinta-feira.

- Maria das Luzes, pode entrar.

- Com licença doutor.

Eles conversaram algo morno e sem graça por uns quinze minutos até que Maria das Luzes, menos tensa, se deu por conta que a janela do escritório de Paulo dava para as colinas verde esmeralda e decidiu comentar o óbvio.

- Elas são lindas!! As famosas Colinas verdes esmeraldas... o senhor tem uma bela vista doutor!

Dr. Paulo, um pouco surpreso, pois nenhum cervo jamais tinha parado para contemplar o seu habitat, levantou e olhou a familiar paisagem.

- Ah sim. Mas sinto lhe desapontar, elas não são mais chamadas assim há algum tempo.

-Não?

-Não. Elas agora são chamadas de Colinas Escarlates. Quando o sol está para se pôr, ele reflete uma lâmina avermelhada na copa de cada árvore. Tudo vira sangue.

- Elas são lindas doutor, com esta vista o senhor nunca deve ficar estressado, né rsrs?

- Ah não é por conta da vista Maria das Luzes, não mesmo.

Então Paulo sorriu, um sorriso verde que foi se tornando uma meia lua amarelada.

- Ontem eu enterrei um corpo. Disse Paulo já sem o sorriso, sem esboçar qualquer reação, enquanto apenas deitava os olhos no ponto mais alto das colinas escarlates.

- hahahahaaha- Maria das Luzes deu uma risada longa e completou:

- O senhor é engraçado, eu vou adorar trabalhar por aqui.

- Ah eu tenho certeza que vai....

ProjetoProsa
Enviado por ProjetoProsa em 12/06/2019
Reeditado em 14/06/2019
Código do texto: T6671568
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