O PROBLEMA - REALISMO INGÊNUO - POPPER PARTE I

O PROBLEMA

Em filmes ou séries vemos é comum vendo um grande investigador provando a culpa de alguém, a mídia diz que determinado indicador prova que o país está em recessão, um médico diz que o exame prova que você está saudável, se você provocar qualquer um na rua dizendo que a não é um conceito necessário, que existe apenas como , que não existe além dos nossos conceitos, a pessoa pegará um objeto e irá mostrá-lo caindo. Sou um cético, acredito que nenhuma conhecimento é mais do que um modelo e, como qualquer modelo, representa algum aspecto de algo - apenas isto. Por ser cético, ou seja, por acreditar que todo conhecimento é necessariamente limitado um problema se apresenta: como é possível o aperfeiçoamento do conhecimento? Em apenas alguns ensaios mostrarei que estas são questões importantes até no nosso cotidiano e mostrarei uma maneira mais apurada (do que o realismo ingênuo) de encarar estes problemas.

FILOSOFIA CÉTICA NEGATIVISTA

Eu poderia fazer um resumo das ideias de Popper, um dos filósofos que mais contribuíram para a forma com que leio o mundo. Ao invés disso apresento as ideias dele que mais são pertinentes para entender os ensaios que venho escrevendo. O ensaio de agora objetiva mostrar como o problema que Popper enfrentou era (e ainda é) pertinente.

ME TORNANDO CÉTICO

Ignoro quando me tornei um cético, desde pequeno minha mãe me ensinava o relativismo do olhar artístico (um relativismo nada trivial). Meu pai, sem que eu soubesse, já ia me familiarizando com as ideias de Popper. É impossível traçar uma linha clara de quando me tornei cético, mas a leitura do ‘Ensaio Sobre o Entendimento Humano’ (David Hume) em 2004 foi um marco em minha vida, desde lá tenho uma visão clara (embora intuitiva) de como se forma o conhecimento.

CETICISMO

A palavra ‘cético’ se aplica à ausência de certeza em relação a algo. Se sou cético em relação a um medicamento tenho dúvidas se a sua ação será como a esperada pela pessoa que o consome. Meu ceticismo se dá em relação ao conhecimento em geral, acredito que é impossível qualquer conhecimento ser mais que um mero modelo do que está fora do ser pensante. Em meu próprio jargão: é impossível recortar algum aspecto do Todo Incognoscível através do conhecimento. Entretanto é possível criar modelos de pensamento que tem algum grau de coerência entre si. Além da coerência com outros modelos cada modelo tem uma certa correspondência com algum aspecto do Todo Incognoscível.

NAVEGANDO NO MUNDO

Apesar de cético percebo que meu conhecimento tem serventia. A partir dele consigo me planejar, agir, resolver problemas. O conhecimento serve para a construção de instrumentos: uma mesa, uma bola, um telefone… Assim a pergunta que me coloco é: como conciliar o ceticismo com o aperfeiçoamento do conhecimento? Popper dá muitos passos em direção à resolução deste problema. O maior desafio não é mostrar a solução, a produção de outros autores é suficiente para tanto. O maior desafio é mostrar o problema.

POPPER, UMA PORTA PARA ENTENDER O CONHECIMENTO

A preocupação de Popper era demarcar uma teoria científica. Assim, ao perceber determinados atributos na teoria poderíamos determinar que é uma teoria científica. Ao fazê-lo ele trouxe elementos do conhecimento em geral. Meu objetivo aqui é mostrar que o seu negativismo, com algumas alterações, se aplica a todo o conhecimento (não apenas à ciência). Em outras palavras, meu objetivo é generalizar o negativismo de Popper. Estes ensaios (sobre autores que admiro) visam contextualizar os ensaios sobre arte e sobre conhecimento que já venho escrevendo.

REALISMO INGÊNUO

Popper se opunha à visão da época (ainda bastante popular) de que a regularidade da observação de fenômenos é suficiente para extrair leis gerais. Realismo ingênuo é a crença de que a ciência reflete a realidade por ser criada a partir de observações: a gravidade existe, a prova é que se eu levantar uma xícara e soltá-la ela vai cair.

OLHAR CONSTRUÍDO

Ao examinarmos o realismo ingênuo percebemos rapidamente uma dificuldade, os problemas são vistos a partir de algum lugar: a própria percepção do problema e dos conceitos envolvidos se dá de acordo com aprendizados anteriores. Apreendemos fenômenos a partir de conhecimentos anteriores, é impossível analisar um fenômeno exclusivamente a partir da observação. Ao montar um experimento o faremos de acordo com o conhecimento que temos a seu respeito. No contexto da ciência o experimento será feito a partir de uma teoria científica. Ao reproduzir um experimento sob tal ótica acabaremos montando experimentos que vão de acordo com a teoria. O realismo ingênuo ignora que o olhar é construído, que enxergamos a partir de um aparato conceitual (independentemente de termos consciência disto).

TEORIA

As regras que regem algum aspecto do mundo (na minha terminologia as regras que regem algum aspecto do Todo Incognoscível) são as teorias. Popper está preocupado com a demarcação da ciência. À diferença do que ocorre no dia a dia, as teorias são sistematizadas, seus axiomas e sua lógica científica são explicitados. À diferença do que ocorre na lógica per se a lógica científica diz algo a respeito do Todo Incognoscível.

No conhecimento do dia a dia temos um aprendizado heurístico, através dele sabemos como resolver determinados problemas (mesmo sem racionalizar a respeito dos mecanismos pelos quais a solução funciona). Esta forma de conhecimento está fora do campo de interesse de Popper, para ele deveria ser tratada pela psicologia.

Na lógica per se as regras estão explícitas, qualquer fuga às regras é reconhecido como um erro. Entretanto a lógica é indiferente ao Todo Incognoscível. A lógica garante que se for seguida premissas verdadeiras levarão a conclusões verdadeiras. Mas a lógica per se se isenta de falar a respeito da verdade das premissas e, por isto, sua conclusão se isenta de falar a respeito de algum aspecto do Todo Incognoscível.

TEORIA DO LUGAR NATURAL

Aristóteles tem uma teoria que explica o motivo para que algumas coisas caiam, outras subam. É a teoria do lugar natural. Segundo esta teoria todas as coisas são formadas por quatro elementos (terra, água, fogo e ar). Os elementos se atraem, assim um pequeno bloco de terra é atraído para o chão (pois vai em direção ao centro da terra). Os rios correm para os mares (em direção à maior concentração de água). Já o ar vai em direção ao céu. O céu forma uma cúpula acima da qual há fogo. As estrelas que vemos são furinhos nesta cúpula. A partir destes quatro elementos e da teoria de que eles se atraem podemos explicar porque todos os objetos sobem ou descem: objetos com muita concentração do elemento terra, caso sejam soltos, vão em direção ao centro da terra. Se colocarmos em um líquido muito do elemento fogo (digamos, acendendo uma chama abaixo de um bule cheio) ele tende a se juntar ao fogo acima da cúpula do céu (por isto as bolhas de água subiriam na ebulição).

EXPERIMENTO PROVA TEORIA?

Segundo a visão comum um experimento é uma evidência em favor de uma teoria. Então cada vez que observássemos um evento que a corrobore teríamos uma prova de que a teoria está correta. Ou seja, toda vez que jogássemos uma pedra e ela caísse teríamos uma prova da teoria do lugar natural. Toda vez que acendêssemos uma chama e o fogo fosse para cima ela subisse teríamos uma evidência em favor da teoria do lugar natural. Note que as variáveis são escolhidas de acordo com a crença. Uma pessoa com a crença na teoria da gravidade de Newton poderia elaborar um experimento em que ela explicaria com mais precisão um evento do que a teoria do lugar natural.

QUANTOS EXPERIMENTOS SÃO NECESSÁRIOS PARA PROVAR UMA TEORIA?

Poderíamos (a partir do realismo ingênuo) elaborar experimentos que comprovem a teoria do lugar natural. Ao queimar uma madeira separamos o elemento fogo (que sobe) do elemento terra (que cai). Quantos troncos de madeira teremos que queimar para provar a teoria do lugar natural? Quantas pedras teremos que soltar e observar cair para comprovar a teoria do lugar natural? Dez vezes? Cem vezes? Um milhão de vezes?

A partir da Teoria do Lugar Natural e da mentalidade indutivista ficamos com o olhar viciado: é possível elaborar um monte de experimentos que comprovam a teoria e é possível repeti-los indefinidamente, sempre com os mesmos resultados. Para que o conhecimento evolua, portanto, é preciso algo mais, é preciso uma perspectiva diferente.

COMO DECIDIR POR UMA TEORIA???

Popper percebeu que a partir de experimentos é impossível garantir que uma teoria seja verdadeira. As evidências que aparecem, as evidências de acordo com a teoria, ou seja, as evidências positivas, nunca vão garantir a verdade de uma teoria. Assim uma teoria nunca estará a salvo de refutações. A percepção comum é a de que a coerência entre experimentos e a teoria é o critério para a escolha naquela teoria (acreditam que experimentos comprovam uma teoria). Popper percebeu que esta percepção é ingênua, equivocada. Isto traz um problema: como decidir por uma teoria (sem o recurso de um experimento comprovando a teoria)?

DUAS TEORIAS PARA O MESMO PROBLEMA

Agora imaginemos que alguém tem uma explicação alternativa sobre a queda (de pedras) e subida (das chama). Digamos que tal pessoa defenda que Deus puxa para baixo determinadas coisas (como pedras) e puxa para cima determinadas coisas (como uma chama). Cada vez que jogar uma pedra a teoria divina diz que Deus escolhe que as pedras caiam para baixo, cada vez que uma chama é acesa Deus escolhe que ela deve subir. Como decidir entre a Teoria do Deus puxador e a Teoria do Lugar Natural ?

QUANTO MAIS RESTRINGE MAIS INFORMA

Ambas as teorias (Lugar Natural e Deus Puxador) têm explicações alternativas para os mesmos fenômenos, cada uma delas pode ser usada para explicar um mesmo problema. Com qual teoria ficamos? A Teoria do Deus Puxador não proíbe nada. Ou seja, é impossível, através da Teoria do Deus Puxador, elaborar um experimento que negue a teoria. Se jogarmos uma pedra e ela subir apenas diremos que Deus escolheu elevá-la. Se acendermos uma chama e ela for para baixo diremos que Deus escolheu descê-la.

Já a Teoria do Lugar Natural restringe os acontecimentos. Se jogarmos uma pedra e ela subir saberemos que a explicação de que o ‘elemento terra atrai o elemento terra, portanto uma pedra deve ir para onde há mais elemento terra, isto é, o centro do planeta’ está incorreta. Da mesma maneira a Teoria do Lugar Natural proíbe que uma chama vá para baixo. Ou seja, quanto mais uma teoria restringe mais ela prevê. E cada previsão é uma oportunidade de falsear a teoria (caso a previsão não se concretize a teoria está sendo falseada).

EXPLICAÇÃO AD HOC

Uma teoria científica, como a entendo, deve ter relações de causa/consequência. Ou seja, se tais variáveis ocorrerem (causas) ocorrerão também determinados fenômenos (consequências). Caso uma teoria tenha sempre uma resposta ad hoc a teoria não é científica. Em outras palavras, caso uma teoria tenha o futuro opaco mas, o passado sempre seja claro a teoria explica pouco. Para Popper a teoria deve ser elaborada de maneira que possa ser contradita, negada, ou seja, a teoria tem que ser elaborada de maneira que possa errar em suas previsões.

No caso da teoria do Deus Puxador qualquer fenômeno pode ser explicado em retrospectiva. Se soltarmos uma pedra e ela subir é possível dizer (em retrospectiva, ad hoc) que Deus puxou a pedra para cima pois esta era Sua vontade no momento. A explicação do Lugar Natural, ao contrário prevê que determinadas causas levam a determinadas consequências. Um exemplo do que a proposta de Popper dizia que não era ciência era a Teoria Comunista Marxista. Ela prevê uma revolução mundial a partir do qual a classe trabalhadora irá socializar os meios de produção. O marxistas estão sempre dizendo que a revolução está para chegar, quando ela não ocorre dizem, ad hoc, que a conjuntura não era adequada. Outro exemplo que fica fora do campo da ciência é a própria proposta de demarcação da ciência de Popper: se uma teoria não obedece os critérios do negativismo de Popper ela não nega a proposta, apenas não é classificada como ciência.

DISPUTA NO CAMPO EMPÍRICO

Agora suponhamos que surja uma outra teoria que explique porque algumas coisas são atraídas para baixo e outras para cima. Segundo a teoria da gravitação de Newton a força de atração se dá em função de duas variáveis: a massa dos objetos e a distância entre eles.

Como com toda teoria científica, com ambas as teorias é possível fazer previsões e tais previsões são elaboradas de maneira que podem ser negadas. Para decidir entre ambas basta fazer um experimento em que cada uma faz uma previsão diferente (para isto é necessário conhecer ambas as teorias), a que errar a previsão é a teoria descartada. A que acertar é a escolhida, mas nunca ela é confirmada. Uma vez que a confirmação é impossível, na ciência sempre há a possibilidade de surgir uma nova teoria capaz de elaborar experimentos que neguem a teoria dominante.

RELAÇÃO ENTRE MUNDO EMPÍRICO E TEORIA

A perspectiva positivista (de que observações são evidências que provam uma teoria) se mostrou inútil. Primeiro porque experimentos elaborados à luz de uma mesma teoria escolherão as mesmas variáveis e produzirão os mesmos resultados. Segundo porque um mesmo experimento pode ser evidência de duas teorias diferentes (soltar uma pedra e observá-la cair é evidência para a Teoria do Lugar Natural e para a Teoria da Gravidade). Assim sendo uma grande questão se coloca: como o mundo empírico se relaciona com a teoria científica?

CONCLUSÃO

Este ensaio visa contextualizar o problema que Popper enfrenta na ciência - e o qual ele oferece uma proposta que me apetece. Também visa mostrar que tal problema (a crença no realismo ingênuo), embora tenha sido já apontado por alguns filósofos, continua sendo as lentes a partir das quais as pessoas enxergam o mundo. Em ensaios futuros oferecerei novas lentes, através de conhecimentos do campo da filosofia, psicologia e estatística mostrarei como ler o mundo de modo a evitar o realismo ingênuo.