Todo Incogniscível 2 - O lastro do entendimento

COSMOLOGIA

A forma de entender todas as experiências é pautada pela maneira como as vemos: mesmo quem nunca pensou a respeito vive uma filosofia sobre como as coisas são, isto é, sua cosmologia. Uma maneira típica de ver o mundo é a ‘correspondista’ (criei o termo para este ensaio). Estou segurando um lápis em minha mão. Segundo esta visão tanto minha mão como o do lápis têm existência objetiva (independem de quem observa). Portanto, para o ‘correspondista’ (e assumo que este seja o caso das pessoas que nunca pensaram a respeito) existem coisas objetivas e a correspondência é tal correspondência que garante que uma frase está correta.

ENTENDER O COMÉRCIO PARA ENTENDER A COMUNICAÇÃO

A crença de que existem fatos objetivos e que a sua correspondência com uma frase (ou com um pensamento) é o que garante que uma frase esteja correta é semelhante à crença de que a moeda (unidade de troca) tem valor devido à sua correspondência com algo de valor (como o ouro). Defendo que da mesma maneira que o comércio dispensa o lastro em ouro o entendimento dispensa o lastro em coisas objetivas.

O QUE IGNORAMOS

Uma abelha não entende sistema de coordenadas, mas ela consegue, através de uma dança comunicar onde uma flor distante quilômetros da colmeia está. Cada cupim não entende de arquitetura, entretanto eles conseguem construir cupinzeiros que abrigam milhares de indivíduos, inclusive com sofisticado sistema de ventilação - sem o qual o cupinzeiro seria um forno em que os cupins morreriam assados. Um jogador de futebol não entende de física, ainda assim consegue correr com a bola e dar um passe de centenas de metros a outro jogador também correndo. Não entendemos psicologia, ainda assim conseguimos manter relações carinhosas com centenas de amigos, familiares e parentes. Também não entendemos de economia, ainda assim conseguimos realizar transações comerciais, guardar algum dinheiro para as férias e até comprar bens que demandam anos de poupança (como um imóvel).

LASTRO DO DINHEIRO

Durante séculos o dinheiro consistia em algo de valor (como ouro, prata ou sal). Aparentemente o valor consistia em sua utilidade: com o ouro é possível elaborar joias delicadas, com o sal é possível temperar os alimentos. Por motivos práticos o ouro passou a ser guardado em uma instituição segura (um banco), o banco emitia um recibo, também chamado de nota. Cada nota equivalia a uma quantidade em ouro. Com o tempo as transações com ouro foram substituídas pelas transações com as notas. Tal substituição representava uma enorme ameaça pois seu valor poderia oscilar muito - da mesma maneira que um barco em alto mar pode oscilar até ser derrubado pelas ondas. Ao barco, para adquirir estabilidade, adiciona-se um peso em seu fundo (antigamente usavam pedras) chamado de ‘lastro’. Este peso - por deixar a parte de baixo do barco mais pesada - impede que o barco vire e naufrague. Já o papel moeda contava com a correspondência com o ouro para impedir que se desvalorizasse. Esta correspondência entre moeda e ouro recebeu o mesmo nome que o peso que impede o navio de virar: lastro.

LASTRO DA REALIDADE

As pessoas de então acreditavam que a correspondência entre o ouro e o papel garantia valor ao papel. Da mesma maneira os correspondistas acreditam que é a correspondência entre a frase e FATOS OBJETIVOS que garante que a frase (ou qualquer conceito) esteja correta. O que garante que a frase, “O lápis está em minha mão.” é verdadeira é que existem 1) o lápis, 2) minha mão e 3) a disposição do lápis e da minha mão. O ouro estaria para a moeda assim como a existência de ter um lápis em minha mão estaria para a frase “Há um lápis em minha mão”. Curiosamente há décadas o dinheiro está sem lastro, ainda assim o uso de papel moeda continua popular - evidenciando que a origem do valor é outra (não a correspondência com o ouro). Mas o correspondismo (a crença de que a correspondência com algo objetivo do mundo dá lastro às sentenças) continua firme na crença das pessoas. Proponho que o mecanismo através do qual cada um de nós atribui valor à moeda é semelhante ao mecanismo que garante nosso entendimento em conversas - em ambos o lastro é desnecessário.

Observação: se este fosse um ensaio de economia advogaria pela adoção do lastro com o ouro, pois é uma forma de restringir os excessos do Estado. Mas este ensaio é sobre como se dá o entendimento, o importante notar é que mesmo sem o lastro as transações comerciais ocorrem sem problemas.

SUBJETIVIDADE DO VALOR

O valor de um produto é subjetivo, reflete os interesses, desejos, opiniões de cada individualidade. Há quem diga - a partir de uma falha compreensão da oferta e demanda - que valor vem da escassez. Se eu fizer uma criptomoeda que só tenha uma unidade e que, ainda por cima, seja indivisível ela será extremamente escassa, entretanto será completamente inútil. Há quem diga que o valor de algum produto se deve à sua função. Se entendermos ‘função’ a partir da perspectiva de quem compra o produto eu concordo. Um tênis caro pode servir para a pessoa ser vista com respeito ou com desejo pela sociedade - terceiros não podem repudiar esta função por ser “menos natural” do que a função de servir como um calçado.

OBSERVAÇÃO: A PERSUASÃO NA ATRIBUIÇÃO DE VALOR

Devido à inexistência de um ‘valor natural’ ou de ‘essência de valor’ sou contrário a alguém DETERMINAR a terceiros o valor de um produto. O que admito (e defendo) é através de conversa tentarmos conversar a respeito de valores. É o que se dá quando uma companheira mostra que o tênis que vou comprar parece ter pouca durabilidade, quando aviso meus colegas de trabalho como refrigerante faz mal à saúde, quando alguém me diz que determinadas empresas utilizam trabalho escravo ou mostram como o consumo de leite é cruel com a vaca e com sua prole. Determinar como agir (pautado pela crença ingênua em um ‘valor natural’) e convencer a agir (pautado na conversa a respeito de valores) são coisas bem diferentes.

REGRAS CRIADAS E APERFEIÇOADAS AO LONGO DO TEMPO

Estamos tão habituados a tais transações que alguém poderia considerar natural pegar um pão, ir ao balcão, pagar por ele e ir embora tomar café da manhã. Seria um equívoco, nada é natural nesta transação. A transação comercial é uma criação humana refinada ao longo dos séculos e que continua em mudança, incontáveis configurações de regras são possíveis: pagamento mensal, leilão, pagar conforme ache justo…

MECANISMOS INTERSUBJETIVOS DE COMÉRCIO

Assim proponho o seguinte modelo para o entendimento do comércio: a atribuição de preços se dá em um ambiente de regras. Todos os aspectos do comércio variam, exceto dois. Varia a forma de pagamento, varia o bem transacionado, os mecanismos que garantem a confiança entre as pessoas, o ambiente em que a transação é feita, a maneira com que a comunicação se dá... Os dois únicos aspectos constantes em uma transação comercial são: 1) o caráter de liberdade que envolve as pessoas e 2) uma troca. Na ausência do livre acordo se configura outro tipo de relação: assalto, escravidão, furto, imposto… Na ausência de troca também se configura em outro tipo de relação: doação, favor, carinho, presente, brinde, esmola…

ENTENDIMENTO DAS REGRAS

A intersubjetividade necessária para a transação é mínima e consiste nas regras para efetuá-la. Como em qualquer atividade humana erros são cometidos (inclusive erros quanto a transação em que estamos nos envolvendo). Mas cada parte só pode entrar livremente em uma transação comercial caso esteja de acordo com as regras - caso contrário não se configura comércio, mas um golpe. Digamos que vendo uma aplicação que rende muito bem, mas “esqueço” de avisar que a carência para o resgate é de um ano. Caso eu de fato tenha esquecido de avisar incorri em erro. Caso este “esquecimento” seja intencional então incorri em um golpe. Uma transação comercial é aquela em que as partes ingressam livremente - e só o fazem se entendem as regras envolvidas na transação.

SUBJETIVIDADE DO PREÇO (PARA O COMPRADOR)

Como comprador atribuo um valor a um produto. Digamos que estou esperando alguém no aeroporto e o avião atrasou. Como tenho um livro em mãos, adoro ler e tomar café e tenho tempo de sobra, dou muito valor ao café. Normalmente eu aceitaria pagar dois reais por uma xícara, mas nesta conjuntura estou disposto a pagar o absurdo de 12 reais. Qualquer valor abaixo disso eu aceito. Portanto: para o comprador há um valor limite para pagar pelo bem, qualquer valor inferior a este valor é aceito de bom grado. Há exceções, claro, já paguei mais do que o pedido por uma pá de lixo artesanal. Fiz questão de honrar a qualidade do trabalho e sabia que poucos reais fariam muita diferença para o artesão.

SUBJETIVIDADE DO PREÇO (PARA O VENDEDOR)

Como vendedor atribuo um valor à minha mercadoria, para isto uso o critério que eu quiser. É comum, por exemplo, ter como critério o custo de oportunidade de vender para outra pessoa. Usualmente, se me oferecerem um valor abaixo daquele não aceitarei, se oferecerem aquele valor ou valor à maior aceitarei efetuar a venda. Claro que um vendedor pode tomar outras atitudes, por exemplo, pode dar o produto como cortesia para fidelizar o cliente…

INTERSUBJETIVIDADE 1: DETERMINAÇÃO DO PREÇO DENTRO DO INTERVALO DE VALOR EM COMUM (ESPECÍFICO AO COMÉRCIO)

Usualmente quem compra aceita, pagar um preço (correspondente a um limite de valor que a pessoa atribui no momento) ou qualquer valor abaixo. Usualmente quem vende aceita entregar seu produto por um determinado preço (correspondente a um limite de valor que a pessoa atribui no momento) ou qualquer valor acima daquele. Ou seja, em regra a transação comercial se dará neste intervalo correspondente ao que quem compra está disposto a pagar e ao que quem vende está disposto a receber para entregar o produto, sendo o limite superior de preço o valor máximo que o comprador aceita pagar e o limite inferior o preço mínimo que vendedor aceita pagar. Quanto maior o intervalo de intersecção mais provável que a transação ocorra. O preço efetuado em uma transação comercial é a transposição dos valores das individualidades para um contexto em comum (o contexto são as regras da transação comercial). Ou seja, é desnecessário um lastro para o valor da moeda, em se entendendo as regras (o contexto) a transação se torna possível.

INTERSUBJETIVIDADE 2: INTERSECÇÃO DE SUBJETIVIDADES (NECESSÁRIO E SUFICIENTE À COMUNICAÇÃO)

Da mesma maneira que no comércio a comunicação depende de um entendimento do contexto (as regras a partir do qual a comunicação se dá). Este contexto é ínfimo em relação a toda a subjetividade de cada uma das individualidades envolvidas na comunicação (imagine a riqueza e a complexidade que cada pessoa é). Da mesma maneira que o comércio dispensa o lastro da moeda a comunicação dispensa o lastro do entendimento. Quando minha mãe me pede um copo de água a compreensão da “essência da água” é desnecessário. O que é necessário é que a água esteja gelada - mesmo que ela não peça explicitamente. O contexto (minha mãe pedir) me mostra que a água deve ser gelada (conheço o gosto dela). Se eu trouxer um copo com água natural a comunicação falhou (terei que voltar trazendo, desta vez, água gelada). As regras da comunicação são o contexto em que ela ocorre. Inclusive é possível comunicação sem sequer conhecermos a língua da outra pessoa (apenas com gestos). É necessário e suficiente a intersecção das subjetividades (o entendimento comum das regras do contexto).

CONSCIÊNCIA RASA

Há um caso famoso em que o McDonald’s tentava incrementar suas vendas, fizeram diversas pesquisas entre seus consumidores e atenderam às suas demandas. Um exemplo de uma medida que tomaram (sem impacto nas vendas) foi a inclusão de novos itens em seu cardápio. Daí contrataram a consultoria de Clay Christensen. Christensen passou a perguntar a respeito da circunstância em que elas compravam (pois havia notado que haviam muitas compras de apenas um milkshake de madrugada). Ele chegou à conclusão que era para passar o tempo - pois o translado até o trabalho levava horas. Christensen então passou a colocar frutas ou pedaços de biscoito no milkshake - de tamanhos equivalentes à espessura do canudo (com a intenção de entupi-lo). Ao colocar empecilhos tomar o shake se tornava mais desafiante e havia a sensação de matar o tempo com ele. As vendas aumentaram! Antes da consultoria de Christensen nem a empresa nem as pessoas sabiam o motivo pelo qual o produto era vendido. Ainda assim ele era vendido! Assim se dá uma transação comercial, governada largamente por desejos e entendimentos inconscientes com apenas uma fina camada de entendimento comum (de intersubjetividade) que possibilita que a transação seja realizada.

FUNCIONAMOS A DESPEITO DA RACIONALIDADE

No começo deste ensaio dei alguns exemplos de práticas que funcionam a despeito da racionalidade. A Marta, jogadora de futebol eleita a melhor do mundo cinco vezes, consegue dominar uma bola que vem a uma velocidade incrível, a uma enorme distância e em com efeito (ou seja, com uma trajetória curva). Ela não recorre aos seus conhecimentos de física para isto. Em outras palavras, a física não dá lastro para a habilidade de Marta. Da mesma maneira um físico nuclear não precisa recorrer aos seus conhecimentos de filosofia para fazer seus experimentos. Ele pode, inclusive, ter entendimentos completamente equivocados a respeito da metafísica ainda assim ser um excelente físico! David Hume mostrou com o argumento da regressão ao infinito que o conhecimento necessariamente tem uma fundamentação arbitrária - pois sempre teríamos que buscar a fundamentação da fundamentação). Com este ensaio espero ter te preparado para entender a própria linguagem a partir de uma perspectiva cética.

RESUMO

Para uma transação comercial é desnecessário ter um conhecimento profundo sobre o que a mercadoria significa para quem compra ou para quem vende, bem como é desnecessário que a moeda usada para a transação tenha um lastro. Para uma transação comercial é necessário apenas que uma troca ocorra de maneira livre - isto só é possível em se entendendo as regras da transação comercial. Com a comunicação se dá o mesmo, é desnecessário (e impossível) entender toda a riqueza do que cada conceito significa para cada parte envolvida no diálogo. As palavras (ou gestos, ou texto escrito ou qualquer outra forma de passar a mensagem) são como a moeda é para o comércio. A moeda funciona a despeito de ter uma correspondência com o ouro. Da mesma maneira cada palavra funciona a despeito de ter uma correspondência com algo de existência objetiva. Tanto a moeda como as palavras funcionam quando há um entendimento das regras exigidas na situação.

CONCLUSÃO

Somos amplamente ignorantes em relação às nossas experiências e habilidades, a constatação de que realizamos proezas complexas não é evidência de que nossas decisões são amparadas na existência objetiva de cada conceito com os quais lidamos. Assim como a construção de um cupinzeiro não é evidência de que os insetos saibam química ou física. Poderia parecer (a partir de um olhar ingênuo) que o conhecimento de física é a base para ser um jogador de futebol. Mesmo que fosse o caso ainda assim faltaria justificar qual é o embasamento da física (raciocínio que leva à regressão ao infinito). A comunicação se dá na medida em que funciona e ela funciona de acordo com regras construídas e aperfeiçoadas ao longo do tempo. Mas isto já é tema para outro ensaio….