ENTENDER e SIGNIFICAR - O TODO INCOGNOSCÍVEL 23

CONSTRUINDO UM CONHECIMENTO CÉTICO

A maior parte dos ensaios do Todo Incognoscível dediquei defender a perspectiva cética do conhecimento ao mostrar que todo conhecimento tem suas limitações. O que traz desconforto, há quem se sinta desestimulado ante a impossibilidade de alcançar “a Verdade” (definitiva) de algum tema. Também há quem defenda que a perspectiva cética nivela todo o conhecimento, de maneira que teorias com sólida fundamentação teriam a mesma pertinência que a teoria elaborada por um aproveitador para fins meramente pessoais. Desta maneira resolvi passar a dar mais ênfase na criação do conhecimento. Neste ensaio falarei a respeito do que é entender e do que é atribuir significado. Vamos começar falando a respeito do conceito de ‘dois’.

CONCEITO “DOIS”

O que te vem à cabeça quando digo “dois”? Por que o conceito “dois” funciona? Alguém poderia supor que a facilidade em entender “dois” se deve à sua descrição dentro de regras aritméticas. Mas mesmo quem nunca estudou as regras formais dentro das quais “dois” se inscreve o usa. Quando pensa em “dois” te vem à cabeça as regras da aritmética? A mim logo vem dois dedos levantados. Você consegue dar exemplos de “dois”? Consegue dar exemplos de usos do “conceito”? Qual foi a última vez que você usou este “dois”? Creio que a última vez que usei foi quando pedi duas paçocas numa padaria. Nós usamos tanto “dois” que o conceito se torna automático, da mesma maneira as pessoas ao meu redor. Assim, quando uso o conceito tenho muita confiança de que a pessoa tem um entendimento muito próximo ao meu. Certamente tanto familiaridade como a descrição formal desempenham um papel fundamental no entendimento de “dois”. Em outras palavras, tanto o sistema um (intuitivo) como o sistema dois (racional) são importantes para entender o “dois”.

USAMOS A INTUIÇÃO MUITO MAIS DO QUE A RAZÃO

Nós nos achamos extremamente racionais, acreditamos que a fundamentação aritmética (sistema dois, racional) é aquela na qual nos apoiamos. Daniel Kahneman mostrou com diversos experimentos que não é o caso, o sistema dois é usado com muito esforço e muito esporadicamente. A fundamentação racional pode até criar uma heurística (o pensamento intuitivo). Mas operamos através do sistema intuitivo (sistema 1) no nosso dia a dia. A facilidade do uso do conceito e seu significado se devem à frequência do seu uso. Mesmo quem domina as regras aritméticas tem dificuldade em entender o que sai da sua familiaridade. Quer ver, pense ‘três trilhões’, você consegue?

TRÊS TRILHÕES

Se você é um economista ou um físico, talvez esteja acostumado a pensar em números dessa magnitude. Não é o meu caso, eu consigo visualizar um dedo, dois dedos, dez dedos... com muito esforço consigo visualizar vinte dedos (penso em duas mão e dois pés). Mas não consigo visualizar cem dedos. Como trabalho com dinheiro, estou acostumado a manusear centenas e até milhares de reais. Mas três trilhões? Nem sei quantos zeros tem um trilhão! Repare, as mesmas regras aritméticas que regem o “dois” rege o “três trilhões”, ambos são números. Ainda assim, tenho extrema dificuldade em interpretar “três trilhões”.

ENTENDENDO TRÊS TRILHÕES

Um milhar trêm três zeros à direita (1.000), um milhão tem seis zeros à direita (1.000.000), um bilhão tem nove zeros à direita (1.000.000.0000), um trilhão tem doze zeros à direita (1.000.000.000.000). E o que quer dizer cada zero à direita? Quer dizer que multiplicamos o número por dez. Então pense na unidade, a multiplique por dez, multiplique novamente e novamente ... faça isto doze vezes. Muito bem, agora multiplique por três, pronto, três trilhões de dólares!!! Entendeu? Eu, sinceramente, entendi apenas que é um número grande, mas quão grande?

SIGNIFICANDO TRÊS TRILHÕES

Vamos nos colocar em termos mais familiares, em termos financeiros. O que são três trilhões de dólares? Um dólar é um pouco mais de cinco reais. Agora pense no que você ganha no seu salário. Pense no salário do seu chefe, do cobrador de ônibus, do juiz, do prefeito, no lucro do dono da Sadia, pense na remuneração de todo mundo do Brasil (incluindo a gigante São Paulo, a Petrobrás, os pecuaristas do centro oeste...). Pensou? Então, se você pegar tudo o que todo mundo no Brasil recebeu não chega a 3 trilhões de dólares! Mais uma: vamos relacionar a um conceito extremamente familiar, o de “segundo”. Se a cada dólar voltássemos no tempo um segundo e a gente voltasse no tempo 3 trilhões de dólares, então voltaríamos 96 mil anos!!!! Após fazer este pequeno exercício especulativo, ‘três trilhões’ se torna um pouquinho mais familiar. OBS1

ENTENDER É SER CAPAZ DE CONSTRUIR MODELOS QUE MIMETIZAM AQUILO QUE ESTÁ SENDO REFERIDO

O que eu quero dizer é que apenas ser capaz de manipular as variáveis em um sistema formal (apenas ser capaz de multiplicar, dividir e subtrair o “dois”) é entender, mas é um entendimento absolutamente insignificante. E daí saber que 2 + 2 = 4? Ou que 3 * 10^12 é igual a 3 trilhões? Entender é ser capaz de criar modelos dentro dos quais um conceito entra em ação. Esta é uma capacidade fabulosa, mas completamente insignificante! Para que tal capacidade diga algo a respeito das experiências que vivemos é necessário dar mais um passo: atribuir significado.

ATRIBUIR SIGNIFICADO, ENTENDIMENTO DE SEGUNDO NÍVEL

O significado se dá quando conseguimos fazer relações, comparações, traçar paralelos e construir metáforas.... atribuir significado é transversal a, no mínimo, dois sistemas. Ou seja, atribuir significado é ser capaz de usar um conceito (ou uma teoria) como um meta sistema, um sistema a respeito de outro sistemas. E tal capacidade se desenvolve com a prática, quanto mais usamos um conceito (portanto, um sistema no qual o conceito se insere), mais somos capazes de transportá-los para contextos diferentes. O que também tem seu lado ruim, pois quanto mais o usamos, mais eles nos parecem naturais, metafísicos, necessários. Quanto mais usamos um conceito, mais difícil se torna se distanciar dele para pensar em maneiras de pensar com as quais ele é incompatível. Apesar do inconveniente de nos dar a impressão de que existem Verdades, o entendimento é maravilhoso, quanto mais entendemos maior é o cenário do espetáculo que é a existência! E qual o espetáculo “três trilhões” vai descortinar?

“MAKING SENSE OF” - SIGNIFICANDO - PROFUNDIDADE DO ENTENDIMENTO

Uma manchete do Valor Econômico diz que o presidente recém eleito dos EUA, Joe Biden, anunciou um pacote de 3 trilhões de dólares de gasto. O que isto é para você? Duas perguntas:

1) Você consegue entender isto? Isto é, você consegue criar um ou mais modelos na sua cabeça dentro do qual estes “três trilhões” são uma variável? Não precisa serem perfeitos (inclusive, se fossem perfeitos não seriam modelos, seriam a própria coisa).

2) Você consegue atribuir significado a isto? Isto é, você consegue fazer relações com o seu dia a dia ou com conceitos a respeito dos quais você pensa e te preocupam?

Será que as pessoas que decidiram pelo gasto de três trilhões de dólares conseguem extrapolar o que são três trilhões de dólares para além dos modelos matemáticos e econômicos “perfeitos” nos quais tal impressão se insere? Em outras palavras, será que elas entendem o que são três trilhões de dólares para além do contexto restrito de seus modelos, será que conseguem entender o que são três trilhões de dólares para a economia mundial, para o dólar ou para mim e para você? Não importa, este ensaio é de epistemologia. Eu gostaria apenas de mostrar o que é entender, e que o entendimento pode se dar em diferentes níveis. No primeiro nível o entendimento dentro de seu próprio sistema, é insignificante. Quanto mais somos capazes de fazer entendimento de segundo nível, mais somos capazes de atribuir significados.

ENTENDIMENTO DE PROFUNDO

Entender o conceito é um entendimento de primeiro nível. A partir dele é possível, para quem consegue fazer relações, atribuir significados. O significado é atribuído na medida em que fazemos relações (ou seja, na medida em que usamos sistemas para ler outros sistemas). Este entendimento pode ser bem superficial, pode ser vários sistemas lendo um sistema de primeiro nível. Foi o caso dos exemplos que dei acima. Ao falar das características dos 3 trilhões eu estava apenas o descrevendo dentro de seu próprio sistema (aritmético). Da mesma maneira quando dei o exemplo de três trilhões de segundos (aritmética e tempo). Ao falar de três trilhões de dólares e seu uso na economia estava apresentando um sistema de segundo nível (aritmética e economia). Ao perguntar o que significa a impressão de três trilhões de dólares estou chamando para um terceiro nível de entendimento (primeiro aritmética, segundo economia, o terceiro o modelo que lhes apresento neste ensaio de “entender e significar”). Falando nisso, será que você entendeu corretamente o que estou dizendo?

ENTENDER ERRADO

Se faz necessário comentar sobre “entender errado”. A correção de um entendimento, é um dos temas mais relevantes para minha filosofia e demanda inclusive um jargão específico. De maneira que escreverei um ensaio exclusivamente sobre o tema. Mas é importante notar que defendo uma filosofia cética, portanto descarto um entendimento que corresponda a uma Verdade (universal, atemporal). Portanto a correção de um entendimento se dá dentro de um contexto. Esta perspetiva é coerente com a percepção de que os modelos não correspondem perfeitamente àquilo que vivenciamos e experimentamos. Caso assim o fosse não seriam modelos, seriam a coisa à qual se referem.

ENTENDIMENTO SUBJETIVO

É contraintuitivo notar que o entendimento, tal como o apresento, é a criação de modelos dentro dos quais conceitos entram em ação. Um modelo de primeiro nível (portanto insignificante) pode estar sujeito a avaliação de sua correção intersubjetivamente. Ou seja, é possível um professor avaliar se duas pessoas têm o mesmo entendimento do que é aritmética. Entretanto, é impossível fazer o mesmo em um entendimento de segundo nível (atribuição de significado). Pois a atribuição do significado se dá com o uso, e o uso que cada pessoa faz dos conceitos que aprende é extremamente específico.

CONSTRUINDO UMA EPISTEMOLOGIA CÉTICA

Este é um ensaio em que mudo de direção, nos ensaios anteriores minha maior preocupação era mostrar como as bases do conhecimento são necessariamente frágeis. A partir deste minha preocupação é ser mais construtivo, é mostrar como é possível um conhecimento pertinente, mesmo a partir de uma perspectiva cética. O primeiro passo neste sentido (objetivo deste ensaio) foi mostrar o que é entender e o que é atribuir significado. Entender é conseguir construir um modelo no qual o conceito é uma parte, atribuir significado é um entendimento de outro nível, um meta entendimento. A capacidade de atribuir significado melhora com a prática, sendo extremamente fácil atribuir significado a partir de um conceito usual (como “dois”) e extremamente difícil atribuir significado a um conceito pouco usual (como três trilhões), mesmo estando ambos no mesmo sistema formal. Já a correção do entendimento se dá de acordo com o contexto, a demanda de que o entendimento corresponda perfeitamente àquilo ao que se refere é ou injusta (uma vez que um modelo nunca corresponde perfeitamente àquilo ao que se refere) ou tautológica, se considerarmos que aquilo ao qual se refere é uma projeção dos modelos que criamos - mas este é um tema para outro ensaio!

REFERÊNCIAS TEÓRICAS

Como não me comprometo com as ideias de nenhum autor tenho muita reticência em dar referências teóricas, minha preocupação é construir uma filosofia coerente consigo mesma (consistente), não em fazer uma teoria consistente com que outras pessoas disseram. Dito isto gostaria de elencar a influência de alguns autores para este ensaio:

David Hume - O autor que me convenceu a ser cético. Sua influência está bem clara quando digo que a familiaridade nos transmite a percepção de que algum conceito é inexorável, metafísico, real.

Daniel Kahneman - O autor do ‘sistema um (intuitivo)’ e ‘sistema dois (racional)’. Ele mostra que o uso da razão é algo excepcional e demanda extremo esforço. Também chega à conclusão de que aquilo que é familiar é tido como real.

Karl Popper - Popper fala a respeito dos modelos construídos pela ciência. Vejo minha filosofia como uma generalização de Popper para todos os campos do conhecimento (inclusive para o dia a dia). O que começa a ficar claro neste ensaio.

Douglas Hofstadter - O tema de entender x atribuir significado é explorado magnificamente no livro ‘Godel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid’.

Nelson Goodman - O tema da diferença entre um símbolo e sua extensão é extremamente abordado por Goodman. Pelo mesmo raciocínio defendo que um modelo necessariamente se distingue daquilo que ele representa, em outras palavras, um modelo necessariamente é diferente daquilo que representa.

CONCLUSÃO

Após diversos ensaios mostrando que as bases da racionalidade e do conhecimento são frágeis, escrevi este, que começa a apresentar um modelo de entendimento do conhecimento (uma epistemologia) cética. Em seguida mostrei que mesmo quando um conceito tem uma base formal (o que raramente é o caso) a atribuição do significado se dá a partir da prática, pois entendimento de um conceito em apenas um nível é insignificante. Por isto o uso do conceito ‘dois’ é muito mais mais fácil que o uso do conceito ‘dois trilhões’, mesmo ambos estando no mesmo sistema formal. A atribuição de significado é um meta entendimento, é a leitura de um sistema a partir de outro. Quanto mais traçamos relações, melhor entendemos um conceito (por isto fiz o exercício de traçar as relações com o número três trilhões, para torná-lo um pouquinho mais familiar). A atribuição de significado se dá através do uso, cada vez que usamos um conceito mais ele ganha familiaridade e mais fácil se torna entendê-lo em outro contexto. Como a atribuição de significado se dá a partir do uso dos conceitos e o uso que cada pessoa faz é único, a atribuição de sentido é subjetiva. E o entendimento pode ser incorreto? Sim, mas a correção de um entendimento se dá pelo contexto. Exigir de um modelo que ele corresponda perfeitamente àquilo que a que se refere é impossível, se houvesse tal correspondência ele não seria um modelo, mas seria aquilo a que se refere. Por outro lado, se definirmos aquilo ao qual nos referimos a partir do sistema, diremos que sempre a coisa sempre tem uma correspondência perfeita com aquilo a que se refere (e o modelo se torna tautológico e insignificante).

OBS 1: Para os mostrar a relação entre três trilhões de dólares e o PIB do Brasil.

PIB do Brasil:

https://www.ibge.gov.br/explica/pib.php#:~:text=Todos%20os%20pa%C3%ADses%20 calculam%20o,%24%202%20003%2C5%20 bill%C3%B5es

Câmbio 25/03/2021 : Um real 5,62 dólares.

OBS 2: Ensaios contrários à visão de que existe alguma Verdade necessária:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7069375

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7056223

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7062763