Adoniran Barbosa - Radiografia sonora

Há alguns músicos ou cantores pelos quais tenho apreço especial, não somente por suas obras, mas por aquilo que sinto em suas personalidades, ou acho que sinto. É como se houvesse uma empatia entre eu e Thelonious Monk, Ian Anderson ou Adoniran Barbosa, sobre quem falo neste texto. É algo estranho, na verdade, assim como é estranho este texto em si, pois ele não tem a intenção de provar um ponto de vista, de fazer análises precisas ou de fornecer informações técnicas. O que segue é apenas um fluxo de ideias escritas que têm começo, mas não necessariamente fim.

São Paulo é uma das cidades mais plurais do mundo e sua cultura local foi dando espaço para outras cores e ânimos nas últimas décadas, de modo que ela esqueceu de si mesma com o passar do tempo, ao invés de incorporar tudo que recebeu e gerar algo novo a partir de então. Hoje, há poucas coisas que façam o paulistano se lembrar e ter orgulho de onde vem, e uma delas é a música de Adoniran Barbosa.

A voz rouca e um tanto fanha de Adoniran é uma fotografia sonora cinza das favelas da Casa Verde e Jaçanã, cruzando as ruas da Mooca e do Brás, passando pelos botecos do Bixiga, até chegar no centro da capital ainda banhada por uma garoa que hoje não existe mais. Aliás, talvez este seja o grande efeito de sua música sobre mim: o saudosismo de uma São Paulo romântica que para alguns distraídos nem tenha existido. Uma belle epoque de trabalho e pobreza.

Talvez minha conexão com João Rubinato, nome real de Adoniran, venha do simples fato que, em outras décadas, ele pisou o mesmo solo onde eu dei meus primeiros passos; onde meus antepassados, tão pobres como ele e da mesma origem, também depositaram suas esperanças. E, hoje, tudo isso está acabado. Mas não é só isso. Há algo no olhar dele que talvez só diga respeito a mim. Sim, talvez, eu esteja platonizando.

Não é o antigo, mas o velho, o decadente, o desolador que predominam boa parte desta paisagem outrora ocupada por símbolos de vigor econômico como tecelagens e metalúrgicas. Tal área nunca foi exatamente bonita, embora tenha sido a coisa mais linda desse mundo para alguns que ali viveram, como eu. No entanto, ainda se ouve Adoniran ecoando dos silêncios escuros das janelas das pensões do Brás, cantando Abrigo de Vagabundo como que expressando os braços abertos desta cidade que abrigava a todos.

Se fosse gênero literário, o samba de Adoniran - e por que não dizer o samba paulistano? - seria quase poesia concreta, uma busca discreta pelo minimalismo, reduzindo o pandeiro e o bumbo a uma caixinha de fósforo. Apesar do lirismo das melodias (talvez ai uma herança da descendência italiana), a estrutura é simples, a mensagem é direta e o que se canta é a realidade nua e crua, sem a riqueza de metáforas e o espírito de malandro do samba carioca, sem a transcendência e leveza do samba baiano. O samba paulistano é preto no branco. Enquanto o samba do Rio torna tudo grandioso e canta até mesmo a tristeza com certa alegria, o samba de São Paulo canta a tristeza com mais tristeza ainda, quase como que debochando da própria desgraça. "E hoje ela vive lá no céu, bem juntinho de nosso Senhor. Como lembrança, guardo somente suas meias e seus sapatos. Iracema, eu perdi o seu retrato".

As musas de Adoniran não eram Beatriz, Lígia ou Luiza, mas sim, Malvina, Pafunça, Inês, mulheres da classe operaria, sofridas, quase sempre condescendentes com a exacerbada liberdade dos maridos. "Não perturbo mais teu sono. Chego a meia-noite e cinco ou então a qualquer hora" - cantava o marido boêmio. Às vezes eram imprevisíveis e sempre desprovidas de qualquer glamour, a exemplo de Inês que não disse que ia comprar cigarros e nunca mais voltou. Inês, na verdade, disse que ia comprar o pavio para o lampião e deixou um recado no chão, bem ao lado do fogão: "pode apagar o fogo, Mané, que eu não volto mais." Às vezes eram sábias também, mas invariavelmente amadas. "Mai daí, o homem reza todo dia uma oração. Se quiser tirar de mim arguma coisa de bão, que me tire o trabaio. A muié não!".

Permeadas por erros de português propositais, bem típicos dos ítalo-paulistanos (que incomodaram até o poetinha, mas que, entretanto, não o impediram de comissionar a melodia de "Bom dia, Tristeza" a Adoniran), suas canções abordaram frequentemente os problemas sociais da época, em especial a questão da habitação, sem, no entanto, fazer militância, pois isso talvez soasse demasiado sofisticado, assim como seria sofisticado fazer uma análise do homem trabalhador em conflito com o vagabundo / boêmio / artista que é tão presente em sua obra. A modernidade lhe parecia pesar demais.

No campo da linguagem, vale ainda lembrar que o sambista do Bixiga também compôs o samba italiano (cantado em italiano macarrônico), além do que ele brincava com anglicismos como ninguém, aplicando nas canções frases do tipo: "A mezza note o'clock, saiu uma baita duma briga. Era só pizza que avoava, junto com as brachola" e "Tudo aquilo era para mim. Gemia e me olhava assim como quem diz: alô, my boy".

"Por que vocês não me procuraram há vinte anos?" - perguntou o compositor aos jornalistas no final dos anos setenta quando sua música passou a ser mais reconhecida. O que se pode dizer é que a música de Adoniran, mesmo tratando de um microcosmo tão específico e sendo tão prosaica, felizmente sobreviveu a todos os arroubos, os modismos e internacionalismos, que quase a apagaram, alcançando a era digital e confirmando seu compositor não somente como um artista paulistano, mas como um artista brasileiro e universal, justificando a fala célebre de Tolstoi: "Pintando bem tua aldeia, serás universal", e provando que ele ainda é, sim, cinquenta anos depois, uma brasa. Basta assoprar.

Otto M
Enviado por Otto M em 22/07/2021
Código do texto: T7305031
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