Porque o conceito marxista de classe confunde ao invés de esclarecer - Todo Incognoscível 35

SERÁ O CONCEITO MARXISTA DE CLASSE ESCLARECEDOR?

Estes dias, debatendo com um amigo (vou chamá-lo de Ronan), eu disse que recuso qualquer conceito de Marx, primeiro porque sua teoria diverge da filosofia cética que sigo 1*, segundo porque seus conceitos divergem daquilo que observamos. Em defesa de Marx, meu amigo argumentou que nenhum conceito tem uma representação perfeita naquilo que é observado. Oras, se a crítica que eu faço se aplica a todos os conceitos, então ou os recusamos todos ou nenhum.. Como cético concordo com o argumento apresentado, inclusive sigo Taleb, Popper e Hume! À noite daquele dia Ronan me encaminhou um texto descrevendo a classe trabalhadora para que eu, à luz de tal descrição, passasse a aceitá-la. Vi neste debate uma ótima oportunidade de mostrar como um cético, alguém que optou por nunca apelar para ‘A Verdade’ é capaz de aprimorar o conhecimento à luz de evidências, debates e críticas. Mas vamos para o início, será que um conceito necessariamente é incapaz de ter uma correspondência perfeita com 'A Verdade'?

Meu amigo pediu para eu definir um carro, falei, “Veículo de quatro rodas movido por um motor usado para transporte.” No que Ronan logo pensou em diversos casos em que muita gente consideraria carro, mas não se enquadra na minha definição. Como um carro quebrado (portanto o motor não o move), um carro que nunca foi ligado (portanto nunca foi usado para transporte) e casos que se enquadram na minha definição mas que muita gente não consideraria um carro, como um carrinho de controle remoto usado para retirar amostras em lugares de difícil acesso ou um veículo de muitos lugares (ônibus)... Para alguém que não é afeito às sutilezas da filosofia, estas parecem ser objeções bobas, quase fruto de má fé. Esta impressão se dá porque é a familiaridade, o costume e o hábito que nos dão a sensação de realidade. Quando alguém oferece casos fora do habitual tais casos parecem objeções irrelevantes. É apenas desconsiderar o hábito como critério para avaliar um argumento e estas aparentemente picuinhas, se revelam tão relevantes como quaisquer outras críticas. Os conceitos correspondem, na cabeça de cada pessoa, àquilo que elas têm o hábito de associar, entretanto, não é legítimo para o debate filosófico apelar para o senso de realidade. Cada pessoa supõe que o que é real para ela, também o é para as outras pessoas, mas este não é o caso. Apelar para o “bom senso” ou para a “realidade” é apontar para as próprias experiências, para as próprias crenças, para o próprio hábito.

COMO DECIDIR POR ALGUMA TEORIA SEM APELAR PARA "O" REAL?

Mas se não existe O Real, como é possível negar um conceito? Como negar, por exemplo, o de classe trabalhadora? Ou como posso aceitar algum conceito? Popper, no livro ‘A lógica da pesquisa científica’ apresenta uma proposta de demarcação da ciência, uma maneira de entendê-la sem apelar para ‘A Realidade’. A propósito, apelar para evidências para provar ‘A Realidade’ é aquilo que os positivistas defendem 2*, a partir da perspectiva positivista é possível “provar”, que todos os cisnes são brancos, que a Terra é o centro do universo ou que Papai Noel existe 3*. Popper, defende que a busca por teorias mais pertinentes se dá criando hipóteses alternativas. Tais hipóteses possuem uma lógica diferente da lógica do modelo vigente e, a partir desta lógica nova, é possível fazer previsões que possuem resultados diferentes do modelo anterior. Caso um teste, elaborado a partir da nova lógica, seja previsto pela teoria nova, mas apresente um resultado diferente do que previu a teoria antiga, então a teoria antiga é negada e a teoria nova passa a ser aceita. A teoria nova é aceita não porque possui um laço inegável e “provado” com A Realidade, mas apenas porque é mais adequada para explicar as experiências com o conhecimento atual. Nada impede que uma nova teoria venha a negá-la no futuro.

Aceito a proposta de Popper para a ciência e meu esforço é usar uma versão mais leve para o conhecimento em geral. Aceito para a ciência, como ele defende, que a disputa entre teorias se dê a partir de experimentos. Levar a mesma orientação ao conhecimento em geral é impossível, pois o dia a dia não é regido por teorias com lógicas explícitas, como é o caso da ciência. É comum usarmos expressões com um sentido e logo depois usar com outro sentido, da mesma maneira é comum defendermos duas coisas que são contraditórias, mas que nunca tenhamos nos dado conta disso. Também é comum cada pessoa, mesmo achando que está sendo racional, apelar para intuições (heurísticas) ou inverter a ordem do que é conclusão e o que é fundamentação. É o que acontece quando uma pessoa toma uma ação ou uma posição e apenas depois cria a justificativa para dizer que tomou aquela decisão.

Daniel Kahneman mostrou que a condição humana (de se valer da intuição, o sistema rápido) tem suas vantagens. Nossa vida seria impossível se fôssemos racionais na maior parte das decisões (ser racional exige muito trabalho, muito esforço, muito tempo). Além disso, como David Hume mostrou, mesmo aquilo que chamamos de racionalidade é instinto: temos a capacidade de aprender desde que nascemos, tal capacidade não é uma dedução racional elaborada que o bebê fez ao nascer, mas uma capacidade inata, um instinto.

Mas não devemos confundir as coisas, não é porque somos incoerentes e contraditórios em nossas vidas (devido à limitação de escrutinar perfeitamente o planejamento de cada ação) que tais contradições são defensáveis. O que volta ao tema deste ensaio, como fazer algo análogo à ciência (ser capaz de repensar nossas crenças à luz de novas teorias, críticas e evidências) não apenas na ciência, mas também no dia a dia? No caso específico, como escrutinar um conceito (neste caso o conceito marxista de classe) e decidir a favor ou contra ele?

CONCEITO DE CLASSE ECONÔMICA

Antes de ver o conceito marxista de classe vejamos o conceito de classe econômica usado, entre outros, em pesquisas eleitorais. Primeiro é definida a classe A, classe B, classe C a partir da renda. O critério para fazer parte de alguma destas classes é explícito e transparente: a média renda familiar (renda total das pessoas que moram na casa dividido pela quantidade de pessoas). Após a pesquisa podemos dizer que o candidato tem determinada popularidade com a classe A (conta com 32% da intenção dos votos), tem uma determinada popularidade com a classe B (conta com 28% da intenção de votos) e uma outra popularidade com a classe C (conta com 40% da intenção de votos). Então a divisão de classes é um conceito bem definido que ajuda a entender informações eleitorais, econômicas e sociais.

Mas digamos que uma das pesquisadoras percebe que na classe C é comum encontrar um gráfico com duas modas. Tanto em pesquisas eleitorais como em pesquisas de hábitos de consumo e em pesquisas sobre a educação é comum encontrar, dentro do gráfico da classe C, duas montanhas. Neste caso, a pesquisadora pode achar interessante subdividir a classe C em duas classes. Uma continua se chamando classe C e a outra se chama classe D. Perceba, quem pesquisa aprimorou o conceito de classe de uma maneira que possa ter uma leitura mais clara dos dados. Ela pode até usar a sua nova divisão em quatro classes (A, B, C e D) com os dados das pesquisas anteriores para ver se tal divisão esclarece o comportamento de tais pesquisas. Sabemos que nem sempre as pesquisadoras são tão honestas quanto possível. É prática, inclusive entre cientistas “torturar os dados até que eles entreguem o que querem ouvir” 4* .Entretanto, orientar as ferramentas de tratamento de dados (ou seja, os conceitos e teorias) com o objetivo de alcançar determinada conclusão é considerado um erro ou uma desonestidade. O objetivo é aprimorar as ferramentas (como o conceito de classe C) para entender melhor os dados. Mas o que se dá com o conceito de classe de Marx?

CONCEITO MARXISTA: CLASSE DAS TRABALHADORAS PRODUTIVAS

Primeiro devemos entendê-lo. As classes não seriam divididas em relação à sua renda ou riqueza, mas em relação ao conceito de “mais valia”. A classe dos “trabalhadores produtivos” (ou seja, daquelas pessoas que pegam coisas físicas e as transformam através do seu trabalho) está em um papel central na teoria marxista. Uma vez que seria ela que geraria valor, seria exclusivamente as trabalhadoras produtivas que gerariam a mais valia (portanto seriam exploradas). Todas as outras classes (inclusive a das “trabalhadoras não produtivas”) viveriam a partir da distribuição da mais valia. As trabalhadoras “não produtivas” são aquelas que trabalham na limpeza, na organização, na saúde, na logística, no entretenimento… A classe que, por definição, seria a explorada é a das “trabalhadoras produtivas”, mas por motivos práticos (seria mais fácil reunir todas as pessoas para a causa da revolução) as comunistas usam o conceito de “classe trabalhadora”.

Como as outras classes seriam beneficiadas por tal exploração suas crenças seriam moldadas por seus interesses espúrios (as famosas “ideologias”). E, é claro, as estruturas sociais de distribuição de mais valia são dinâmicas, variáveis, evoluem. Desde a escravidão, passando pela servidão, pelo capitalismo e, um próximo (e “inevitável”) passo chegaria ao comunismo: uma vez que no comunismo ninguém seria explorado, ele seria a última etapa da evolução social. Certo, agora que temos o conceito de classe econômica (com critério de renda) e o conceito de classe trabalhadora produtiva (com o critério da distribuição da mais valia) podemos fazer uma comparação entre ambas.

O conceito de classe econômica (A, B e C) serve para organizar e atribuir sentido aos dados de pesquisas. Se não houvesse correlação entre os dados e as classes econômicas simplesmente este instrumento seria abandonado, ninguém faria pesquisas levando a renda em consideração. Em outras palavras, se em diversos estudos achássemos que a distribuição de votos entre determinado candidato é igual em cada classe econômica, por que gastaríamos tempo e esforço perguntando qual a renda familiar de um monte de pessoas em uma pesquisa eleitoral? Se fosse o caso buscaríamos outra variável que explicasse melhor o voto, como a idade ou a religião da pessoa.

CLASSE ECONÔMICA x CLASSE DAS TRABALHADORAS PRODUTIVAS

Por outro lado, como falei acima, caso a ferramenta ‘classe econômica’ se revele particularmente frutífera, podemos refiná-lo em mais classes, na medida em que se mostrar que haverá mais correlação entre os dados e as classes. Tal passo (aperfeiçoar a ferramenta de pesquisa) deve ser tomado com muito cuidado, afinal, sempre há o risco de “torturar os dados para que entreguem a conclusão desejada”. Ou seja, a pesquisadora e especialmente a cientista têm um esforço em adequar suas ferramentas aos dados, de maneira que todo o processo de análise seja transparente e, na medida do possível, replicável. O maior esforço é para que as conclusões reflitam os dados, a despeito de serem conclusões desagradáveis. Infelizmente nem sempre é assim, as pesquisadoras usualmente elaboram pesquisas que não desagradam suas patrocinadoras. Além disso, as próprias patrocinadoras vão financiar apenas as pesquisas que lhes favorecem. As empresas de cigarro financiaram apenas pesquisas que mostravam os benefícios do cigarro ou que questionavam as pesquisas que mostravam os malefícios do cigarro.

Ainda assim, disputas são travadas, tanto quanto possível, no âmbito das ideias. Para desacreditar um estudo, dizer que ele foi financiado por quem tem interesse em um determinado resultado não é suficiente. Para desacreditá-lo é necessário ler a pesquisa, examinar os dados, examinar o tratamento de dados e, se for o caso, replicar a pesquisa. Se a pesquisa replicada não reproduzir um resultado semelhante, uma terceira e uma quarta pesquisas podem ser feitas, ou mesmo uma pesquisa com amostra de milhares de pessoas. Hoje a opinião das especialistas, amparada pelas pesquisas, é a de que fumar é prejudicial à saúde - mesmo com toda a pressão econômica no sentido de se provar o contrário.

Com o conceito de classe “trabalhadora produtiva” de Marx se dá algo muito diferente. A classe não seria disposta por critério de renda, mas pelo critério de distribuição de mais valia. Assim, as pessoas que transformam produtos físicos (as exploradas) estariam em uma mesma classificação, as trabalhadoras que não fazem a transformação física através do trabalho estariam em outro grupo (é o caso de quem presta uma assessoria, uma professora, advogada…). Ou seja, uma pessoa que faz prótese de válvula de coração e uma desenvolvedora de software 5* especializadas que recebem dez mil reais por mês estão na mesma situação que uma peão de obras que recebe mil e duzentos reais por mês, pois todas criam valor com seu trabalho e são exploradas, portanto devem ter o mesmo posicionamento enquanto classe trabalhadora. Já uma prático (que estaciona navios e recebe até 300 mil por mês) está em situação similar a da motorista de ônibus que recebe dois mil reais por mês (pois ambas criam valor com o transporte). A dona de uma fábrica de mesas (que emprega três pessoas e tem renda extremamente variável em função de qualquer oscilação do mercado), está na mesma posição que a dona de uma siderúrgica que emprega centenas de pessoas e tem contratos em milhões de dólares (são as patroas, portanto exploradoras).

Da mesma maneira uma patroa que dedica atenção genuína às suas empregadas, que conversa com elas a respeito da família, paga salários acima da média, que atribui uma carga horária levando em consideração as demandas das empregadas e que porventura paga as despesas médicas de um parente de uma empregada que sofreu um acidente, esta patroa seria uma exploradora. Não importa como a empregadora se comporta ou qual a relação que tem com empregadas e clientes, por definição a empregadora seria uma exploradora 6*. Ou seja, o conceito de “exploradora” é impermeável às experiências, à considerações práticas. O que também acontece com o conceito do qual Marx deriva toda sua teoria, o conceito de valor.

FILOSOFIA MORAL

A teoria do valor de Marx (retirada, a propósito, dos economistas liberais da época) é a de que a criação do valor se dá através do trabalho. Tal percepção é contrária à visão de que cada pessoa atribui valor subjetivamente. A teoria de valor de Marx falha ao explicar a economia, entretanto, tal falha nunca nega sua teoria, pois a teoria de Marx NÃO é científica pelo critério de Popper. Para cada desvio entre aquilo que a economia DEVERIA SER (trabalho conferindo valor) e aquilo que é observado, Marx cria um conceito. Como se ao nomear tal desvio (entre o que é observado e o que deveria ser) ele se tornasse científico, portanto conectado ao “Real”: quando a diferença entre o que preço e o valor é a maior o que se daria é quem consome seria enganada (fetiche da mercadoria). É o caso de alguém que compra um tênis caro de marca. No caso de alguém que é pago em um valor muito abaixo da quantidade de trabalho, o que se dá é a exploração. É o caso de quando se paga por um artesanato muito menos do que teria sido acumulado em trabalho.

Ao nomear tais desvios Marx dá uma aparência de cientificismo, como se dar nome tornasse tais desvios vinculados ao Real. Entretanto, o que é feito é uma declaração de valor, é uma afirmação do que ele acha que DEVERIA ser. Neste sentido, entendo que Marx pode ser classificado como um filósofo moral (descreve dever ser). Mas um que é avesso a críticas. Caso alguém aponte a irrelevância do pensamento marxista recebe ofensas pessoais: é chamada de liberal ou de capitalista, ou, na melhor das hipóteses, recebem a crítica de que acredita em ideologias 7*. Aquilo que no debate filosófico em geral é considerado uma falácia (o ataque ad hominem, atacar a pessoa ao invés de criticar o argumento) é legitimado pela prática marxista.

Na classe marxista o único critério de demarcação é a posição em relação à produção de bens físicos e a distribuição da mais valia dela decorrente. Qualquer outro critério, tais como: religião, prazer ou desgosto em trabalhar, empatia pelas colegas ou subordinadas, realização profissional, senso de que o trabalho importa ao mundo são ignorados. Para o pensamento em geral ter um conceito preciso e de escopo reduzido é extremamente interessante, pois estas características permitem que o próprio conceito seja criticado. A particularidade da ciência se dá porque a crítica se decide através de experimentos. No caso dos conceitos marxistas isto não acontece, embora o escopo dos conceitos sejam bem definidos eles não são criticáveis à luz da experiência. É impossível encontrar um caso que não corresponda à teoria de Marx. Caso uma trabalhadora que produz bens físicos seja empregada por alguém em uma empresa, necessariamente ela está sendo explorada (pela ótica marxista). É impossível encontrar um caso em que isto não acontece, não porque todas as pessoas são exploradas (segundo a percepção de exploração de cada uma delas), mas porque a teoria marxista é construída de maneira a ser impossível negá-la.

O PROBLEMA DA ALOCAÇÃO DE RECURSOS NO COMUNISMO

No sistema capitalista as decisões seriam tomadas pelas dirigentes e donas das empresas. Mas como seria no “inexorável” 8* sistema comunista? Uma vez que as empresas não teriam donos e dirigentes, quem tomaria as decisões? As decisões seriam tomadas democraticamente. As trabalhadoras produtivas (aquelas que trabalham transformando produtos físicos) e as trabalhadoras não produtivas (aquelas pessoas que prestam serviços) se encontrariam e decidiriam democraticamente a respeito de como seria distribuída a mais valia. Agora vamos pensar um pouco a respeito dos aspectos práticos da distribuição da mais valia em um sistema comunista.

Suponhamos que o mundo inteiro seja comunista. Como as pessoas vão dividir a mais valia? Todas as pessoas juntas vão se encontrar em uma reunião por vídeo e decidir a respeito da distribuição da mais valia em votação? Ou será que a sociedade será dividida em unidades menores, como uma cidade? Reunir todas as pessoas de uma cidade como São Paulo para dividir a alocação da mais valia seria extremamente difícil. Então será que a divisão seria em unidades ainda menores, como em bairros? Quem ficasse na fronteira entre dois bairros só poderia consumir daquele bairro em que ela participou da votação para a alocação da mais valia? E o que aconteceria se em uma determinada fábrica as pessoas acreditarem que o “sistema capitalista” é melhor e decidirem que aquela fábrica terá uma dona? Aliás, por que no corrente “sistema capitalista” as pessoas não se reúnem e assumem as empreitadas desde o começo como cooperativas? Por que é tão raro dez pessoas se reunirem e dizerem “vamos abrir um restaurante, uma de nós cozinha, outra varre, outra serve as clientes, uma é responsável pelas compras…” e criarem um restaurante? Ao passo que restaurantes com dez pessoas, mesmo que criados por alguém que inicialmente tinha pouquíssimos recursos, é extremamente comum? Como uma sociedade comunista, se porventura alguma vier a existir, vai alocar seus recursos é um mistério ainda não resolvido. O que temos dados, entretanto, é de como os países em que ocorreram revoluções comunistas tomaram suas decisões práticas.

Nos países comunistas 9* o que se deu foi que, ante a incapacidade das pessoas se reunirem e decidirem democraticamente a alocação dos recursos, tal responsabilidade foi chamada por um ente centralizado (o Estado). Já a possibilidade de mudar de curso democraticamente, nos países comunistas, é impossibilitada pela restrição de que só pode se candidatar quem fizer parte do partido comunista. Curiosamente em cada país comunista só há um partido comunista, aquele que chega no poder proíbe todos os outros partidos (mesmo que comunistas de orientação diferente) de lançar candidatas.

POSSIBILIDADE DA TEORIA SER CRITICADA

O conceito marxista de “classe trabalhadora produtiva” é avesso à crítica e aperfeiçoamento, ao passo que o conceito de “classe socioeconômica” se presta ao aperfeiçoamento ou mesmo à sua recusa. O uso do critério de renda para as pesquisas eleitorais só é usado pois eleição após eleição percebemos que pessoas com rendas diferentes têm uma propensão a votar em candidatos diferentes. Caso em todas as eleições até hoje tivessem tido a distribuição dos votos uniforme entre as classes A, B e C, então tal distinção seria ignorada. Um conceito irrelevante simplesmente é abandonado.

Popper montou uma proposta que contempla a evolução do conhecimento através da ciência, de maneira em que aquilo que é mais importante para o conhecimento científico é a possibilidade de ser criticado. Entretanto, no contexto da ciência (conforme a proposta de Popper, a qual defendo) a exigência é muito rigorosa, é impossível botá-la em prática no conhecimento do dia a dia. Então como evoluir o conhecimento fora do escopo da ciência?

Defendo que em qualquer debate devemos ficar tão próximos quanto consigamos da descrição de Popper da ciência. Os conceitos devem ser claros e passíveis de serem criticados (ainda que seja impossível decidir por algum experimento). Ainda assim, entendo que, pela lógica da regressão ao infinito 11*, é impossível fundamentar tudo o que acreditamos. Assim chegamos nos temas em que a filosofia deve se manifestar. É impossível garantir que o sistema filosófico que aceitamos seja Verdadeiro. Sempre é possível aparecer um que seja mais adequado, justamente porque é impossível PROVAR as premissas, as bases mais fundamentais de qualquer teoria. Desta maneira, o que é possível é compará-las com outros sistemas de crenças e com a própria experiência.

Defendo manter o critério da criticabilidade ao apresentarmos os conceitos da maneira mais simples e mostrando as relações da maneira mais transparente possível (critério que a teoria marxista atende). Defendo que as teorias sejam criticáveis à luz da experiência. Este critério a filosofia de Marx não atende, mas também não atende nem a filosofia de Popper nem a de Mises nem qualquer outra teoria filosófica ou lógica. Na impossibilidade de recorrer à empiria entendo que devemos recorrer à comparação com demais sistemas de crenças que cada um tem. Eu, por exemplo, entendo que o valor de qualquer coisa é atribuído subjetivamente (isto é coerente com a filosofia cética que sigo). Neste sentido, a teoria de Mises (para quem cada pessoa atribui valor a cada ação) vai de acordo com meu sistema de crenças, ao passo que a teoria de Marx (para quem o valor é objetivo e corresponde à quantidade de trabalho investida para sua produção) é incompatível com meu sistema de crenças.

CONCLUSÃO

Em uma conversa com meu amigo, Ronam afirmei que recuso cada um dos conceitos de Marx. Ronan então me enviou um texto descrevendo o conceito de classe de Marx, para que eu, à luz de tal descrição, passasse a aceitar sua existência. Então mostrei que o conceito de classe trabalhadora produtiva é avesso ao aprimoramento (diferentemente com o que se dá com o conceito de classe econômica). Por ser impermeável à críticas através de dados empíricos, o conceito de classe não pode ser chamado de científico (de acordo com a perspectiva de Popper).

Ainda assim vale o questionamento, seria o sistema marxista interessante do ponto de vista filosófico? Para responder a tal pergunta devemos compará-lo com outros sistemas de crenças que cada um de nós tem. Sou um cético, como tal a percepção de que existe um “Valor” objetivo disparatado. Entendo que cada pessoa atribui valor de acordo com seus valores pessoais, de acordo com a necessidade do momento, de acordo com o hábito. Além disso, defendo que qualquer sistema de crenças, ainda que não científico, seja possível de ser criticado. Não é o caso do sistema marxista, em que as discordâncias são rechaçadas acusando a interlocutora que a faz (por exemplo, a chamando de capitalista).

Mostrei como alguns conceitos marxistas diferem de conceitos tais quais as pessoas o entendem no dia a dia, o mesmo pode ser feito em relação a qualquer conceito marxista - eles só fazem sentido em referência a eles mesmos. A única maneira que aceito a existência de conceitos marxistas, é dentro do sistema de crenças daqueles que o praticam. Aceito que “classe trabalhadora produtiva” existe, da mesma maneira que aceito que “Deus” existe para uma católica ou que “carma” existe para uma budista.

*1 - https://mronline.org/2018/03/28/marxs-concept-of-class/

2* Curiosamente percebo que a maior parte da população é positivista. Toda vez que alguém diz “está provado devido a tal evidência” esta pessoa se mostra positivista. Positivista é quem defende que evidências positivas (daí o nome, positivismo) PROVAM determinada hipótese. Tal postura é ingênua, como David Hume fala no célebre caso dos cisnes. Quantos cisnes brancos devem ser observados para que seja provada a hipótese de que todos os cisnes são brancos? Ou ainda, quantas previsões de movimento dos astros devem ser acertadas para que determinada teoria seja PROVADA? Astrônomos da idade média, que acreditavam que a Terra era o centro do universo, conseguiam prever o movimento dos astros (até mesmo de planetas e cometas). Quantas evidências destas PROVAM que aquele modelo, em que a terra é o centro do universo é o modelo correto? Como um adepto da escola cética de filosofia, entendo que é impossível PROVAR determinada teoria, pois não existe “A Realidade” cuja correspondência implicaria uma teoria provada.

3* Uma criança que ano após ano encontra presentes no Natal encontra evidências que provam que Papai Noel existe. Da mesma maneira que encontrar cisnes brancos prova que todos os cisnes são brancos ou que ver as estrelas girando a cada noite prova que a Terra é o centro do Universo.

4* Por isto é interessante, quando vemos os resultados de qualquer pesquisa, ler a respeito dela. Alguns dados que sempre faço questão de ver: tamanho da amostra e metodologia. Geralmente a margem de erro e quem financiou as pesquisas não aparecem nas notícias, mas seriam dados que eu observaria com interesse. Embora o processo diversas vezes seja falho, as pesquisas são confrontadas com outras pesquisas e a crítica é incentivada. De maneira que esperamos que no longo prazo as ideias mais falhas e mais tendenciosas passem a ser substituídas por ideias mais adequadas.

5* Classifiquei uma engenheira de software como alguém que produz valor, portanto alguém que seria uma “trabalhadora produtiva”. Entretanto, as marxistas classificam quem presta um serviço como uma trabalhadora não produtiva (cujo papel é dar condições para a trabalhadora produtiva). Não sei como uma marxista classificaria uma engenheira de software, uma vez que ela cria algo (portanto criaria valor pela perspectiva marxista), entretanto ela não constrói objetos físicos (para marx um objeto ser “de pegar” é importantíssimo).

6* No meu trabalho já atendi uma pessoa dona de uma floricultura, ela dizia que a floricultura não dava prejuízo, mas não compensava o trabalho, o ganho que ela teria apenas com o aluguel da loja seria similar, mas evitaria a dor de cabeça. O motivo dela manter é que tinha pena de demitir as funcionárias que trabalhavam há anos com ela. Da mesma maneira atendi uma senhora que tinha um lar para velhinhos que dava prejuízo, o único motivo para ela manter o lar é que tinha pena do que aconteceria aos velhinhos. A dona do lar de velhinhos não seria uma exploradora, não por estar no prejuízo ou por como trata as funcionárias ou as clientes (as velhinhas). Mas porque não há transformação física de bens, portanto não há criação da mais valia. Mas a dona da floricultura seria uma exploradora, uma vez que suas funcionárias pegam flores e as dispõem em arranjos (desta maneira criando valor com sua mão de obra).

7* A acusação de “Você acredita em uma ideologia” feita por uma marxista, pode ser traduzida por: “Você é ingênua em acreditar em um corpo de ideias criado em benefício de uma classe exploradora. Tal corpo de ideias corresponde ao “Real”. Implícita a esta afirmação (feita em tom de acusação) é de que as ideias de quem profere a ofensa correspondem à Realidade.

Gosto muito de debate teórico e, por refletir em relação à minha postura e aos meus equívocos passaados, tenho muito cuidado em não ofender minha interlocutora. Ainda assim, já fui xingado aos gritos de ser liberal ou de ser capitalista - é importante entender que tais acusações se fazem em tom de ataque pessoal no momento em que a pessoa desiste de um debate de ideias. Também é curioso notar que em outros ambientes fui acusado de petista (também em tom de ofensa) ou de esquerdopata. Aparentemente as pessoas têm muita dificuldade em sair de dicotomias, se não penso como elas, sou enquadrado na classe de seu inimigo. O que é extremamente difícil para mim, que não penso igual a nenhum grupo constituído (seja de comunistas, anarcocapitalistas, liberais, veganos, católicos…)

8* Marx acreditava que necessariamente a sociedade daria um passo seguinte e mais evoluído: viraria comunista.

9* Se os países que se autointitulam comunistas, como Cuba e China, são mesmo comunistas, é uma questão em disputa. Eu recuso qualquer conceito marxista. Portanto, conforme o meu sistema de crenças, nenhum país é (ou jamais será). Da mesma maneira que nenhum cavalo é ou jamais será, de acordo com meu sistema de crenças, um unicórnio. Importante notar que exatamente o mesmo se dá para o capitalismo. Entendo que nenhuma sociedade é ou jamais será capitalista, uma vez que ‘capitalismo’ (no conceito de Marx) é descrito através de diversos conceitos equivocados. Então, da mesma maneira que algumas pessoas dizem que vivemos em um sistema capitalista, acho legítimo dizerem (segundo o sistema de crenças delas) que existem países comunistas. É exatamente o mesmo que se dá para qualquer religião. Sou ateu, mas acho legítimo um católico dizer que Deus existe.

10* ensaios sobre o ceticismo:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7056223

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7062763

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7069375

11* É impossível fundamentar tudo o que fundamenta algum conhecimento, depois fundamentar o fundamento deste segundo conhecimento, depois fundamentar o fundamento deste terceiro conhecimento... até o infinito.