O preço do trabalho - Todo Incognoscível 40

NESTE ENSAIO

1 INFERNO BUROCRÁTICO

Vale a pena determinar preços para favorecer os pobres?

2 O PREÇO DO TRABALHO NO MEDIOCRISTÃO

No mediocristão o preço do trabalho corresponde a sua desutilidade.

3 FATORES QUE ALTERAM O PREÇO DO TRABALHO EM RELAÇÃO À SUA DESUTILIDADE:

3.1 A aleatoriedade; 3.2 As diferenças individuais; 3.3 As inovações; 3.4 O Estado;

3.5 Ganhos escaláveis; 3.6 Preconceito

4 GANHOS ESCALÁVEIS

Praticamente tudo o que consumimos é oriundo de trabalhos escaláveis.

5 CONTEXTUALIZANDO O ERRO DE ADAM SMITH

Em que contexto Adam Smith incorreu no erro de achar que valor é igual ao trabalho investido na produção do bem.

6 O PARADOXO DO TRABALHO

Quase tudo o que consumimos é fruto de trabalho escalável, quase todo trabalho que observamos é intensivo em mão de obra.

7 A ORIGEM DA MISÉRIA

DEBATE COM RONAN

Tenho um amigo, Ronan, com quem debato diariamente a respeito dos mais diversos temas. Temos interesses em comum, mas tais interesses são encarados através de uma perspectiva bem diferente por cada um de nós. Ultimamente os debates têm se dado a respeito de como o Estado deve se posicionar em relação a alguma questão, Ronan defendendo que determinado mercado deve ser regulado e eu sendo contrário a tal regulamentação. O último exemplo que ele deu foi o de determinada cidade em que, ao abrir o monopólio (determinado pelo Estado) os preços subiram.

Em favor do ponto de vista de Ronam temos a seguinte consideração: caso o preço de um produto (como a água) encareça, o encarecimento prejudicará os mais pobres. Por mais que uma pessoa rica consuma mais que uma pobre, o consumo compromete uma porcentagem menor da sua renda. Janaína ganha 10 mil por mês e paga 300 reais de água, logo 3% de sua renda é comprometida. Michelle, por sua vez, ganha mil reais por mês e sua conta de água é 50 reais, logo 5% do seu salário vai em água. Caso a água suba 10% então o impacto sobre a renda de Janaína passará a ser de 3.3%, ao passo que o impacto sobre a renda de Michelle será de 5.5% (aumento 40% maior para Michelle do que para Janaína). Assim, será que não seria benéfico o Estado determinar um preço baixo para a água? Desta maneira o pobre teria o mesmo acesso a este bem que um rico. É importante notar que o mesmo raciocínio que foi aplicado à água pode ser aplicado ao arroz. Seu aumento prejudica mais os mais pobres. Logo seria benéfico à sociedade como um todo que o Estado determinasse o seu preço. Oras, o aumento do preço de qualquer bem atinge mais os pobres do que os ricos, portanto, seguindo o mesmo raciocínio, todos os bens da economia deveriam ter seu preço determinado pelo Estado!

Apenas um argumento já é suficiente para recusarmos a adoção de tal medida: o Estado regular cada um dos bens seria um inferno burocrático, cada decisão que poderia ser simples deveria passar pelo aval de todo um caminho burocrático. Atualmente as decisões acerca da produção de determinado produto se dão pelas pessoas e elas a tomam se pautando pelo preço. Sem o recurso do preço tais decisões precisariam ser decididas pelo Estado 1*. Pior: todos os produtos fazem parte de uma cadeia de produção, cada decisão estatal teria que considerar os impactos sobre outras cadeias de produção. Para vender um bolo teríamos que consultar o burocrata para ver se o trigo usado faria falta na cadeia de produção de outro produto (como o macarrão). Além da morosidade, cada decisão tomada pelo pela burocracia é uma oportunidade de subjetivismo, de erro e de corrupção. Evitar o inferno burocrático já é motivo suficiente para buscar o mercado . Mas este ensaio é sobre outro tema: é sobre o preço do trabalho e o primeiro passo para entendê-lo é entender como se dão as trocas.

Imagine uma fazendeira que precise de uma camisa. Ela vai até a alfaiate e pede uma blusa. A alfaiate vai pedir dez quilos de milho e, caso a fazendeira tope, ambas saem ganhando. Ou seja, ambas saem mais ricas da troca - segundo a própria perspectiva. Uma pessoa de fora da relação comercial que não goste de milho (por isso atribua valor zero a ele) pode achar que a alfaiate saiu prejudicada desta troca. Entretanto, não existe uma medida objetiva de valor, portanto a opinião de quem está fora da transação comercial é incapaz de avaliar o quanto aquela transação vale (em outras palavras, uma pessoa de fora é incapaz de avaliar a internalidade da transação 2*). É possível que a fazendeira acabe percebendo que a camisa foi feita com um material que lhe dá alergia e que, portanto, a troca não a beneficiou. A fazendeira pode, ao chegar em casa, perceber que sua sogra acabou de chegar com muito milho de presente, de maneira que o milho da troca se tornou excessivo. Ou seja, a troca pode ser ruim para quem a efetuou - mas isto é uma exceção causada por erros de cálculos, informação incompleta ou mero azar. Uma troca é uma ação em que cada uma das pessoas opta livremente em participar por perceber que sai ganhando com ela. O segundo passo para entender o preço do trabalho é entender as trocas indiretas.

Pode acontecer de a alfaiate não precisar do milho da fazendeira, mas precisar de uma mesa de madeira. Assim a fazendeira pode oferecer a troca do milho pela mesa (com a marceneira) e, em seguida, oferecer a troca da mesa pela camisa. Quanto maior e mais diverso o mercado, mais ganhos potenciais para cada pessoa - pois meus desejos podem ser atendidos por produtos ofertados por pessoas diferentes e, da mesma maneira, há mais pessoas que podem desejar aquele produto que eu ofereço. Entretanto, quanto maior o mercado, mais difícil é a logística das trocas indiretas. Imagine se seis pessoas diferentes, cada uma com desejos e ofertas diferentes, quiserem efetuar as trocas??!

Todas as envolvidas ganham caso um mesmo produto possa ser aceito por todas as envolvidas. Quanto mais ele é aceito, mais o produto é demandado e mais ele é aceito (em um ciclo que se retroalimenta). Tal produto que passa a ser universalmente aceito é o dinheiro 3*. Este ambiente em que as pessoas trocam e em que existe uma mercadoria universalmente aceita é o mercado. O dinheiro facilita extremamente as trocas indiretas e faz com que a maioria das transações se dê em troca do dinheiro. Entretanto, ele não altera a característica fundamental do mercado: para eu conseguir um bem (por exemplo, uma camisa) devo oferecer algo que, aos olhos de quem vende, vale mais que a blusa (por exemplo, 80 reais). Da mesma maneira, a alfaiate, para conseguir meus 80 reais deve oferecer algo que (aos meus olhos) vale mais do que 80 reais. Cada pessoa sai melhor do que estava antes dela (caso contrário não trocaria). No jargão da teoria dos jogos, a troca é um jogo de soma positiva.

CORRELAÇÃO TRABALHO/PREÇO

Agora suponhamos que alguém invente um produto que muitas pessoas desejem, cujo material seja barato, fácil de ser feito e que tome pouco tempo para se produzir (nas palavras de Mises, possui baixa desutilidade do trabalho) 4*. Neste caso muita gente passará a fazer tal produto e ele passará a ser muito barato. De maneira que, mesmo que sua desutilidade seja baixa, algumas pessoas vão desistir de fazer o trabalho (pois pagam muito pouco por ele). Se, ao contrário, algum trabalho for extremamente desgastante e enjoativo (ou seja, possui alta desutilidade do trabalho) pouca gente irá querer desempenhá-lo. Entretanto, se aquele trabalho for valioso para algumas pessoas, tais pessoas estarão dispostas a oferecer um preço alto por eles. Assim o seu alto preço irá atrair algumas pessoas que, apesar da desutilidade do trabalho, acham que o valor em dinheiro (ou em outro bem) que estão recebendo é superior à sua desutilidade. De maneira que a oferta de tal trabalho (e do que ele produz) será aumentada. Desta maneira fica explicado porque há alguma correlação entre trabalho e preço, pelo mesmo mecanismo de oferta e demanda que explica qualquer outro preço da economia 5*. Mas esta é apenas metade da história. Ainda falta explicar por que a correlação entre a desutilidade do trabalho e o seu preço não é perfeita.

DESVIOS ENTRE DESUTILIDADE DO TRABALHO E O SEU PREÇO

ALEATORIEDADE

No mercado tomamos nossas decisões em um ambiente parcialmente conhecido (quanto mais informação menos riscos ao tomar as decisões) e por pessoas em alguma medida imperfeitas (a maioria das pessoas comete muitos erros em todas as esferas de sua vida). É possível uma pessoa se aperfeiçoar (de maneira a diminuir a chance de cometer erros), ela pode estudar muito, com especialistas, fazer estágios no ramo que pretende empreender. Após se aperfeiçoar muito a pessoa pode estudar muito o passo que irá tomar (por exemplo a criação de um negócio) e, ainda assim surgir algum imprevisto que faça ela perder todo seu dinheiro. Por mais que ela estude e se prepare para criar uma pequena empresa para suprir determinado insumo de uma fábrica, a fábrica pode - por um motivo completamente imprevisível - mudar sua planta para longe e inviabilizar todo o negócio que havia sido pensado. As condições aleatórias, da mesma maneira que podem atrapalhar, podem também ajudar. Minha vizinha estuda maquiagem apenas para prestar serviços de cosplay, mas acabou recebendo diversas propostas para maquiar noivas e, assim, ela passou a prestar um serviço que nem imaginava que iria prestar. A aleatoriedade pode fazer com que o preço do trabalho seja alterado tanto para preços maiores do que sua desutilidade, quanto para preços menores.

DIVERSIDADE DE AMBIÇÕES, CAPACIDADES, DESEJOS VALORES…

As pessoas são em alguma medida semelhantes e em alguma medida são diferentes. Mas semelhantes ou diferentes em quê? Em relação ao mercado esta semelhança ou diferença se expressa naquilo que desejamos e no que estamos dispostos de dar em troca pelo que desejamos. Na medida em que uma pessoa oferece um trabalho que é desejado e que só pode ser oferecido por quem tem características muito específicas é possível cobrar por ele um alto preço. É o caso, por exemplo, de um cirurgião cardíaco. As cirurgias de coração são desejadas (mais que isto, são necessárias), mas poucas pessoas podem prestar este serviço. Caso o mercado seja livre, no longo prazo, os altos pagamentos são incentivo para que pessoas passem a enfrentar a desutilidade de estudar muitos anos e se direcionem para esta ocupação, assim o preço acabe se reduzindo para se equiparar à desutilidade que ele acarreta. Entretanto, é importante notar que a cirurgia de coração ainda é um trabalho relativamente convencional, no sentido de que seus rendimentos são uma função linear em relação à quantidade de trabalho prestado.

TRABALHO NO MEDIOCRISTÃO 6*

Quanto mais uma cirurgiã trabalha, mais ela recebe. Se fizer uma cirurgia ganhará X reais, caso faça duas cirurgias ganhará aproximadamente duas vezes o que cobrou pela primeira cirurgia. A cirurgiã, assim, ganha da mesma maneira que uma cozinheira: ambas ganham proporcionalmente ao tanto que trabalham. Não é um ganho perfeitamente linear, um profissional experiente em geral ganha mais por trabalho do que um profissional inexperiente. Uma cirurgiã recém formada provavelmente ganha menos por cirurgia do que um cirurgiã com 20 anos de experiência. Da mesma maneira, uma cozinheira em seu primeiro trabalho provavelmente ganhará menos do que uma cozinheira experiente. Entretanto, nestes casos a pessoa ganha mais ou menos proporcionalmente ao tanto que trabalha (ganho linear). Para este tipo de trabalho os incentivos do mercado funcionam para alinhar a desutilidade do trabalho à sua remuneração 7*. Caso diferente é aquele enfrentado por quem cria um produto novo.

INOVAÇÃO

A rentabilidade de produtos inovadores é extremamente variável. Caso a inovação seja desprezada pelos possíveis consumidores, então sua rentabilidade será negativa (quem empreende perderá dinheiro). Caso a inovação seja muito desejada, provavelmente o empreendimento proporcionará um rendimento muito acima da desutilidade do trabalho no médio prazo. Tal rendimento desproporcional é, ao mesmo tempo, um prêmio que alguém recebe por ter se arriscado, e um incentivo para outra pessoa se lançar no mesmo empreendimento e - com isto - trazer o preço do trabalho ao que é proporcional à sua desutilidade. Desta maneira, as inovações são mais um motivo para que o preço do trabalho, no curto prazo, se desvie da sua desutilidade. Existem ainda situações em que o preço do trabalho não se aproxima de sua desutilidade por que os mecanismos de oferta e demanda se aplicam parcialmente.

2. ESTADO

Há diversos casos em que o Estado cria situações em que o mercado é tolhido, nestes casos o mercado atua apenas parcialmente e, por isto, o preço do trabalho se desvia de sua desutilidade. É o caso, por exemplo, de servidores públicos. A desutilidade do trabalho não corresponde ao seu preço: uma vez que não há lei que obrigue alguém a permanecer no trabalho, o preço do trabalho não pode ser inferior à sua desutilidade, caso em que as pessoas se demitiriam (ou seja, neste sentido o mercado funciona, as pessoas têm a opção de se demitir). Entretanto, o preço do trabalho pode ser superior à desutilidade. No mercado, um preço superior à desutilidade incentivaria outras pessoas a prestar o mesmo serviço (até que o seu preço baixasse até corresponder à sua desutilidade), mas o serviço do Estado é um monopólio (por lei apenas ele pode prestar). Este é o motivo pelo qual o preço do serviço prestado pelo Estado (por exemplo, o preço do policiamento) ser em regra, maior do que seria no mercado 8*.

(Uma vez fiz um cursinho presencial para o Banco Central. A formação dos candidatos era impressionante, havia pessoas formadas nas melhores faculdades, algumas com mestrado e doutorado. O que mais me impressionou foi que algumas pessoas trabalharam em trabalhos extremamente qualificados. Uma delas era um engenheiro que criava peças para satélites! O incentivo (tanto financeiro como de outros benefícios que, caso fossem convertidos em dinheiro teriam um preço altíssimo) está em abandonar um trabalho qualificado no mercado para assumir qualquer trabalho no Estado. Os exemplos são incontáveis e estapafúrdios: repare quanto ganha uma pessoa que leva um documento da justiça para um cidadão (um oficial de justiça). É claro que ela tem o risco de ser mal recebida, mas tal risco (que faz parte da desutilidade do trabalho) é muito mais bem pago do que seria no mercado 9*. O Estado, assim, ao determinar preços cria desvios em que o preço do trabalho é provavelmente maior do que sua desutilidade (me repetindo: caso a desutilidade seja maior que o seu preço a pessoa se demite). Digo ‘provavelmente’ e não ‘necessariamente’ pois pode acontecer casos de pessoas receberem abaixo do que é a desutilidade, mas permanecerem no trabalho por um senso moral ético. Por exemplo, professores que têm como um valor ensinar gratuitamente crianças podem não se demitir ainda que recebam propostas muito superiores de escolas privadas. )

Um caso extremo é em que o Estado obriga pessoas a servirem as forças armadas. Neste caso o mercado é completamente anulado, pois a pessoa não pode rejeitar a convocação para servir e na medida em que outra pessoa não pode suprir aquela convocação (não há concorrência). Neste caso o preço do trabalho é inferior à sua desutilidade (caso o preço fosse superior à desutilidade não seria necessário o uso da força para a pessoa prestar o serviço militar).

Além da determinação por lei, pura e simples, o Estado pode ocasionar situações em que há um grande desvio entre o preço pago pelo trabalho e a sua desutilidade. Advogados recebem em função daquilo que produzem, assim seria de se esperar que o preço do seu trabalho, no longo prazo, fosse semelhante à sua desutilidade. Até mesmo porque o ambiente do direito, por sua intensa ligação com o Estado, dificulta grandes inovações 10*.

Entretanto, a curva de preços cobrados no mercado de trabalho de direito é exponencial (o que é estranho em se considerando que o tipo de trabalho que se presta é linear). Muitos advogados recém formados não conseguem trabalho ou conseguem a preços muito baixos e uns poucos advogados que trabalham em grandes escritórios recebem salários extremamente altos - inclusive é comum, dentro de um destes grandes escritórios, contratar advogados recém formados (em geral parentes de alguém muito influente). O que explica que a remuneração desta classe seja exponencial é que, apesar de o fruto do seu trabalho ser linear (um mesmo advogado trabalhando 10 horas vai render metade do que renderia se trabalhasse 20 horas), eles recebem em função de sua influência.

Existem diversos mecanismos que fazem com que a remuneração não seja determinada pelo mercado: é proibido a um escritório expor as fragilidades de outro, é proibido fazer propaganda, é proibido exibir taxas de sucesso. Gostaria de deixar claro que não sei os motivos para tal regulamentação, assim não me posiciono sendo a favor ou contra. Mas é fácil perceber que tais determinações causam um desvio entre a desutilidade do trabalho do advogado e o seu preço - fazendo com que algumas advogadas ganhem muito menos do que a sua desutilidade (trabalho e estudo, dinheiro em cursos e material) e outras ganhem muito mais do que a sua desutilidade. Assim, a concentração do poder é outro motivo para o desvio entre a desutilidade do trabalho e sua remuneração. Entretanto, o motivo mais interessante para o desvio entre a desutilidade do trabalho e seu preço é relacionado apenas às características das pessoas!

DIVERSIDADE DAS PESSOAS

Como comentei no começo do ensaio, as pessoas são em alguma medida diferentes: sou bom em fazer animações, em escrever, em dirigir. Entretanto sou um fotógrafo e um cinegrafista ruim. Se eu precisar fazer um trabalho de vídeo certamente contratarei um diretor de fotografia. Eu poderia estudar e me tornar um bom diretor de fotografia, mas eu não teria prazer nisto (a desutilidade do trabalho seria alta). Assim, é bom poder contratar alguém que seja diferente de mim. Da mesma maneira algumas pessoas optam por me contratar para fazer uma animação, pois sou melhor que elas nisto. Uma vez que somos diferentes, temos desejos diferentes e diferentes habilidades e recursos, algo que tem uma forte desutilidade do trabalho para mim tem baixa desutilidade para outra pessoa.

Além disso, mesmo que eu estudasse muito, alguns trabalhos talvez eu nunca conseguisse realizar. Mesmo que eu me dedicasse muito hoje (aos quarenta anos de idade) dificilmente eu conseguiria me tornar um engenheiro de chip de computador. Da mesma maneira há pessoas que nunca conseguiriam se tornar psicólogas, seja por serem sensíveis demais, seja por não conseguirem conter suas emoções no atendimento. Este ponto, a diferença entre cada uma das pessoas, no contexto moderno ganha cada vez mais relevância pois as tecnologias potencializam as diferenças entre as pessoas.

Quanto mais avançada a tecnologia menos pessoas a dominam. Algumas pessoas são analfabetas, algumas pessoas são analfabetas digitais (não conseguem nem acessar mídias sociais ou entrar em um site), outras pessoas nem sequer sabem conversar com máquinas (programar)... Esta característica já tem extremas consequências na sociedade (ponto que irei abordar ainda neste ensaio). Mas há outra situação em que a tecnologia acentua a diferença entre as pessoas, quando ela intensifica as qualidades de cada uma: no caso da produção escalável.

TRABALHO NO EXTREMISTÃO

Existe muita música boa por aí, mais do que sou capaz de conhecer. Eu levo algum tempo para desenvolver o gosto por uma música, se é uma música semelhante às que eu escuto, posso gostar ouvindo poucas vezes. Em geral, entretanto, não passo meu tempo aperfeiçoando meu gosto musical, mas apenas ouvindo as músicas que já conheço. Quando me deparo com a voz de uma cantora que já gosto, dou uma chance a ela. Ao passo que as raras vezes em que escuto uma música muito diferente, normalmente dedico poucos minutos para decidir se gosto dela ou não (ou seja, me esforço mais para entender a música de uma referência que já conheço). Além disso tenho pouquíssimas amigas com quem ouço música e que me apresentam músicas novas. Assim, costumo ouvir as mesmas artistas. E a música tem uma propriedade incrível: uma pessoa desfrutar dela não impede que outra a desfrute (não é um bem escasso). Assim, milhares de pessoas podem ouvir as mesmas músicas, as mesmas artistas. Ou seja, o alcance das musicistas é praticamente toda a população do planeta.

Embora o alcance das artistas seja praticamente infinito, o desejo das consumidoras é finito. Mesmo que alguém passe o dia inteiro ouvindo músicas, ela ouvirá menos músicas do que são produzidas ao redor do planeta. Além disso, a chance de ouvir alguma não é igual para todas as músicas. Como é o caso do que acontece comigo, a maioria das pessoas conhecem as músicas a partir dos mesmos caminhos (mesmas amigas, mesmas referências…). E as músicas mais ouvidas tendem a ser justamente aquelas mais indicadas (por quem já as ouve). Assim pouquíssimas artistas alcançam o sucesso e o seu sucesso tende a se retroalimentar (eu ouvirei com atenção o disco de uma artista cujas músicas anteriores adorei). E, em se considerando que o que uma artista recebe é proporcional ao seu sucesso, o preço do trabalho das artistas não é linear em relação ao seu trabalho. Anitta (cantora brasileira de maior sucesso há alguns anos) recebe por show hoje muito mais do que recebia no começo de carreira. Em contraste, uma secretária, na medida em que vai se tornando experiente, talvez ganhe um pequeno aumento (quem sabe 20%). Anitta, por hora de trabalho (digamos por show), ganha provavelmente milhares de vezes mais do que ganhava em seus primeiros shows.

O mesmo que se dá para a música se dá para qualquer coisa que seja escalável. A maioria das youtubers terão ganho irrisório no streaming, mas algumas poucas atingirão milhares de pessoas e terão rendimento espetacular, poucas linguagens de programação atingirão o sucesso, mas algumas serão usadas por milhões de programadoras. Isto acontece pois a popularidade é um dos fatores que mais importam na escolha do que consumimos. Uma linguagem de programação tem mais chances de ser usada quanto mais pessoas a usam, uma moeda tem mais chance de ser usada quanto mais pessoas a usarem, uma mídia social tem mais chances de ser usada quanto mais pessoas a usam, a marca de um chocolate tem mais chances de ser consumida quanto mais pessoas a consumirem…

SORTE DESEMPENHA UM PAPEL MAIOR NO EXTREMISTÃO

Quanto mais bens escaláveis, mais cada pessoa que consome tem acesso a produtos. Mas esta fartura faz com que seja impossível analisar as características de cada produto. Assim a disponibilidade se torna um fator crucial na tomada da decisão do que consumir. O que as amigas ouvem e o que toca nos lugares mais frequentados são fatores decisivos na construção do hábito musical. Da mesma maneira ao escolher a primeira linguagem de programação a aprender, ninguém faz um estudo profundo a respeito de todas as centenas de linguagens de programação que existem. Claro que as características da linguagem influenciam na escolha, mas fatores acerca da disponibilidade são mais importantes, qual as linguagens tem mais suporte e apoio da comunidade, quais linguagens são mais buscadas por empregadores. Tanto a sorte como o esforço desempenham um papel no sucesso de qualquer decisão que venhamos a tomar. Mas, num ambiente escalável (extremistão) a sorte desempenha um papel ainda maior.

Portanto a escalabilidade é um motivo para que haja um desvio entre o preço do trabalho e a sua desutilidade (esforço e estudo). Uma musicista pode aperfeiçoar muito suas técnicas e se esforçar no sentido de conhecer o público e de inserir e, ainda assim, nunca alcançar o sucesso. Da mesma maneira uma programadora pode criar uma linguagem de programação excelente, que nunca venha a ser usada por ninguém. Ou seja, muito esforço pode trazer uma remuneração ínfima e um esforço relativamente baixo pode trazer uma remuneração extraordinária (imagine o quanto os artistas da música Gangnam Style 11* ganharam). Em contraste, um trabalho no mediocristão, como de um pedreiro, nunca vai pagar um milhão de reais por hora, mas também raramente vai pagar muito abaixo do preço de mercado.

NO MEDIOCRISTÃO O PREÇO DO TRABALHO CORRESPONDE À SUA DESUTILIDADE

Ou seja, no caso do mediocristão uma curva normal descreve bem trabalhos em que a remuneração tem uma correspondência linear com o trabalho (o trabalho de um um pedreiro ou de uma cirurgiã). No mediocristão a oferta e demanda funcionam (no longo prazo) para alinhar o preço do trabalho à sua desutilidade (pois a produtividade é linear). Já no caso do extremistão uma curva exponencial descreve o rendimento daqueles trabalhos que são escaláveis (o trabalho de uma artista ou de uma youtuber) . Para estes trabalhos a correlação entre a desutilidade do trabalho e o seu preço é menor (muita gente trabalha muito e não recebe nada por isto, muita gente recebe extremamente bem pelo seu trabalho 12*). Isto acontece pois no extremistão a sorte (nos casos de trabalhos escaláveis) ou influência e leis protecionistas (como o caso de escritórios de advocacia) contrabalanceiam a desutilidade do trabalho (o estudo, o tempo despendido, o desconforto, o risco físico e mental). Também é interessante notar como no passado, em regra os trabalhos não eram escaláveis, portanto eram do tipo mediocristão (o tipo em que o preço do trabalho corresponde à sua desutilidade).

CONTEXTUALIZANDO O ERRO DE ADAM SMITH

No século dezoito, época em que Adam Smith escreveu ‘A riqueza das nações’ aquilo que as pessoas consumiam era fruto do trabalho produzido no mediocristão. Não haviam discos, então para ouvir uma música alguém deveria tocá-la, para comer uma fruta alguém teria que colhê-la, para usar tijolos alguém teria que fazê-los. São os casos em que o mercado é bom (no longo prazo) para alinhar o preço pago por um trabalho à sua desutilidade. É claro que o mercado, assim como hoje, tinha suas limitações: a guilda de sapateiros proibia que qualquer pessoa de fora da guilda fizesse sapatos, uma cidade alemã proibia a importação de cerveja (de maneira que toda a cerveja era produzida localmente)... Mesmo os preços não sendo livremente pautados pelo mercado, havia uma correlação entre a desutilidade do trabalho e o seu preço. E, considerando que à época considerava-se preço igual a valor, e o preço era relativamente proporcional ao trabalho, a confusão de Smith (de que o que confere valor é o trabalho) é compreensível 13*.

Tal concepção se tornou obsoleta em 1871 com a observação de Carl Menger de que o valor depende das necessidades de cada pessoa (ou seja, é subjetivo). Portanto o valor não corresponde ao preço (pois o preço é o mesmo para diversas pessoas, ao passo que o valor é subjetivo). O equívoco de Adam Smith é compreensível à época em que dominavam trabalhos do tipo mediocristão. Atualmente, em que tantos produtos que nos chegam é fruto do trabalho do extremistão (e que, portanto, não há correlação entre preço do produto e desutilidade do trabalho) o equívoco é descabido.

Em uma festa hoje a música é tocada por uma artista cujas músicas atendem a milhares de outras festas, o copo é feito em escala industrial, a cevada da cerveja é colhida praticamente sem mão de obra alguma, os copos são feitos em escala industrial, a todo momento surgem inovações que tornam o processo de produção de cada um dos produtos que usamos ainda mais automatizados (portanto mais escaláveis). Como vimos acima, a inovação e a escala fazem com que os ganhos do trabalho se desviem da desutilidade do trabalho: cada vez mais aquilo que consumimos é fruto de trabalhos em que a correlação com a desutilidade do trabalho é baixa. O que nos leva a um paradoxo.

O PARADOXO DO TRABALHO

O paradoxo do trabalho é que praticamente tudo aquilo que consumimos é fruto de trabalho escalável (portanto usou muito pouco trabalho por unidade produzida). É o caso das músicas, dos produtos alimentícios industrializados, dos objetos produzidos por grandes fábricas. Entretanto, o trabalho que observamos é quase todo não escalável. Uma motorista de ônibus, uma caixa de supermercado, um médico, uma vendedora em uma loja, uma advogada, uma cabeleireira, uma massagista são trabalhos (hoje, no fim de 2021) intensivos em mão de obra. Quem por ventura ler este ensaio em alguns anos talvez perceba que estes exemplos que dei já não são mais exemplos de trabalho intensivo em mão de obra (talvez já tenham sido automatizados). Além da escalabilidade (trabalhos no extremistão), existe outro fator que desalinha a desutilidade do trabalho ao seu preço: o preconceito.

PRECONCEITO

Há situações estranhas em que sem uma explicação relacionada à produtividade, se paga abaixo do preço de sua desutilidade sem uma explicação ligada à produtividade. É o caso em que existe preconceito, sendo patente o preconceito de gênero, de etnia, de orientação religiosa e de orientação política. Nestes casos o preço do trabalho de uma pessoa alvo do preconceito (por exemplo, uma pessoa trans) pode ficar abaixo da desutilidade do trabalho. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que se dedicou anos a uma determinada carreira e, quando da avaliação ela é reprovada por alguma característica relacionada a quem ela é, não ao que ela fez. Conheço o caso de uma matemática talentosa que perdeu bolsa de estudos porque, segundo o professor responsável pela decisão, ela poderia vir a engravidar e a abandonar os estudos. Recentemente ouvi o caso de uma neurocirurgiã que se deparou com um médico que explicitamente orientou profissionais a boicotar candidatas à residência mulheres. Ou seja, é possível que uma candidata passe pela desutilidade de estudar anos para uma determinada profissão (portanto assumiu a desutilidade do trabalho), mas ser paga abaixo do que aquela desutilidade justificaria. Outra situação em que o trabalho é pago a um valor diferente do que é causado pela desutilidade do trabalho é quando há imposições estatais.

RESTRIÇÕES AO MERCADO IMPOSTAS PELO ESTADO

É fundamental notar que em toda relação de troca existe desutilidade para cada parte envolvida. No caso de uma troca por trabalho a desutilidade é deixar reservar o tempo e a energia para determinada tarefa, são os riscos para a saúde que a tarefa implica e todo o tipo de adversidade relacionada àquele trabalho (tédio, nojo….). Para quem contrata a desutilidade é o que seria possível fazer com aquele dinheiro, com espaço físico que deve ser destinado para contemplar aquela pessoa, o custo em capacitar para a mão de obra… A trabalhadora só aceitará o trabalho se a seus olhos aquilo que ela recebe (o preço do trabalho) for superior à desutilidade que o trabalho acarreta. Da mesma maneira, a empregadora só contrata se ela perceber que o que ela recebe (o trabalho) rende mais do que a desutilidade de contratá-la (o preço do trabalho). Neste contexto, o que uma imposição do Estado (por exemplo, uma lei que imponha uma multa à demissões) faz à relação?

Para a empregada isto vai aumentar a propensão a ela aceitar um emprego. Tal multa lhe dá uma segurança de que ela permanecerá no trabalho. Já para empregadora isto faz parte da desutilidade da troca (em termos práticos é como se o preço do trabalho tivesse aumentado). Desta maneira a empregadora deixará de contratar ou reduzirá o preço pago pelo trabalho das pessoas que oferecem relativamente pouca utilidade (em relação ao preço do trabalho) 14*. Aquelas pessoas que (aos olhos da empregadora) oferecem uma utilidade extremamente alta talvez possam ser contratadas sem impacto em seu salário - dependendo da saúde financeira da empregadora, claro. Toda lei destinada à proteção de quem trabalha aumenta o desejo das pessoas por trabalho, mas diminui a inclinação das empregadoras em contratar. Ou seja, leis trabalhistas tendem a reduzir o preço do trabalho e, caso o preço não possa ser reduzido (por exemplo, pela imposição de pagamento mínimo para uma categoria trabalhista) as leis trabalhistas levam à empregadora meramente não contratar (aumentando o desemprego). O que me leva ao assunto que me levou a escrever este ensaio, a miséria.

A ORIGEM DA MISÉRIA

Tenho uma ex-namorada que trabalhava no ministério da agricultura. Uma de suas colegas tem uma fazenda em que de vez em quando alguém capinava apenas por um prato de comida. É importante notar que apenas com o salário de servidora ela já tem condições de pagar uma diária decente, mas além disso ela tem diversas propriedades, ainda assim ela frequentemente se valia do trabalho de um dia de roçado apenas por um prato de comida. De acordo com a perspectiva de Mises a troca foi livre e de comum acordo, assim podemos entender que ambos saíram ganhando. É uma lógica sólida, o trabalhador de fato prefere trabalhar por um prato de comida a passar fome. De acordo com o arcabouço teórico de Mises, impor um preço mínimo do trabalho por dia (digamos 100 reais) levaria a diversos trabalhadores a passar fome (caso as empregadoras não tivessem condições de pagar mais do que um prato de comida). Entretanto, este certamente não era o caso. São exemplos como estes que chocam aquelas que são contrárias ao mercado. Como defender o livre acordo de troca entre duas pessoas no caso em que uma é extremamente rica e a outra está na miséria? Para Ronan, este é um dos exemplos que provam que o mercado leva algumas pessoas à miséria. Aceito o questionamento e me faço a pergunta, o mercado leva algumas pessoas à miséria? Mas antes de responder a esta pergunta é necessário nos perguntarmos qual o peso que o Estado tem na existência da miséria.

ESTADO

O Estado brasileiro fazia (e ainda faz) uma intensa transferência de renda dos pobres para os ricos. Isto é tema para outro ensaio, mas aqui basta dizer que os pobres pagam altos impostos em seu consumo, impostos estes que podem não podem ser burlados. Ao passo que quanto mais complicada é a legislação mais brechas ela abre para que evitar impostos (legalmente ou ilegalmente). E quanto mais rica a pessoa maior o incentivo e os recursos que ela tem para desfrutar. Ademais, o desequilíbrio fiscal enriquece os ricos, pois eles emprestam ao Estado. De maneira inversa, o desequilíbrio empobrece os pobres, que precisam pagar a dívida que o Estado assumiu (seja através de impostos sobre o consumo, seja através da desvalorização da sua moeda). Assim, entendo que no caso específico de uma trabalhadora saudável na década de 1990 é impossível atribuir a causa da miséria ao mercado. Mas isto não responde a pergunta mais ampla, o mercado traz miséria a algumas pessoas?

O mercado 15* é apenas o ambiente em que diversas pessoas fazem troca15*. Cada pessoa só realiza a troca caso perceba que se beneficiou dela. Caso uma pessoa seja proibida de realizar trocas (por exemplo, a troca de seu trabalho por um salário ou a troca de dinheiro por comida) rapidamente ela teria que produzir tudo aquilo que consome e, caso falhe na produção, ela seria jogada na mais absoluta miséria. Assim a pergunta pertinente não é se mercado produz miséria (salvo algum erro na decisão, o mercado apenas produz valor para as pessoas). A pergunta pertinente é outra: o mercado é suficiente para retirar todas as pessoas da miséria?

CONCLUSÃO

O MERCADO É SUFICIENTE PARA RETIRAR TODAS AS PESSOAS DA MISÉRIA?

Como mostrei neste ensaio, pessoas saudáveis e capazes podem alinhar a desutilidade do seu trabalho ao rendimento ao aceitar trabalhos intensivos de mão de obra. Então uma pessoa pode ser uma faxineira e estudar à noite e, após anos em uma rotina exaustiva (extrema desutilidade do trabalho) ela pode ascender encontrando um outro trabalho mais bem qualificado. Entretanto este não é o caso para quem não é capaz. Um exemplo extremo é o de uma pessoa tetraplégica, sem família e sem dinheiro. Ela pode incorrer no esforço que for e, ainda assim, ela não conseguirá sair da miséria. Exemplos semelhantes são de idosos analfabetos, alguém com uma deficiência cognitiva grave… Ou seja, certamente o mercado não é suficiente para retirar todas as pessoas da miséria. E qual seria a “nota de corte” abaixo da qual uma pessoa não conseguirá se valer do mercado para suprir suas necessidades básicas?

É uma pergunta de difícil resposta. Mas mostrei neste ensaio que em um mercado dinâmico é difícil alinhar a desutilidade ao rendimento do trabalho. Uma pessoa pode passar anos estudando para uma profissão e quando ela se formar a profissão passar a ser obsoleta. Da mesma maneira, cada vez mais aquilo que consumimos é fruto de trabalho escalável, o trabalho intensivo em mão de obra (mediocristão) cada vez mais é substituído. E, como mostrei acima, no trabalho do tipo escalável (extremistão) a sorte desempenha um papel mais intenso, sendo que muitas pessoas tem um rendimento extremamente alto (como a Anitta) e muita gente se dedica muito e tem rendimentos insignificantes ou mesmo negativos (eu mesmo me encontro nesta situação, sendo que o dinheiro que investi para trabalhos em vídeo é muito superior ao que recebi em pagamentos). O que me leva a ao questionamento, será que a desutilidade do trabalho continuará sendo suficiente para que as pessoas consigam sair da miséria?

É impossível responder a esta pergunta, pode ser que as próprias tecnologias sejam a maneira de incluir aquelas pessoas que hoje estão fora do mercado de trabalho. Um paraplégico talvez consiga se comunicar e se locomover com maestria através de aparelhos tecnológicos, atualmente já existem plataformas que permitem que uma pessoa crie programas sem conhecer linguagens de programação, e mesmo tecnologias que permitem vencer algumas dificuldades acarretadas pelo analfabetismo. Há poucos anos uma pessoa analfabeta não conseguiria mandar um recado para alguém, atualmente ela pode através do whatsapp. Diversos livros estão disponíveis em suas versões narradas e é possível pegar um texto e pedir para um programa de computador o narrar. Ou seja, pode ser que no futuro as pessoas que hoje estão fora do mercado de trabalho sejam incluídas de maneira que a desutilidade do trabalho (o esforço) permaneça como um fator relevante para sair da miséria. Entretanto, ainda há outro fator relevante, os ganhos de escala.

Há poucos séculos tudo o que consumíamos vinha de trabalho intensivo de mão de obra. Para usar um prego eu deveria ir a um ferreiro e comprar um prego que ele mesmo havia feito. Como não havia padrão para eu usar aquele prego eu deveria comprar aquilo que eu usaria com o prego no mesmo ferreiro, ou então pedir a algum ferreiro algo feito sob medida para o meu prego. Por exemplo, as balas das armas de fogo eram feitas em tamanhos diversos para que a pessoa escolhesse a que caberia em sua arma. Àquela época a correlação entre desutilidade do trabalho e seu preço era intensa, pois os trabalhos eram intensivos em mão de obra. Atualmente os trabalhos são cada vez mais do tipo escaláveis (trabalhos em que a mão de obra é insignificante). Ou seja, cada vez mais é difícil recorrer à desutilidade do trabalho em busca do rendimento. Uma vez que, como mostrado acima, o trabalho escalável premia intensamente aquelas pessoas que lograrem sucesso, mas o sucesso, apesar de também depender da desutilidade (esforço e tudo aquilo que abdicamos em busca do nosso objetivo) depende em grande medida da sorte. Ou seja, caso o trabalho intensivo em mão de obra venha a desaparecer o mercado pode se tornar um meio ineficiente de retirar (mesmo pessoas muito qualificadas) da miséria.

É difícil mensurar o quanto da miséria atual se deve à dificuldade das pessoas em usar o mercado para sair dela. Entretanto, dada a intensa transferência de renda dos pobres para os ricos, o meu palpite é que a grande maior parte da miséria que se dá no Brasil hoje se dá pela transferência de renda dos pobres para os ricos. Ou seja, minha conclusão é de que o mercado não é suficiente para retirar as pessoas da miséria, entretanto a miséria é acentuada intensamente pelas intervenções do Estado na economia.

OBSERVAÇÕES

1* - As ditaduras comunistas tentaram fazer isto a grande custo humano. A China, entretanto, deu alguns passos na direção oposta ao adotar o “comunismo de mercado”. Deg-Xiaoping foi bem em direção a uma sociedade aberta. Primeiro ao incorporar gradualmente o mercado primeiro em algumas cidades (zonas especiais), que, não à toa foram as que trouxeram o crescimento da China, segundo permitindo que as pessoas da china pudessem viajar para fora, terceiro proibindo a reeleição - uma medida democrática. O presidente atual, Xi-Ginping tem ido no sentido de uma sociedade mais fechada. Trouxe de volta a reeleição, está dificultando a saída das pessoas da China, proibiu o lucro em empresas de educação… Ou seja, está voltando ao caminho daquilo que Popper chamou de “sociedade fechada”.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fome_de_1958-1961_na_China - a grande fome causada pela burocratização.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Deng_Xiaoping - abertura ao mercado que trouxe crescimento à China.

2* - Ensaio em que defino o conceito de internalidade:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7342160

3* - Ensaios sobre trocas comerciais:

Explicação cética para o comércio:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7261315

4* As pessoas são em alguma medida semelhantes, por isto é razoável pensar que alguns trabalhos são, para a maioria das pessoas, mais desagradáveis que outros. Por exemplo, a maioria das pessoas acho inconveniente trabalhar no esgoto ou em algum lugar com alto risco à vida. Já outros trabalhos possuem baixa desutilidade (digamos vender coco em um quiosque à beira da praia). É claro que em alguma medida as pessoas são diferentes, ponto que será examinado com atenção mais adiante neste mesmo ensaio.

5* https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7282827

6* Mediocristão e extremistão são conceitos criados por Nassim N. Taleb. Mediocristão são as relações que podem ser expressas pela curva normal (curva de sino). A altura das pessoas pode ser expressa pela curva normal, sendo que muitas pessoas e encontram na média das alturas, poucas pessoas se encontram muito distantes da média, e nenhuma pessoa se encontra extremamente distante da média. Digamos que a média da altura seja 1.70m. Poucas pessoas ter 1.20m ou 2.20m. Nenhuma pessoa terá altura -0,20m ou 3.60m.

Já o extremistão são as relações que podem ser descritas através da curva exponencial. Por exemplo, a riqueza das pessoas. Digamos que o patrimônio médio das pessoas seja 170 mil reais. Ainda assim podemos achar pessoas que possuem um patrimônio 10 vezes, vinte vezes maior do que o patrimônio médio. O extremistão é melhor descrito por uma curva exponencial.

7* O trabalho em que a relação linear entre o preço recebido e a quantidade de trabalho desempenhado é o tipo de trabalho era o mais comum quando do Adam Smith e David Ricardo e isto explica porque eles achavam que o trabalho conferia valor às coisas. Entretanto, trabalhos em que se espera uma correlação entre seu preço e sua desutilidade são um caso específico e outras formas de trabalho estão ganhando importância rapidamente. Ambos os pontos são tratados em mais profundidade ainda neste ensaio.

8* Não quero dizer, com isto, que sou a favor da privatização do policiamento. Entendo que existam outras considerações além da relação preço/qualidade que devem ser levadas em consideração quando da escolha de manter um serviço prestado pelo Estado. Estou dizendo apenas que o serviço de policiamento prestado pelo Estado é mais caro (em relação à desutilidade de quem presta o serviço) do que se fosse prestado pela iniciativa privada.

9* O salário médio de um oficial de justiça é de 9.400,00, enquanto o salário médio na iniciativa privada é 1.400,00. Também é interessante notar que o salário médio certamente é muito inferior a este, uma vez que pequenos empreendimentos usualmente não são formalizados - portanto não entram na conta do salário médio. Ainda assim sou a favor de concursos públicos, mas por um motivo que passa longe do mercado. Sou a favor pois, caso o trabalho fosse desempenhado por indicação tal trabalho, na prática, seria entregue às políticas, alguém uma policial, caso tivesse seu trabalho por indicação, nunca prenderia uma amiga da pessoa que a indicou.)

Salário do oficial de justiça.

https://www.glassdoor.com.br/Sal%C3%A1rios/oficial-de-justi%C3%A7a-sal%C3%A1rio-SRCH_KO0,18.htm#:~:text=Justi%C3%A7a%20em%20Brasil%3F-,O%20sal%C3%A1rio%20m%C3%A9dio%20nacional%20de%20um%20Oficial%20De%20Justi%C3%A7a%20%C3%A9,9.414%20por%20m%C3%AAs%20em%20Brasil.

Salário médio na iniciativa privada.

https://folhadirigida.com.br/concursos/noticias/especial/setor-publico-x-setor-privado-salarios

10* É interessante notar que em diversos ambientes o Estado regula para que os mecanismos de mercado não se apliquem. Por exemplo, é proibido a escritórios de advocacia fazerem propaganda - o que certamente prejudica o escritório que está começando. Outro exemplo é a proibição a instituições financeiras que falem mal uma da outra, o que claramente prejudica a comparação entre elas (seria muito interessante que uma instituição mostrasse as fragilidades e os riscos que a outra incorre). Um terceiro exemplo é o da taxa de sucesso, é proibido divulgar a taxa de sucesso de médicos e advogados. Tais leis atrapalham as pessoas a terem dados a partir do qual tomem decisões informadas e, por isto, atrapalhem o mercado (lembrando que o mercado são meramente pessoas tomando decisões).

11* Interessante notar que alguns músicos sem muita habilidade ganham muito, muito dinheiro, ao passo que outros extremamente capazes ganham muito pouco ou às vezes nada pelo seu trabalho. A primeira ponderação que eu gostaria de fazer (e que sinto na pele, uma vez que eu mesmo sou um artista) é que praticar a arte (treinar tocar violão, por exemplo), não necessariamente é desutilidade do trabalho. Algo que fazemos meramente por prazer é a utilidade, é o que fazemos para curtir, para descansar, para nos desafiar.... Assim, entendo que grande parte da desutilidade do trabalho do artista é estudar como se inserir no mercado - mesmo que às vezes às custas de fazer um trabalho que carregue desutilidade.

12* A respeito do papel de circunstâncias aleatórias no sucesso é um exemplo claro o caso do quadro Monalisa, o mais caro do mundo - sua fama só atingiu tamanha magnitude devido ao destaque na mídia ao ter sido roubada. Da mesma maneira as pinturas impressionistas: os quadros mais caros são de uma exposição que ganhou destaque devido a disputas midiáticas - caso explicado em detalhes no livro Hit Makers, de Derek Thompson.

13* Uma exceção que já era escalável à época em que Adam Smith escreveu é o de administração. Assim, apenas uma pessoa pode administrar um Estado inteiro (um rei ou um ditador, por exemplo) e um CEO de uma empresa pode administrar uma empresa extremamente grande (o Jeff Bezos atualmente, Bernardo di Giovanni d'Adoardo Portinari no século XIII).

https://en.wikipedia.org/wiki/Medici_Bank

14* Leis que protegem as trabalhadoras sofrem mais pressão para serem implementadas em contexto de crise e alto desemprego. Tais leis protegem as pessoas empregadas, mas diminuem a chance de outras pessoas serem empregadas. Ou seja, diminuem as oportunidades de trabalho e aumentam a desigualdade entre as pessoas. Em ensaio próximo apresentarei uma solução extremamente simples que contempla e amplia os direitos de todas as pessoas. Talvez o título seja algo como ‘O Estado sem discriminação’.

15* Ensaio sobre comércio

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7261315