Respostas Fáceis a Perguntas Difíceis - A Heurística da Disponibilidade - O Curso do Rio - Todo Incognoscível 43

Neste ensaio:

Heurística da disponibilidade (pessoas respondendo aquilo a que estão habituadas a responder em detrimento de responder às questões levantadas em um debate).

Crítica à percepção de que argumentos racionais são suficientes para alterar o sistema de crenças de alguém.

Alterar o sistema de crenças é alterar o sistema de pensamento habitual (tornar um sistema de crenças mais disponível que os alternativos).

Após as eleições de 2014 (em que a Dilma se reelegeu) começaram a ocorrer investigações ligadas à lava jato. À época (e ainda hoje) eu achava que tais investigações foram conduzidas de maneira irregular. Eu apontava, por exemplo, que o juiz da operação se comportava como um procurador (como um advogado de acusação), conduta que é diametralmente oposta à função de juiz. Se alguém acompanha os ensaios em que falo de economia sabe o quanto defendo responsabilidade fiscal (pois entendo que a falta de responsabilidade fiscal é um mecanismo de transferência de renda para os mais ricos). Entretanto entendo que o desvio de função de Moro é ainda mais grave que a falta de responsabilidade fiscal, pois desqualifica as instituições democráticas de direito e, em última instância, desqualifica a própria existência do Estado. Se o próprio juiz pode publicamente agir de maneira contrária às suas funções em prol de sua moral particular, o que justifica a existência do Estado? Eu apontava esta questão à minha colega e sua resposta era algo como “Mas o PT….” . Falas como, “mas o PT também é o partido mais corrupto da história”, ou “mas o PT vai é a favor da gayzificação”. O ponto aqui não é se Moro cometeu os desvios ou se o PT é corrupto. O ponto é: minha interlocutora era incapaz sequer de considerar a questão que eu levantava. Ela se desviava para responder uma questão a qual ela estava mais acostumada. Quando eu apresentava a questão “As instituições democráticas estão sendo ameaçadas” ela respondia “o PT é uma ameaça”.

Há poucos meses tive um debate com o Ramon em que eu disse que recuso todos os conceitos marxistas. No debate ele ficou especialmente indignado quando eu dizia que recuso o conceito de classe trabalhadora. Aos seus olhos, a classe trabalhadora existe (ou seja, ele apela para ‘O’ Real) e a minha recusa do Real implicaria na impossibilidade de qualquer debate. Entretanto sou um cético, entendo que existem diversos sistemas de conhecimento cada qual com suas capacidades e com suas limitações. Desta maneira, enxergar a existência da classe trabalhadora é uma opção, não uma necessidade (a não ser dentro do sistema de crenças marxistas, nele a existência da “classe trabalhadora” é uma necessidade). Para me convencer da existência da classe trabalhadora, Ramon me enviou um texto descrevendo sua existência.

Ler algo que é diametralmente oposto àquilo que defendemos as vezes exige um esforço extra, mas li e o respondi através de um ensaio. Confesso que em minha escrita acabei extrapolando o conteúdo do texto, o que é temerário, pois creio que acabei respondendo a coisas que não estavam no texto (e desta maneira corro o risco de ter extrapolado a teoria marxista). De qualquer modo mostrei o motivo pelo qual o conceito de classe (assim como todos os conceitos marxistas) são equivocados. Após o que enviei para algumas pessoas que, imaginei, poderiam avaliar se as questões que apresentei eram pertinentes. Uma vez que sei que o conteúdo é sensível e pode despertar paixões, enviei apenas para amigos que colocariam a amizade à frente da política. Enviei para 1. um membro do PCO (Partido da Causa Operária); 2. um professor universitário marxista; 3. um ex membro do PCO (que militou por décadas); 4. uma poetisa; 5. uma ex membro de centro acadêmico (que, quando na universidade, era marxista) e, claro; 6. Ramon, meu grande parceiro de discussões.

A resposta que obtive destas pessoas me causou muita estranheza. Imaginei que haveria fortes respostas em contrário. Uma das pessoas (o membro do PCO) não me respondeu - o que me deu a dúvida se ele passou a me achar um vilão, alguém do time do mal ou se ele apenas não leu o ensaio. O ex-membro do PCO basicamente concordou com o ensaio (o que me deu segurança de que eu não disse nenhuma grande besteira, afinal ele foi comunista militante por muitos anos e é uma pessoa extremamente inteligente). A poetisa concordou com as linhas gerais do meu pensamento, mas não se juntou a mim em minha recusa aos conceitos marxistas. A ex-membro do CA (uma pessoa de inteligência assustadora) ficou intrigada com meu ponto de vista, mas também não se juntou em minha recusa aos conceitos marxistas. Ramon levantou diversas questões menores (coisas como, você respondeu a algo que não está no texto). Ele não se juntou a mim em minha recusa aos conceitos marxistas, mas passou a respeitar minha posição. Em nossas conversas eu dizer “recuso cada conceito marxista” é quase um bordão (pois ele frequentemente traz tal perspectiva). A reação que me chamou mais a atenção foi a do professor universitário. Ele reconheceu que diversas passagens eram pertinentes e ficou um pouco intrigado com outras. Após alguns dias ele me mandou um texto de outro marxista para que eu lesse. O texto não contrariava o meu ensaio, apenas dava uma descrição detalhada e mais atual do nascimento de uma classe marxista e apresentava alguns outros conceitos marxistas. Tais respostas me intrigaram muitíssimo!

As pessoas ao mesmo tempo aceitaram meus argumentos, não houve nenhuma discordância ou resposta aos temas centrais. Ainda assim ninguém mudou seu ponto de vista! Tais respostas, entretanto, me encorajaram a mandar o texto para mais pessoas. Especialmente porque ninguém expressou raiva contra mim. Em um ambiente público (instagram) um amigo se manifestou em favor de uma política econômica que eu acho equivocada.

Fernando, sugeria que a inflação era culpa do governo (no que concordo), mas seu posicionamento sugeria que a culpa do governo está na inação (no que discordo). Ele não disse o que o Estado deveria fazer para controlar a inflação, mas ele é seguidor do Paulo Gala. Suponho ele defenderia controle do preço de insumos (como o petróleo) ou fomento de alguma empresa cuja produção, de algum modo, reduziria os preços dos produtos consumidos pelos brasileiros. Em nossa conversa logo soltei o bordão “recuso qualquer conceito marxista”. Na conversa comentei que fiquei intrigado com a repercussão do meu texto em relação ao marxismo (em que a resposta que recebi foi em maior parte da aceitação dos argumentos, sem nenhuma discordância séria em relação a eles, mas na qual ninguém mudou de posição). Fernando em pouco tempo leu o texto que escrevi e deu a seguinte resposta, “ao invés de concordar ou discordar vou lhe enviar um capítulo de um livro”. Fernando também comentou que o meu entendimento a respeito da classe trabalhadora era equivocado e que o próprio texto no qual o qual respondi (que havia sido enviado por Ramon) era equivocado em relação à definição ao que são classes. Também desqualificou integrantes do PCO. A resposta de Fernando rendeu um parágrafo num ensaio 1*. Como é possível que tantas pessoas que dedicaram sua vida inteira ao marxismo (integrantes do PCO e o autor do texto que respondi) não tenham entendido conceitos básicos do marxismo?!

Em ensaios anteriores de epistemologia já tive respostas semelhantes. Ao enviar um texto de epistemologia a uma pessoa que domina o assunto e que, por isto, sua opinião me importa muito, tive a seguinte resposta, “Leia tal livro na seção tal”. Li o livro inteiro e foi de grande contribuição para entender a maneira que vejo o mundo, de maneira que foi um comentário que me acrescentou. Entretanto tal resposta é preguiçosa, é semelhante a dizer “Mas o PT…”. É se esquivar do esforço de entender o que o autor (eu) escreveu. Sem entrar no mérito de em que estou errado é mais difícil eu aprimorar minha teoria. Também se torna impossível eu defender minha ideia e mostrar em que aspecto o interlocutor é falho. Ou seja, tal resposta mostra uma impermeabilidade ao debate - o que é frustrante. Há quem ainda acredita que somos animais racionais receptivos a argumentos e a novas evidências. Minha experiência neste texto ilustra o contrário, as pessoas (mesmo as muito inteligentes) tem seu sistema de crenças como um hábito.

O sistema de crenças é como um curso de um rio, apontar a direção certa (apresentar argumentos racionais) é insuficiente para alterar a crença das pessoas 2*. Para alterar o curso de um rio é necessário cavar um caminho diferente e quando este caminho estiver à mesma profundidade do curso original a água vai passar pelos dois caminhos igualmente (mesmo que sejam referentes sistemas de crenças incompatíveis um com o outro). Para que a água passe exclusivamente por um caminho, é necessário cavar mais profundamente do que o curso original. Daniel Kahneman chama a questão de responder a problemas relacionados (ao invés de responder ao problema apresentado) de heurística da disponibilidade. O que percebo é que para mudar as crenças de uma pessoa apresentar argumentos e fatos mais pertinentes é insuficiente, mudar o sistema de crenças é tornar o novo sistema mais disponível que o anterior.

1* “SINTOMAS DO MISTICISMO

O primeiro sintoma da teoria confusa que leva ao misticismo é a divergência de interpretações a respeito da mesma obra. Caso uma teoria seja antiga e diversas pessoas assumam interpretações diferentes e mutuamente incompatíveis, isto é sinal de que a teoria é confusa e difícil de ser criticada. Se tais teorias incompatíveis são criticáveis, por que elas persistem existindo? Outro sintoma do misticismo é a necessidade da genealogia do conceito. A necessidade de chamar um autor para atribuir o sentido preciso do conceito é sintoma de que tal conceito não é claro. Um terceiro sintoma do misticismo é a impossibilidade de definir o conceito. Caso seja possível explicar em poucas páginas um conceito a partir de definições aceitas pelo público em geral, isto é sintoma de que o conceito não é místico. Por outro lado, caso seja impossível definir um conceito em menos de mil páginas, isto é sintoma de misticismo”

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7381017

2* Já tratei este tema, mas usando uma metáfora diferente, ao invés de falar de um curso de um rio falei de um sistema de irrigação.

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7207189

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 12/11/2021
Código do texto: T7383875
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