Nome tem poder - Todo Incognoscível 47

NESTE ENSAIO

1 - NOMES PERMITEM RESGATAR PROPRIEDADES (ORGANIZAM PENSAMENTO)

2 - NOMES POSSIBILITAM MAIORES CADEIAS DE PENSAMENTO

3 - NOMES POSSIBILITAM CONHECIMENTO EM ALTO NÍVEL (MESMO PARA QUEM IGNORA FUNDAMENTAÇÃO EM BAIXO NÍVEL)

4 - NOMES SÃO SUBJETIVOS, NÃO ARBITRÁRIOS

5 - CRIAMOS NOSSO UNIVERSO PARTICULAR A PARTIR DOS NOMES

6 - É POSSÍVEL TRANSFORMAR QUALQUER NOME EM UM CONCEITO

7 - PARADOXO DO ESPELHO

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PREÂMBULO

Há alguns anos fui para uma reserva ambiental em que há uma piscina feita de pedras, a Água Mineral. A piscina é alimentada por uma nascente na qual, na minha infância, as pessoas vinham buscar água. Na época acreditávamos que a água era muito mais pura do que a que chegava em casa pelo encanamento. Deixei de ir regularmente à Água Mineral ainda na infância porque lá fica muito cheio e - a bem da verdade, Brasília tem muitos lugares bonitos para caminhar ou nadar. Mas fui lá dia de semana (em que a piscina estava bem vazia) foi uma experiência surpreendente. Logo ao chegar a Lu, minha namorada da época, me falou, “Que lindo, um filhotinho de capivara!”. Amo encontrar animais selvagens, mas capivaras (assim como mico estrela) são particularmente comuns aqui na capital. Olhando atentamente reparei, era uma cutia, creio que só vi duas soltas na minha vida inteira! Depois desta recepção maravilhosa nadamos e deitamos (ela no sol, eu na sombra). Chegando perto da hora do almoço fui ao banheiro me trocar para ir embora. No caminho vi pássaros exóticos grandes, coloridos. Não apenas uma espécie, três! Pássaros bem diferentes daqueles a que estou acostumado, cujos nomes desconheço.

Caminho prestando atenção aos sons e aos animais. Brasília (especialmente o Plano Piloto) é como um grande parque. Vejo asa-branca, rolinha, joão de barro (o mais comum), bem-te-vi, curicaca, alma-de-gato, diversos psitacídeos (periquitos, maritacas, maracanãs, araras), tucano (raro ver), canário, falcão (acho muito especial achar um), muitos carcarás, urubus e pica-paus, até vi um pica-pau de cabeça amarela! Curiosamente o tizius sumiram e pardais estão raros. O ponto é, eu presto atenção nos animais. Mas sou incapaz de lembrar dos diversos pássaros que vi na Água Mineral! Lembro que eram grandes e eram coloridos, lembro que eram muito diferentes de tudo que conheço, lembro que me impressionaram muito. Infelizmente qualquer outro detalhe escapou da minha memória, mas tenho certeza que se conhecesse o nome das espécies minha lembrança teria sido acurada!

NOMES PERMITEM RESGATAR PROPRIEDADES

Voltando da academia no sábado passado ouvi um barulho feio. Fui olhar, havia uma família de pica-paus. Ouvi novamente um som semelhante e achei outra família de pica-paus. Percebi que o som feio são os filhotes pedindo comida aos pais. Lembro exatamente onde estavam os picapaus (curiosamente no chão) ou no tronco de uma árvore, mas uma na base (quase no chão). Também lembro perfeitamente quando vi um picapau de cabeça amarela, consigo lembrar exatamente dele. Atribuo isto ao nome ‘pica-pau’. Repare como o nome é poderoso: consigo pegar a coleção de características (tamanho, capacidade de voar, habilidade de pousar em troncos perpendiculares ao chão, peito branco, cabeça vermelha, costas pretas, a maneira que as penas se dispõe sobre seu corpo, bate com bico em madeira dura para procurar comida ou para fazer o ninho, antes raros, agora comuns em Brasília…) e encapsula-las em um nome, ‘pica-pau’ e resgatar estas propriedades sempre que necessário! Caso me faltasse o recurso do nome precisaria decorar cada uma destas características e relacioná-las aos seres que as possuem. É uma tarefa muito mais trabalhosa, tanto que não consegui fazer isto com as aves que vi na Água Mineral. E mais incrível, a lista de propriedades do nome é mutável: quando me deparei com pica-paus à altura dos meus pés fazendo um canto estridente e dando de comer para seus filhotes, incorporei tais características ao nome ‘pica-pau’. Agora ‘barulho feio para pedir comida aos pais’ é uma das propriedades de ‘pica-pau’, bem como ‘ter pouco medo de humanos’ (passei a uns 3 metros deles e eles não fugiram) e ‘ficar a altura do chão’ 1*.

NOME POSSIBILITA MAIORES CADEIAS DE PENSAMENTO

Caso me faltasse o nome eu precisaria resgatar as propriedades da coisa sempre que eu precisasse acioná-la. Como eu iria criar um pensamento simples como “vou de ônibus até o cinema, aproveito para comprar um livro na livraria que tem ao lado do cinema, depois volto de Uber” caso me faltassem os conceitos (encapsulados 2* em nomes)? Para um passeio simples como este preciso de um planejamento. Preciso de dinheiro em papel para pagar a passagem do ônibus, preciso de cartão para pagar o cinema e o livro, preciso calcular o tempo da trajetória (para não perder o filme), preciso ir de celular carregado (para chamar o Uber no final). Sem a ajuda dos nomes eu poderia conseguir fazer este passeio, mas o planejamento demandaria um esforço enorme. Sem o conceito “ônibus” eu precisaria decorar onde ir para pegar o ônibus e precisaria decorar que preciso levar o dinheiro. Alguém poderia objetar, “Ah! Não vejo problema, a ação usando os nomes é a mesma ação sem usá-los! Por que seria mais difícil a vida sem os nomes?!” Esta objeção não leva em conta o esforço que é achar qual a propriedade devo usar na minha ação. Quando eu recorro ao nome eu já tenho acesso a todas as suas propriedades, fica muito mais fácil resgatá-lo.

FÓRMULAS

Quando eu era criança desprezava o “decoreba” e minha memória era (e ainda é) péssima. Não sei se eu desprezava aquilo que eu tinha de mais fraco justamente por eu ser fraco naquilo, não sei se por eu desprezar a memória ela ficou tão ruim. Provavelmente ambos os motivos concorreram para a minha péssima memória (a minha formação tem grandes falhas e esta é uma das piores). O caso é que quando os professores de matemática explicavam alguma coisa eu costumava entender, assim que eu entendia eu parava de prestar atenção (justo quando era desenvolvida a fórmula). Nas provas eu costumava conseguir fazer os exercícios fáceis e alguns dos médios, mas raramente conseguia fazer algum dos difíceis e sempre era o primeiro a sair da prova de matemática (em menos da metade do tempo que o segundo mais rápido levava para concluir a prova). Uma vez, entretanto, fui um dos últimos a sair. O Rodrigo, o melhor aluno da turma, me perguntou se eu consegui fazer determinado exercício e ficou impressionado porque consegui. Daí ele pediu para olhar a prova e disse,

“Ué, você colou?” (pois ele não viu a fórmula),

“Não, eu não colo.”

“Onde estão os cálculos?”

Daí mostrei a prova inteirinha cheia de contas (em todos os cantinhos da prova com continhas escritas em números pequenininhos). Cheia de contas e nenhuma fórmula. Ele gargalhou até chorar. O ponto é que levei meu tempo habitual para fazer todos os outros exercícios, apenas um exercício me tomou horas. Caso eu tivesse decorado a fórmula, levaria minutos. Imagina se você não tivesse decorado “multiplicação”, mas a tenha entendido. A cada vez que fosse necessário uma multiplicação você somaria a quantidade de vezes necessária. Até mesmo a chance de erro aumenta muito (cada soma é uma oportunidade de errar as contas). Ir ao cinema sem ter recurso do conceito “ônibus” demandaria eu entender o processo de chegar até o cinema indo a uma parada, pagando, sentando, esperando, mas sem recorrer ao nome. É como alocar os recursos para o dinheiro do lanche das crianças sem usar multiplicação (usando apenas a soma). Se eu sei que este mês tem 20 dias letivos e que a criança precisa de 5 reais em cada um destes dias eu reservo 20 x 5 , ou seja, reservo 100 reais. Se eu não tenho o recurso da multiplicação eu somo 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 = 100 reais.

"CHUNKING" - EMPACOTAMENTO DENTRO DE UM NOME

Da mesma maneira que ‘multiplicação’ empacota o processo de soma diversas vezes, um nome empacota uma coleção de propriedades. A multiplicação facilita contas mais avançadas, os nomes facilitam pensamentos mais avançados. Em um livro com muitos personagens, decorar o nome de cada um deles permite entender a trama muito rapidamente (eu que tenho dificuldade com os nomes recordo os personagens a partir do contexto). Decorar o nome dos políticos permite fazer uma leitura política mais rapidamente: se um político de determinada linha defende algo oposto ao que sempre defendeu, podemos assumir que há algum motivo para tal, mas só sabemos que ele defende usualmente outra linha porque decoramos seu nome e atribuímos o seu posicionamento político como uma das características daquele nome. Decorar o nome das pessoas facilita lembrar delas como um todo (em todas as propriedades que você percebeu em cada uma delas). Decorar as fórmulas matemáticas permite fazer contas com mais segurança e praticidade, decorar o nome dos pássaros me permite lembrar de suas características rapidamente, decorar nomes de autores facilita comunicar o que eles passaram 3*...

NOMES TORNAM FERRAMENTAS ACESSÍVEIS MESMO A QUEM AS DESCONHECE

Recomendei fortemente os livros do Nassim N. Taleb para várias pessoas. Imaginei que as pessoas com boa formação matemática seriam as maiores beneficiadas com sua leitura (pois Taleb traz a matemática para conceitos que podem ser usados no dia a dia). Curiosamente os físicos a quem recomendei acharam Taleb trivial, oras, faz sentido, as ferramentas matemáticas que ele usa são simples e para os físicos são conceitos fáceis, que estão “na ponta da língua”. Mas uma crítica de um deles me chamou a atenção, segundo o físico a principal contribuição de Taleb é a de dar nomes a conceitos triviais e repeti-los à exaustão, mera auto promoção. Nossa, concordo demais com tal crítica! Apenas discordo que isto seja “mera” autopromoção, entendo que é uma grande contribuição! Alguns conceitos de Taleb lembro rotineiramente, é o caso de ‘frágil’, ‘resiliente’ e ‘antifrágil’, ‘convexo ’ ou o conceito de ‘cisne negro’. Antes de ter lido Taleb eu já era familiarizado com alguns conceitos que ele trouxe. Eu já conhecia Karl Popper e Daniel Kahneman (os dois autores que mais influenciaram os livros do Taleb), também já estava atento ao poder do acúmulo exponencial (meu pai era obcecado pelo tema). Entretanto, quando Taleb organiza tais ideias no conceito de ‘antifragilidade’ o conceito se tornou facilmente resgatável e aplicável para mim, muito mais do que os conceitos internos ao conceito de ‘antifragilidade’ (a saber, os conceitos de ‘convexidade’ e ‘exponencial’). E algo ainda mais incrível ocorre: é possível que uma pessoa entenda o conceito de ‘antifrágil’ sem entender o conceito de ‘exponencial’ ou de ‘convexidade’. Isto se dá especialmente devido a Taleb ser repetitivo e apresentar os conceitos em diversos contextos diferentes, é possível entender os conceitos mesmo sem a explicação matemática. Tanto é que o usual é explicá-los sem recorrer à matemática. O entendimento pode se dar em níveis diferentes.

NOMES: COMPREENSÃO EM ALTO NÍVEL

Estou lendo (em um ritmo incrivelmente lento) o livro ‘Gödel, Escher, Bach: um entrelaçamento de Gênios Brilhantes’. Douglas Hofstadter trata cada um dos temas ao menos três vezes: primeiro em uma "historinha" em que ilustra através de uma ficção o tema que ele vai tratar no capítulo; em segundo trata os conceitos levantados em uma explicação minuciosa e com lógica precisa usando ou matemática ou programação; em terceiro ele interpreta aquilo que ele acabou de apresentar tecnicamente 4*. Acontece que em geral entendo apenas linhas gerais da apresentação matemática, mas costumo entender a conclusão que Hofstadter apresenta. Tanto é assim que consigo perceber ao longo do texto o aparecimento daquilo que ele explicou. Ou seja, mesmo quando não entendo a explicação matemática (a explicação de baixo nível) consigo encontrar exemplos daquilo que ele explicou (a explicação de alto nível). Da mesma maneira o nome ‘antifrágil’ ajuda pessoas a terem acesso às ferramentas matemáticas, mesmo para quem não consiga dominar as ferramentas matemáticas. Ou seja, o nome dá acesso às ferramentas do pensamento, mesmo para quem seria incapaz de deduzi-las.

A questão da compreensão em alto nível fica clara quando pensamos em computação. Eu consigo navegar tranquilamente no programa de edição de textos em que escrevo. Ou seja, tenho uma razoável compreensão em alto nível. Mas ignoro completamente a explicação em baixo nível (não sei como o computador converte um toque meu no teclado em uma letra). Da mesma maneira em termos físicos, tenho uma excelente compreensão em alto nível da minha xícara, tenho noção do seu peso, volume, temperatura, função… mas em baixo nível ignoro como as moléculas se organizam ou de sua composição.

ORGANIZAÇÃO DE HORIZONTES

Ouvi de pessoas que respeito muito que conceitos (e generalizo esta discussão para nomes) são úteis na medida em que restringem os nossos horizontes. Faz sentido, quando estou em uma festa o meu olhar capta infinitas informações e, e nós somos seres finitos, é impossível processar a infinitude (pois demandaria tempo infinito 5*). Assim o conceito ‘pessoa’ restringe, discrimina, especifica a atenção. Da mesma maneira, ‘Francisco Acioli’ restringe, discrimina, específica ainda mais: só tem um na festa. Defendo que a percepção e o entendimento só são possíveis a partir de um recorte específico às nossas capacidades limitadas. Entretanto, dizer que um nome (ou um conceito) restringe o nosso universo é uma afirmação que deve ser colocada com muito cuidado pois sugere que quanto maior o nosso vocabulário, menor o nosso universo. Quando o que ocorre é justamente o contrário, quanto maior o nosso vocabulário (tanto de palavras, como de conceitos ou de sentimentos) mais temos capacidade de acessar dados e de interpretá-los.

Ao invés de ver nomes como elementos que restringem aquilo que experimentamos, sugiro vê-los como elementos para a organizar aquilo que experimentamos, para a organização do nosso universo particular. Desta maneira nosso conhecimento pode ser comparado a nossa casa. Eu posso ter um cortador de unhas, mas se eu não souber achá-la ela se torna inútil e minhas unhas ficarão grandes. A partir do momento em que minhas unhas me incomodarem muito vou revirar a casa em busca do cortador (o que demanda muito esforço). Entretanto, caso minha casa esteja organizada, antes de qualquer incômodo e com pouquíssimo esforço vou até onde está o cortador e o utilizo. Da mesma maneira, caso eu nunca tivesse lido os livros do Taleb, poderia usar meus conhecimentos de matemática para fazer uma alocação de investimentos que seja antifrágil. Mas também seria possível que eu fizesse uma alocação super arriscada e que fosse “enganado pela aleatoriedade 6*” e me sentisse um super investidor (mesmo que eu estivesse apenas tendo sorte). Os conceitos criados por Taleb facilitam o acesso às ferramentas matemáticas e diz quando usá-las. Sem os conceitos eu poderia aplicar diversos conceitos até achar aqueles que eu considerasse adequados e a chance de usar uma ferramenta conceitual estapafúrdia seria muito maior.

NOMES SÃO SUBJETIVOS MAS NÃO ARBITRÁRIOS

Os nomes incorporam uma lista de propriedades de acordo com as experiências de cada pessoa e, assim, podem mudar (tanto entre pessoas como entre conjunto de pessoas ao longo do tempo). Por exemplo, o nome ‘pica-pau’ para mim era de uma ave extremamente rara e tímida. Atualmente é de uma ave comum (embora eu ainda fique deslumbrado ao ver alguma) e corajosa. As características do nome mudaram a partir das minhas experiências. Mas o conceito ‘pica-pau’ não é um conceito arbitrário, eu não disponho aleatoriamente as propriedades de pica-pau: não coloco em suas propriedades ‘pesa uma tonelada’ ou ‘é feito de aço’ em pica-pau. O motivo para não fazê-lo não é uma amarra metafísica entre o nome ‘pica-pau’ e aquilo a que ele se refere. Não o faço pois, para mim, com o intuito de melhor organizar minha visão de mundo, colocar propriedades que são discrepantes com outros conjuntos de crenças que possuo é despropositado 7*. Creio que é importante notar que embora os conceitos sejam subjetivos eles também são intersubjetivos, ou seja, os conceitos compartilham propriedades entre pessoas diferentes. Assim o conceito de geometria é bem semelhante entre eu e os meus colegas de trabalho, por exemplo, concordamos que a soma dos ângulos de triângulos é 180 graus. Tal afirmação é intersubjetiva (as pessoas no meu ambiente de trabalho concordam com ela). Entretanto ela não é uma afirmação objetiva, tanto é que um matemático pode fazer a observação de que existem geometrias não euclidianas em que a soma dos triângulos é superior a 180 graus 8*.

CRIANDO NOSSO UNIVERSO PARTICULAR

Os nomes são uma lista de propriedades guardadas em um nome. Uma vez que as propriedades dos nomes são definidos em termos de outros nomes (do próprio vocabulário da pessoa) e por experiências próprias, então os nomes são subjetivos. Em outras palavras, os conceitos não possuem amarras metafísicas com aquilo a que se referem, mas, ao contrário, definem (criam) aquilo a que se referem. Por conta da ausência de amarras metafísicas, é possível criar ou alterar conceitos de acordo com nossos interesses. Como os nomes definem (criam) aquilo a que se referem, é possível criar os nomes que usamos, ou seja, necessariamente criamos nosso próprio universo. É possível copiar aspectos de conceitos de outras pessoas (aprender conceitos). Entretanto é impossível delegar a tarefa da criação do universo em que se vive a outra pessoa (justamente porque nossos conceitos são definidos a partir de nosso próprio vocabulário e de nossa própria experiência).

SUBJETIVO x ARBITRÁRIO

Devido a falta de amarras metafísicas a definição de qualquer nome pode ser feita em uma enorme margem. Por exemplo, posso incluir no nome ‘Francisco Acioli Gollo’ a propriedade ‘em forma’ ou ‘fora de forma’ com a mesma facilidade. Para isto basta eu mudar os parâmetros de comparação. Se eu me comparar com a média dos meus colegas, estou extremamente em forma. Se eu me comparar com atletas estou extremamente fora de forma. Da mesma maneira, posso simplesmente excluir ‘estar em forma’ da lista de propriedades de 'Francisco'. Tal liberdade poderia sugerir que eu poderia colocar o que eu quisesse na lista de propriedades de ‘Francisco’. Não é o caso, apesar de subjetivo, a lista de propriedades não é arbitrária. Meu sistema de crenças me proíbe de colocar algumas propriedades. Por exemplo, não posso colocar que eu peso 85 kg, pois de acordo com o meu sistema de crenças o peso é correlacionado à massa e a uma unidade de medida definido intersubjetivamente, desta maneira coloco como propriedade de ‘Francisco’ pesar 102 kg.

Além das restrições impostas pelo meu sistema de crenças, não coloco outras propriedades em ‘Francisco’ devido aos meus interesses. Adicionar um monte de propriedades o tornaria uma ferramenta ruim, seria tão difícil achar a propriedade que queremos como é difícil achar uma chave em uma bolsa cheia de cacarecos: não incluo a propriedade ‘possui 25 gramas de potássio’ a ‘Francisco’. Incorporar a um nome tudo aquilo que meu sistema de crenças não proíbe não é interessante 9* Ademais, tudo aquilo que meu sistema de crenças não proíbe a ‘Francisco’ é uma lista infinita (e nós, humanos, somos incapazes de processar o infinito, exceto em fragmentos finitos 10*).

NOME x CONCEITO

Talvez você tenha percebido que uso ‘nome’ de maneira semelhante à que alguém trataria ‘conceito’. Isto acontece porque conceitos são nomes. Nomes são designações, como etiquetas, que permitem a identificação. A particularidade de conceitos é que os conceitos são nomes que valem para um grande conjunto de exemplos. ‘Pessoa’ é um conceito e como tal pode ser definido de diversas maneiras diferentes 11*. Por exemplo, ‘pessoa’ pode se referir a ser vivo biológico racional e autoconsciente. De acordo com esta definição ‘pessoa’ pode ser entendido como o conjunto de todos os seres com estas características 9*: qualquer ser humano que encontramos ao sair na rua é uma pessoa, bem como a maioria dos símios e dos grandes psitacídeos (creio que já é consenso que macacos e papagaios são racionais e autoconscientes).

‘FRANCISCO’ COMO CONCEITO

Já o nome ‘Francisco Acioli Gollo’ é uma coleção de um único indivíduo (apenas eu). Entretanto é possível perguntar, quando ‘Francisco’ começa, quando termina? É possível elaborar uma definição de ‘Francisco’, por exemplo, ser humano adulto que se interessa por filosofia que nasceu do ventre da Márcia. De acordo com esta definição (ou, nas palavras de Aristóteles, de acordo com esta compreensão) toda minha infância seria descartada. Bem como o período em que eu já era adulto e não me interessava por filosofia. É interessante notar que nem sempre estou interessado em filosofia, assim o período em que já era adulto e já havia começado a me interessar em filosofia, mas em que eu estava com minha atenção orientada para o futebol deve ser descartado, da mesma maneira o período em que meu interesse estava exclusivamente orientado para algum jogo ou para o trabalho. Tal compreensão de Francisco leva a uma extensão que é uma coleção de diversos

momentos em que eu estava lendo, refletindo, debatendo ou escrevendo filosofia. Um conceito tão amplo quanto qualquer outro.

Desta forma qualquer nome pode ser considerado um conceito, qualquer conceito pode ser considerado um nome. A especificidade de um conceito é que ele possui uma compreensão (termo de Aristóteles) ou uma definição. Também possui exemplos de si mesmo (possui extensão) e a extensão costuma ter muitos exemplos (muitas instâncias). O nome costuma ser um conjunto de apenas um único exemplo, e, como tal, dispensa compreensão. Entretanto, estas características não são uma imposição metafísica (não são necessárias). É possível (como fiz no parágrafo acima) criar uma compreensão para um nome qualquer e, a partir dele, buscar sua extensão. Qualquer nome pode ser transformado em um conceito.

ADENDO: PARADOXO DO ESPELHO 12*

Tenho um amigo próximo e o conheço há muitos anos. Mas o que significa conhecê-lo? Significa que faço suposições a respeito de como ele pensa, faço inferências. Sei de algumas coisas que se eu falar ele vai ficar ofendido, bem como sei de coisas que se eu falar para pessoas em geral as ofende, mas que posso falar para o meu amigo. Uma das suposições que faço é a de que ele me conhece. E o que é me conhecer? Saber aquilo que ele pode falar para mim sem me ofender, mas também saber que eu sei o que ele sabe. Mas o que eu sei que ele sabe que eu sei…. ? A inferência de uma pessoa a respeito da outra, tal qual um espelho que reflete a si mesmo, é infinita. E, como em qualquer regressão ao infinito, chegamos a uma fronteira do pensamento: como somos seres finitos é impossível a cada um de nós processar infinitamente alguma informação. Neste sentido o nome, ‘Ronan’ e suas propriedades vem a mim quando penso nele. Entretanto, não preciso processar ‘Ronan’ (não preciso resgatar todas as propriedades de Ronan e emulá-las em minha cabeça). Basta a referência, basta o endereço ‘Ronan’, o endereço a partir do qual buscarei as propriedades caso a necessidade surja.

O paradoxo do espelho evidencia esta característica do nome: ele não é acionado (processado, deduzido em profundidade) exceto que surja a necessidade. Estou lendo ‘A Roda do Tempo’, quando falo o título não penso em cada uma das subtramas e personagens. Não preciso contar o enredo todo, falo apenas ‘A Roda do Tempo’. Quem tem uma boa memória talvez não perceba como isto é incrível (da mesma maneira que alguém que enxerga não fica se lembrando de como é incrível ter visão). Eu, que tenho uma memória ruim, para me referir a alguma pessoa fico dando dicas, propriedades da pessoa até que alguém se lembre de quem é (além de ser muito mais trabalhoso para mim e para quem me ouve, muitas vezes a comunicação ocorre de maneira equivocada). O mesmo ocorre com filmes, conceitos… Lembrar o nome daquilo que queremos nos referir é uma dádiva tão grande quanto conseguir enxergar o que está à nossa frente.

CONCLUSÃO

Este ensaio trata de nomes, como eles facilitam ações que conseguiríamos executar, mas também como conseguimos alcançar pensamentos muito mais avançados a partir dos nomes. Também mostrei que conceitos são um tipo de nome, mas também que um nome qualquer pode ser transformado em um conceito. Um conceito é subjetivo, desta maneira pode ser definido de infinitas maneiras. Entretanto o conceito não é arbitrário, não deve ser escrito de maneira inconsistente com outros sistemas de crenças. Da mesma forma, cada nome é definido de acordo com nossos interesses: ante a infinitude que é tudo aquilo que meu sistema de crenças não proíbe, o nome é definido em uma escolha daquilo que é interessante. Atribuir infinitas propriedades a um nome apenas tornaria o nome um conceito ruim (da mesma maneira que seria impossível achar uma chave em uma bolsa com infinitos cacarecos). Os nomes me encantam, são como a magia: como definem aquilo a que se referem, a construção dos nomes é a própria construção do universo em que cada um de nós vive. Além disso, os nomes permitem que tenhamos acesso a uma compreensão e interpretação de experiências, mesmo quando somos incapazes de uma compreensão do motivo pelo qual as coisas são daquela maneira (é possível compreensão em alto nível mesmo para a pessoa ignorante da explicação em baixo nível).

Preste atenção a este milagre da cognição: nome tem poder!

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OBSERVAÇÕES

1* Antigamente era muito raro ver pica-paus em Brasília, quando os via era em árvores altas e eu tinha a sensação que mesmo a muita distância eles percebiam que eu olhava para eles e paravam de bicar as árvores. Bicar as árvores faz muito barulho. Ou seja, os primeiros pica-paus eram extremamente medrosos. Atualmente eles estão bem corajosos. Meu pai diz que um pré-requisito para os pássaros se tornarem comuns em Brasília é que percam medo de humanos. Talvez seja um equívoco e a falta de medo não seja pré-requisito para que eles sejam comuns, mas para que nós os vejamos! Não acho que é o caso, por mais que seja arborizada, a Asa Sul é uma região urbanizada. De dia sempre tem pessoas caminhando entre as árvores. Um pássaro muito medroso não terá oportunidade de se alimentar, vai passar o dia inteiro se escondendo.

2* O termo que Douglas Hofstadter usa é “chuncked”. Seguindo o exemplo de Hofstadter estou mostrando o nome “pica-pau” como um conceito no qual se acumulam uma lista de características (semelhante ao que ocorre em um programa de computador).

3* Meu objetivo é escrever cada texto de maneira que um leigo entenda. Talvez isto se deva à minha falta de memória, prefiro assumir que quem me lê desconhece ou esqueceu conceitos que apresentei em ensaios anteriores. Por conta disto, alguns dos meus textos são um pouco repetitivos, pois alguns conceitos, como a regressão ao infinito, são recorrentes. Entretanto, para quem domina os conceitos e conhece os seus nomes tal repetição se torna desnecessária.

4* Muitos temas levantados em GEB são levantados muitas outras vezes e de maneiras inusitadas. O mais incrível é quando a própria explicação “técnica” ilustra o conceito. Ou seja, o conceito é tratado em camadas de entendimento diferentes: 1 explicando detalhadamente o que ocorreu; 2 como sendo um exemplo do que está sendo explicado. Não é a toa que GEB é o livro mais difícil e um dos mais fascinantes que já me aventurei a ler.

5* Ensaios que mostram que é impossível processar a infinitude:

Falácia da Objetividade

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7069375

Regressão ao infinito

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7062763

Entender e significar

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7217916

6* ‘Enganado pela aleatoriedade’ ou ‘fooled by randomness’ é o título de um dos livros do Taleb.

7* Se eu vejo algo que não corresponde ao meu sistema de crenças tenho dificuldade em aceitar. Sou ateu. Caso Deus apareça agora dizendo que é para eu fazer um barco porque terá uma inundação e preciso salvar um casal de espécies de cada animal eu não vou achar que sou o escolhido, um novo profeta. Vou apenas achar que estou louco. A primeira vez que falei para meu pai que havia um pica-pau indo para a frente da casa da minha avó e comendo cupins no chão ele disse que eu estava enganado, “Pica-paus ficam em troncos de árvores”. Ele precisou mudar seu sistema de crenças drasticamente a respeito de “pica-pau”. Ouso arriscar que ele mudou o sistema de crenças em relação a todas as aves incorporando “aves exóticas podem se tornar populares caso percam medo de humanos, mas seus hábitos na cidade estão propensos a mudar.”

8* Uma geometria não euclidiana é aquela que usa axiomas diferentes dos de Euclides. Por exemplo, ao retirarmos o axioma de que duas retas nunca se cruzam podemos pensar em uma geometria em um espaço curvo (por exemplo, em uma bola de futebol). Um triângulo desenhado na superfície de uma bola de futebol apresenta uma soma de ângulos superior a 180 graus. Esta historinha está bem apresentada no livro ‘How not to be wrong, the power of mathematical thinking’, de Jordan Ellenberg.

9* Composição do corpo humano:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-54017303#:~:text=A%20coisa%20fica%20assim%3A%20temos,j%C3%A1%20atingimos%2099%2C95%25.

10* Qualquer infinito evidencia que as fronteiras do conhecimento. A regressão ao infinito mostra que a fundamentação última é impossível (o que me convenceu a ser cético). A regressão ao infinito entre causa e consequência mostra que o mundo é contínuo (e que as fronteiras de tipo causa x consequência são subjetivas). O infinito do que meu sistema de crenças não proíbe mostra que é possível definir diversos conceitos de infinitas maneiras possíveis (contanto que não incorra naquilo que é proíbido pelo meu sistema de crenças).

11* Nesta série de ensaios, o ‘Todo Incognoscível’, defendo que não existem amarras metafísicas entre conceitos e aquilo a que ele se refere. Desta maneira não existe uma maneira objetiva através do qual um conceito TENHA que ser definido. Desta forma sempre é possível elaborar ou reinterpretar conceitos de maneira que se encaixem de uma maneira mais simples e pertinente (relação a outros conceitos e dados nos quais escolhemos acreditar).

12* Conheci este paradoxo no livro do Douglas Hofstadter, entretanto, ao contrário de Taleb, ele não tem a obsessão de dar nomes à sua maneira de pensar (isto e, ele não tem a obsessão em criar conceitos). Desta maneira me dei a liberdade de batizar o problema que ele me apresentou como ‘O paradoxo do espelho’.

Matematicamente o paradoxo do espelho é definido como uma função que em sua descrição chama a si mesma. Por exemplo: f(x) = x + f(x). Além do exemplo que dei (em que eu penso no Ronan que pensa em mim que pensa no Ronan…) outro exemplo é qualquer conceito que seja auto-referente. Por exemplo, o conceito de “eu” me inclui e eu penso em quem sou eu que, por sua vez, possui um conceito de eu que inclui o que penso…