A Missão

Surpreende a proporção que tomou o caso da missionária com o seu objeto de salvação, muito insuflado por uma cobertura midiática sensacionalista (por supuesto). Mas o que mais chama atenção é a produção industrial, não só de memes, mas de psicodiagnósticos. Tanto a empresária gospel quanto o rapaz em situação de rua estão sendo enquadrados como portadores de alguma doença mental pela conjunção carnal que protagonizaram no início desse mês, no DF. Essa distribuição virtual de atestados médicos serve a um único propósito: aliviar a consciência de quem está acompanhando esse teatro dos absurdos, sem ter que se preocupar em ser rotulado como "insensível" ou "desumano", o que compromete as possibilidades de análise desse curiosíssimo caso.

Primeiramente, até onde se sabe, a moça não possui histórico clínico comprovado e o cônjuge vitimado afirma que eles nunca passaram por tal situação. Sim, tudo tem sua primeira vez e o conhecimento dele acerca do estado mental dela pode ser precário, não podendo ser descartada a possibilidade de um surto. Mas vejamos o seguinte: I) Em conversa gravada com uma amiga, a obreira da última hora afirma que, depois de ser convidada pelo rapaz para se retirar da presença da sogra e da filha, eles se encaminharam para uma praça e se sentaram num banco, momento em que o rapaz pediu a permissão para massagear os seus pés. Ela não só consentiu como disse que a sensação estava MUITO boa; II) Disse também que a sogra plantou "coisas na cabeça dela" que fazia com que as falas do cidadão batesse com o que o que vinha acontecendo na vida dela (ou na cabeça dela, enfim). Além disso, antes de sair com o amante, a mesma sogra viu presencialmente um beijo entre os dois e, tentando retirar a nora dessa situação, recebeu como resposta: "Não, estou pronta para receber o meu propósito".

Eis, então, uma mulher bastante receptiva a receber atenção e carinho e uma completa desconexão (quando não desprezo) para com as figuras da sogra e da filha. Antes de presumirem um quadro clínico, já pararam pra se perguntar que tipo de relações (familiares e afetivas) ela tinha? Será que foi esse esquema de relações que a levou a ser imprudente? Fora a hierarquia social que se expressa por vias religiosas nesse caso: uma benfeitora "top" e branca a praticar sua caridade para com um sem-teto negro. Momentos antes do escândalo, há uma foto em que ele se prostra de joelhos perante ela, ou seja, uma figura passiva que não oferece risco algum e cuja gratidão está acima de qualquer suspeita. Some-se a tudo isso um forte sugestionamento neopentecostal, que prioriza a intensidade das sensações no encontro com o Cristo (d'onde se extravasa fantasias, projeções, emoções), e temos o cenário ideal para a materialização de um desejo. No instante do coito, disse ela que a figura de Deus e a do Marido se alternavam no semblante do Amante, uma santíssima trindade masculina em que o Verbo só se fez Carne, infelizmente, por meio do adultério. Trata-se, portanto, de um roteiro em 3 atos: Carência, Objetificação, Transcendência.

E, de fato, fronteiras de classe foram atravessadas, de forma que só a loucura é capaz de explicar esse evento. E essa mesma fronteira me impede que eu consiga escrever mais a respeito do rapaz, além de que ele é morador de rua, negro, partícipe de uma relação extra-conjugal, vítima de espancamento e suspeita de ter praticado estupro de vulnerável! Essa situação social criminosa de desamparo, fruto de uma política higienista, é a realidade de milhões de brasileiros. Esse é o verdadeiro lado triste da história...