Partidos Políticos no Brasil após 1945: à sombra de Getúlio Vargas

No início de 1945, quando a sobrevivência do Estado Novo não parecia certa em função dos acontecimentos da II Guerra Mundial, alguns governistas refletiram sobre questões pertinentes relacionadas à redemocratização do país, ou seja, cogitaram acerca de como seria a estrutura do Estado após a queda ou a possível permanência de Getúlio Vargas.

Por um lado, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho, ventilava a hipótese de que a mudança do regime poderia ocorrer através de um plebiscito no qual os cidadãos seriam chamados a chancelar a Carta de 1937. Para Marcondes, se a população bem entendesse que a Constituição deveria ser mantida, não haveria necessidade de convocação de uma nova assembleia constituinte. Para que o processo eleitoral ganhasse agilidade, Vargas poderia se lançar como candidato mais uma vez.

Do outro lado, o interventor de Pernambuco, Agamenon Magalhães, militava em prol da convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte cujo exemplo seria a do ano de 1933. Resolvidos alguns detalhes relacionados à legislação eleitoral, a candidatura Vargas seria não apenas desejável como também garantiria legitimidade ao processo da redemocratização.

Tanto Marcondes Filho quanto Agamenon Magalhães reiteravam a importância de que o ditador gaúcho continuasse à frente dos assuntos de governo, mas no contexto de leis democráticas que resguardassem limite ao poder Executivo e salavguarda de direitos para os cidadãos comuns. Ambos queriam Vargas na cadeira presidencial, mas sem a ditadura anterior que o acompanhara.

Quando mencionamos a história dos partidos políticos, a curiosidade maior repousa sobre os primeiros momentos do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, fundado em 1944. Era sabido que o Partido Social-Democrático (PSD) acabou congregando os apoiadores de Vargas ligados às interventorias estaduais. Os candidatos militares também fizeram do PSD uma espécie de porto seguro no qual disputariam o eleitorado ao fim do Estado Novo. O PTB acabou tornando-se um agrupamento voltado para a elite dos trabalhadores urbanos da indústria, sobretudo àqueles que se beneficiaram da estrutura sindical montada pelo Ministério do Trabalho.

O PTB teve uma importância seminal na construção do "queremismo", o qual só discernia validade nas eleições de fins de 1945 se o velho populista gaúcho estivesse na cédula eleitoral. Os líderes pretebistas eram favoráveis ao modelo de "Constituinte com Vargas". Muitos entendiam que um trabalhismo sem Getúlio faria com que os sindicatos se abrissem à influência das ideias socialistas. Desse modo, centenas de cidades brasileiras montaram comitês queremistas para formar uma corrente de opinião no sentido da permanência de Vargas no processo eleitoral. Espertamente, a ideia era a de transmitir a impressão de que os líderes trabalhistas dentro dos comitês municipais não tinham filiação ao PTB. Problema de maior envergadura se colocaria ao fim do processo eleitoral. A pergunta era: o que fazer com o contingente de pessoas que queriam Getúlio uma vez transcorridas as eleições? A resposta era simples. Os comitês municipais do queremismo seriam absorvidos pelo PTB. Em casos de cidades em que inexistiam diretórios trabalhistas, os queremistas fundariam novos braços do Partido Trabalhista Brasileiro. Como bem apontam Angela de Castro Gomes e Maria Celina D'Araujo, não há como dissociar trabalhismo e queremismo. Um só existia em função do outro.

Em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto por uma junta militar cuja função era a de por fim ao Estado Novo. O PTB precisou lidar com a possibilidade de não contar com o líder gaúcho como candidato à presidência. Diante de uma nova Constituinte que restabeleceu as bases do liberalismo democrático, dois candidatos presidenciáveis logo se destacaram: de um lado, o Brigadeiro Eduardo Gomes (União Democrática Nacional); de outro, um general ligado a Vargas, mas que havia apoiado a deposição do gaúcho em novembro de 1945: Eurico Gaspar Dutra (PSD). Não era de pouca envergadura a tarefa que Gaspar Dutra tinha diante de si: como atrair apoio dos trabalhistas para a sua candidatura? O apoio lacônico que Vargas prestou ao seu antigo Ministro da Guerra talvez não fosse o bastante para garantir-lhe transferência de votos. Dutra logo soube reconciliar-se com a elite da classe operária trabalhista. Endereçou uma carta aos dirigentes pedetistas, dentre os quais Paulo Borghi, reiterando apoio às pautas trabalhistas no Congresso durante o mandato. Também firmou compromisso para que o PDT assumisse a pasta do Ministério do Trabalho no futuro governo Dutra. A conquista dos votos dos "marmiteiros", outro nome para definir a classe trabalhadora dos grandes centros, tornou-se tarefa de primeira hora para o candidato pessedista. Muitos operários entenderam que votar em Gaspar Dutra era uma espécie de "purgante" ou mal menor. Se o udenista Eduardo Gomes fosse eleito, as leis trabalhistas da Era Vargas corriam sério risco de desmonte, refletiam os líderes trabalhistas. Conquistas legislativas como o salário mínimo, o direito às férias remuneradas e a aposentadoria coordenada por instituto nacional eram vidros delicados que exigiam cuidado. Uma possível vitória do candidato da UDN poderia colocar em risco todo um patrimônio de leis trabalhistas conquistadas até aquele momento.

Apesar da biografia digna ostentada pelo Brigadeiro Eduardo Gomes, a interpretação feita pelos políticos trabalhistas era a de que se a UDN chegasse à presidência, isso representaria um golpe mortal contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a intervenção do Estado na economia através da construção de estatais no setor de infraestrutura. Era preciso evitar que retrocessos acontecessem, mesmo que a eleição presidencial empoderasse no Executivo uma figura que havia conspirado para a derrubada de Getúlio Vargas do Palácio do Catete.

As eleições de 2 de dezembro de 1945 mostraram como o trabalhismo do PTB dependia da presença de Getúlio Vargas. O Partido conseguiu eleger 22 deputados e 2 senadores, atingindo a terceira bancada da Constituinte. Sem dúvidas, Vargas era o grande "puxador de votos" para o trabalhismo petebista. Construir um caminho para o PTB longe do personalismo do ex-ditador era uma tarefa que ficaria adiada para o futuro. Vargas conseguiu eleger-se como senador pelos Estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, além de atingir a eleição como deputado federal em sete outros estados.

O grande problema posto diante do PTB era o de institucionalizar o partido após o processo de redemocratização. Como lidar com os queremistas insatisfeitos diante de um cenário sem a presença de Vargas no posto maior do Executivo brasileiro? As eleições estaduais de 1947 acabaram dirimindo as dúvidas dos líderes trabalhistas. O PTB conseguiu aumentar a participação nas bancadas das principais assembleias legislativas  do país. Dutra, como havia prometido secretamente à liderança trabalhista, procurou satisfazer algumas pautas de interesse do PTB.

No entanto, não demorou para que as desconfianças se instalassem no cenário político. Em primeiro lugar, o Ministro do Trabalho de Gaspar Dutra não era a figura recomendada pelo PTB logo no início. Eurico Gaspar Dutra resolveu indicar Otacílio Negrão de Lima como Ministro do Trabalho logo na entrada, cujo nome não transparecia confiança imediata na liderança trabalhista. Mais tarde, sem respaldo nas federações sindicais, Negrão de Lima acabou sendo substituído por Marvin Figueiredo, o qual constituiu uma rede de informações  de âmbito nacional para identificar e perseguir figuras comunistas de expressão no interior dos sindicatos. Aos poucos, Gaspar Dutra aprovou uma legislação que era restritiva ao direito de greve, demonstrando de maneira clara às cúpulas sindicais que o novo governo não era tão suscetível como se supunha. Aliás, após a Segunda Guerra, houve uma disputa entre comunistas e trabalhistas pelo coração do operariado urbano, de modo que o governo federal não poderia se isentar da responsabilidade de aprovar novas legislações que pacificassem o ambiente sindical.

O trabalhismo contava com intelectuais de peso na hora da construção do estofo ideológico. Alberto Pasqualini, San Tiago Dantas, Salgado Filho e Lúcio Bittencourt somavam-se às fileiras de uma militância petebista altamente qualificada. Diversos periódicos trabalhistas surgiram durante o quinquênio 1946-1950, embora apenas o jornal "A Democracia" fosse realmente um órgão do PTB. O ambiente profícuo de ideias e debates mantinha-se, contudo, tendo em Getúlio Vargas o alicerce para execução de políticas.

Assim que Vargas elegeu-se presidente pelo PTB através do voto direto, em fins de 1950, temos a impressão superficial de que o partido navegou em águas tranquilas. Pelo contrário! A exemplo do que havia ocorrido durante o Governo Gaspar Dutra, coube ao PTB apenas o Ministério do Trabalho. O Segundo Governo Vargas, agora em regime democrático, manteve a tradição de coroar os petebistas com as pastas voltadas ao trabalho, enquanto as demais foram distribuídas em um combinado conservador de forças que oscilava entre a UDN e o PSD. Durante os três anos em que governou, Getúlio Vargas não se esforçou para parecer mais acessível às classes trabalhadoras. Não era de visitar sindicatos ou reunir-se com lideranças trabalhistas. Mantinha o tom formal em todas as ocasiões de aparição pública, sem importar-se com os grupos de pressão da ocasião.

Após o suicídio de Vargas em 24 de agosto de 1954, a UDN perdeu um elemento interno de coesão. O único assunto que unificava realmente o partido era a oposição contumaz a Getúlio, bem exemplificada pela atuação do jornalista Carlos Lacerda. O PTB precisou se reconstruir sem a referência máxima do líder carismático. Enquanto isso, o PSD enfrentou menos turbulência durante o voo justamente porque tinha um perfil mais pragmático na condução das instituições. O novo presidente eleito pelo voto direto, Juscelino Kubitschek, representaria um breve momento de pacificação nacional em função do sucesso do programa nacional-desenvolvimentista aplicado entre 1956 a 1960. Todavia, questões passadas como a ambição dos militares, as pressões de companhias estrangeiras e o moralismo de parcelas da classe média urbana ressurgiriam mais à frente, lançando o país em uma crise que empoderaria uma classe militar influenciada pelo anti-comunismo americano. O PTB, representante do trabalhismo, perderia influência na composição de políticas públicas no Brasil.

Humberto Serrabranca Campos
Enviado por Humberto Serrabranca Campos em 29/05/2023
Código do texto: T7800112
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.