O afeto nômade, o comodato e o moedor de muximba

Comodato.

Me deparei com esse termo até então desconhecido. O Google me diz

"Um comodato, também conhecido como empréstimo para uso, no direito civil e no direito escocês, é um empréstimo gratuito; (...) por um certo período de tempo, com a condição de devolver ao indivíduo nas mesmas condições ao fim do prazo."

Imagine que você ou sua família, tem nos fundos da sua casa, lá naquele quarto escuro, os originais manuscritos de um artista raríssimo. Faz-se um comodato, você cede o material ao museu, que se coloca no dever de expor e devolver do mesmo jeito que recebeu.

E quando se põe em comodato o coração?

Quase aquela do Cesar Menotti e Fabiano. "Vou fazer um leilão, quem dá mais pelo meu coração." Pois. E quando emprestamos os nossos sentimentos pra o outro?

Esse vem num contrato a contragosto, sem tempo de expirar, nem termos justos, ou garantia nenhuma de que o outro vai fazer do que te machuca ou que te faz feliz, um museu.

Que vai zelar sobre o que foi tomado de empréstimo. Pois na verdade, isso acontece as vezes até sem a outra parte dar de conta, se entregamos muitas vezes, dum jeito unilateral.

Somos levados nesse caminho do amor quase como uma dimensão institucional. Com cláusulas imutáveis, e num soneto de fidelidade que diz "que seja infinito enquanto dure, e que dure o infinito"

Deixar de amar é um processo de descanonização. Perceber como todos aqueles ídolos iluminados na vitrine, toda aquela memoriabília invisível, é (e sempre foi), não mais do que ideia.

E aí o termo religioso "canonizar" não vem atoa. É todo um trabalho esse do desmontar noções, essas do amor como sacramento. É doidera pensar sobre isso, mas querendo ou não, nos catequizaram.

Um texto da juventude negra de Piracicaba (Vou deixar o link no final), fala sobre Isso, a urgência de romper com o manejo dos afetos da forma como estão "Precisamos quebrar esse ciclo de relações com modelos hierárquicos."

Esse amor gostoso, esse sofrimento psíquico, o desapegar difícil, tudo isso tem toda uma raiz funda. Pode não explicar tudo, mas fala um tantão da gente, e sobre um tantão de gente.

Um trecho do que diz Geni Núñez para a folha:

"De acordo com a historiadora Vânia Moreira, a imposição da monogamia se tornou uma grande obsessão dos missionários, uma vez que sem ela não seria possível o batismo —e, sem este, todo o sucesso da obra missionária estaria comprometido."

E aí, quando se toma o caminho oposto, quando se desvela o olhar e admite-se que o afeto é nômade, museu itinerante, aí sim se termina o comodato, a exposição fecha, e moedor de muximba encerra os trabalhos.

LINKS

Por: Geni Núñez

Descolonizando os afetos

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/descolonizando-os-afetos.shtml

Por: Coletivo Juventude Negra de Piracicaba

TRAUMAS HERDADOS DESDE A ESCRAVIDÃO AFETAM NOSSAS RELAÇÕES AMOROSAS

https://www.casadohiphop.com.br/post/traumas-herdados-desde-a-escravid%C3%A3o-afetam-nossas-rela%C3%A7%C3%B5es-amorosas