A VOZ DA FILÓSOFA - UM ESTUDO DO LIVRO FILOSOFIA FEMINISTA – UMA BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO, DE IVONE GEBARA

1 INTRODUÇÃO

Quando se faz o curso superior de Filosofia ou se estuda Filosofia num curso de bacharelado ou licenciatura alguns alunos e algumas alunas fazem uma pergunta: existiam mulheres no “tempo dos filósofos? ” Elas pensavam? Elas também faziam Filosofia? A impressão que se tem é que o mundo dos grandes filósofos da Antiguidade e de até há bem pouco tempo não existiam mulheres e a Filosofia era feita apenas de homens. Obviamente sabe-se que isso é impossível, claro que as mulheres existiam na mesma proporção que os homens!

A Filosofia ocidental tradicional é feita, pois, de forma parcial porque não abarca todos os sujeitos, daí haver uma visão androcêntrica da Filosofia enquanto a mulher de verdade, de carne e osso que vivia nessas épocas é vista de maneira idealizada, por exemplo, como deusa. A tradição filosófica não inclui as mulheres como iguais.

Este artigo de revisão bibliográfica se propõe a refletir sobre a questão da ausência da mulher na Filosofia tradicional. Entre os grandes e clássicos filósofos não se encontram mulheres que ensinam na praça, que tenham sua escola filosófica, que tenha discípulos como por exemplo Sócrates, Platão, Aristóteles.

A hipótese do artigo é que a Filosofia tradicional não considerava as mulheres como seres capazes de pensar abstrair o mundo e o que teoricamente tenha sido escrito e pensado pelas mulheres da época foi desconsiderado.

O objetivo geral deste artigo científico é discutir a ausência das mulheres entre os filósofos clássicos e os objetivos específicos são analisar o papel da mulher na época dos grandes filósofos e comparar a presença das mulheres da Filosofia atualmente, a partir do livro Filosofia Feminista – uma brevíssima introdução, de Ivone Gebara.

A ausência das mulheres da Filosofia clássica cria uma lacuna impossível de ter preenchida porque se as não iam às escolas filosóficas não podiam refletir com os filósofos e criar sua Filosofia a partir de sua experiência e cosmovisão como mulheres. O papel das mulheres naquela época era cuidar da casa e procriar, entretanto, hoje, mesmo mantendo o papel clássico que se espera delas, também é possível que elas estudem, pensem, pesquisem e escrevam sobre Filosofia.

Este trabalho se justifica pela originalidade porque os grandes filósofos clássicos não definiram a Filosofia como masculina, mas simplesmente excluíram as mulheres de suas escolas e reflexões, entretanto, as mulheres que pensam a Filosofia hoje podem fazê-la a partir do feminismo.

A metodologia utilizada para este artigo é a pesquisa bibliográfica qualitativa partindo do livro que é a base para este artigo e outros escritos acessados de modo tradicional ou digitalmente que poderão confirmar ou refutar o objetivo geral.

O artigo está disposto da seguinte maneira: os grandes filósofos e a situação das mulheres naquela época, as mulheres na atualidade que continuam ou não seus afazeres e papeis tradicionais e pensam, pesquisam, escrevem e fazem Filosofia Feminista, como no livro que dá nome ao artigo.

2 A MULHER E OS GRANDES FILÓSOFOS CLÁSSICOS

Do que conhecemos da História da Humanidade a quase totalidade dela estruturou-se a partir da égide do patriarcalismo. Para melhor entender o assunto é preciso uma conceituação dos termos.

O patriarcalismo segundo Rubin e Marques (2016, p. 3) “é um modelo familiar no qual o pai é o centro da família, uma vez que é a figura do homem como garantidor do sustento e da proteção da sua prole. ”

O patriarcado, por sua vez é o poder que o pai (avô, irmão mais velho) exerce tanto sobre instituições públicas, privadas, política e a igreja quanto na própria família. Quando o poder é patriarcal certamente está se falando de mulheres oprimidas, despojadas dos seus direitos, atuando no papel que foi criado para elas: o de mãe e dona de casa.

Aqui não se condena a mulher que opte por ser mãe e dona de casa, mas condena-se o fato de não haver para a mulher uma outra opção que não o espaço doméstico enquanto o homem faz as leis, tanto terrenas quanto divinas e dirige a vida a partir do seu ponto de vista, sua cosmovisão.

O patriarcalismo vê a mulher como um ser que serve, um ser de segunda categoria, um objeto. Ela é a “rainha do lar”, cuida dos filhos, do marido e da casa; é sempre solícita ao marido e está pronta a satisfazer-lhe todas as vontades. O homem é a imagem da sociedade que ele produziu e gere como o é também de Deus.

De acordo com Gerda (2019, p. 29-30)

Da época dos reis da Antiga Suméria em diante, historiadores, fossem sacerdotes, servos reais, escribas, clérigos ou alguma classe de intelectuais com instrução universitária, passaram a selecionar os eventos que seriam registrados e a interpretá-los para que tivessem significado e significância. Até o passado mais recente, esses historiadores eram homens, e o que registravam era o que homens haviam feito, vivenciado e considerado significativo. Chamaram isso de História e afirmaram ser ela universal. O que as mulheres fizeram e vivenciaram ficou sem registro, tendo sido negligenciado, bem como a interpretação delas, que foi ignorada. O conhecimento histórico, até pouco tempo atrás, considerava as mulheres irrelevantes para a criação da civilização e secundárias para atividades definidas como importantes em termos históricos. Assim, o registro gravado e interpretado do passado da espécie humana é apenas um registro parcial, uma vez que omite o passado de metade dos seres humanos, sendo, portanto, distorcido, além de contar a história apenas do ponto de vista da metade masculina da humanidade.

Aqui a autora chama de história, mas o presente trabalho lembra que essa realidade pode se equiparar à das mulheres durante a era clássica dos filósofos. Teriam existido mulheres que pensavam e filosofavam? Certamente, até quando varriam suas casas, amamentavam seus filhos, cozinhavam. Mas esta produção não foi considerada porque, como diz a autora, “o que as mulheres fizeram e vivenciaram ficou sem registro, tendo sido negligenciado, bem como a interpretação delas, que foi ignorada. ” Teria havido escolas filosóficas dirigidas por mulheres? Difícil, mas como não há registro não podemos afirmar que sim, mas também que não. O que sabemos é que a história da Humanidade foi contada apenas a partir de apenas um ponto de vista, como a Filosofia: do ponto de vista das pessoas do sexo masculino. Ela é, portanto, parcial.

Segundo Aristóteles (727a 24-25) “a palidez e a ausência de vasos sanguíneos [na mulher] é sempre mais visível, e é óbvio o desenvolvimento deficiente do seu corpo comparado com o do homem. ” Esses filósofos beberam da fonte que colocava a mulher como objeto do homem: o patriarcalismo.

De acordo com Bandeira (2014, p. 142)

Para Aristóteles a mulher é uma espécie de desvio relativamente a um tipo mais

perfeito que se concretiza no homem. É uma privação. O homem é a medida da

humanidade e ela é uma falha, uma falta, um homem incompleto ou mesmo mutilado.

Essa ideia de mulher como um ser mutilado, ou seja, sem falo, alimentou até mesmo correntes da Psicologia milênios após. E não para por aqui. Os pensadores que vieram depois continuaram a pensar e escrever sobre a mulher sem que elas também fossem consideradas capazes.

Tanto que, segundo Pacheco (2055, p. 14)

O cenário filosófico sempre foi composto por grandes filósofos que contribuíram com suas teorias para a construção e visão da sociedade e humanidade. Contudo, há uma questão que se mostra relevante para a filosofia e que se mantém obscurecida: Onde estão as filósofas na filosofia? Esta é uma questão que vem fomentando alguns pesquisadores (as), os (as) quais buscam desobscurecer a presença feminina na filosofia, pois como sabemos a filosofia ainda é um campo dominado pela figura masculina.

Esta citação é exatamente a deixa para que este trabalho inicie a segunda parte do seu desenvolvimento. Há mulheres. Há filosofia. Há mulheres fazendo Filosofia. Mas a Filosofia que contemplava as mulheres foi escrita por homens, portanto, incompleta porque não tem a genuinidade de ser vivida, criada, escrita, feita por aquelas que sentem na pele, no mutismo imposto pelo patriarcalismo o que é ser mulher, o que é ser filósofa.

2.1. A filósofa fala – a voz da filósofa

A segunda parte deste artigo falará sobre a filosofia feminista pensada e escrita por Ivone Gebara. Apesar de ser autora de um sem-número de livros e artigos, nos mais variados países e no Brasil, o livro ‘Filosofia feminista, uma brevíssima introdução’ é um marco na história da Filosofia feminista brasileira.

É que Ivone tem sua produção intelectual muito mais voltada para a Teologia, a Teologia Ecofeminista, a Hermenêutica e a Antropologia Teológica e o Feminismo em si. Escrever um livro apenas de Filosofia não é um evento tão comum na vida desta teóloga/filósofa que se intitula livre pensadora.

Claro que, mesmo o livro sendo “uma brevíssima introdução” será necessário que se faça um brevíssimo resumo das passagens mais marcantes do livro dado à quantidade de páginas que o presente trabalho precisa apresentar.

Ivone Gebara começa seu livro dizendo que falar de filosofia feminista é algo bastante original, já que nunca se falou em filosofia masculina, mas simplesmente filosofia sem nenhuma referência ao outro gênero. Já nesse início ela afirma o que foi dito até agora: para a filosofia clássica parece que as mulheres não existiam, porque simplesmente não eram consideradas. Foi dada aos homens, segundo a autora, a tarefa de pensar publicamente o mundo e expressar seu pensamento.

Segundo Gebara (2017, p.9)

É como se a natureza, os deuses, ou eles próprios estivessem convencidos de que o ato de pensar o mundo, a vida humana e os seus sentidos fossem o seu dever e a sua prerrogativa. Durante muito tempo “nascer mulher” foi considerado como uma posição de inferioridade no mundo, uma desvantagem imposta pelo destino. Por esse motivo, quando as mulheres tentam expressar sua maneira de pensar o mundo, usam o termo feminista para indicar que há uma maneira de sentir, pensar e expressar a vida a partir da própria experiência e das suas lutas contemporâneas. Embora tais lutas sejam plurais e, portanto, bastante diversificadas, elas têm a característica fundamental de ter quebrado de certa forma e em muitos lugares a hegemonia do pensamento masculino.

A autora sintetiza neste parágrafo o que foi e continua sendo a realidade das mulheres no passado e atualmente, tanto na Filosofia, quanto na Teologia, nas Ciências Humanas e Sociais e na sociedade como um todo. Basta ver as taxas de violência contra a mulher e o número de feminicídios no Brasil.

Não podemos falar de feminismo, mas de feminismos. Há grupos de mulheres (e homens!) que trabalham por causas específicas dentro do feminismo. Há, em todos os feminismos, por exemplo, uma vertente de feminismo negro e com a filosofia feminista não poderia ser diferente.

Pode-se dizer que há um pensamento filosófico feminista negro no Brasil. Não porque se separam das filósofas feministas, mas porque pensa a filosofia feminista a partir da sua realidade que não é europeia, masculina nem branca. Essa é um exemplo da pluralidade que Gebara cita no trecho acima.

E o que é Filosofia Feminista? É quando a mulher pensa a Filosofia a partir de si mesma. Nem toda Filosofia feita por mulheres é feminista, pois muitas mulheres podem ser apenas aparelhos de reprodução de uma Filosofia androcêntrica. Mas quando uma mulher pensa e escreve Filosofia a partir de si esta tende a ser feminista porque de outro modo nem se dará conta que apenas está reproduzindo o que os homens pensaram para elas.

É necessário fazer filosofia feminista hoje? Por que ela se justifica? Não poderia ser apenas Filosofia, mas também escrita pelas mulheres?

Gebara (IBIDEM, p.16) diz que

[...] para explicitar alguns motivos para fazer uma filosofia feminista de forma mais sistemática, precisamos explicar em grandes linhas algumas razões pelas quais as mulheres ficaram ausentes da história da filosofia. Dizer isso não significa que não houve filósofas na antiguidade, na Idade Média, na modernidade e na época contemporânea, mas que seu papel foi muito pouco reconhecido, sobretudo como contribuição aceita no mundo acadêmico ou parte da filosofia difundida em diferentes contextos. Permito-me sugerir que recorram à Internet, onde pode se encontrar uma série, sem dúvida incompleta, de nomes de pensadoras da antiguidade até os tempos atuais, para se ter uma ideia da sua existência, seu pensamento e atuação. ”

Ou seja, é necessário fazer filosofia feminista para dar visibilidade às mulheres filósofas e sua produção escrita. É preciso marcar a atuação delas. É necessário que as mulheres façam o curso de Filosofia, produzam textos sobre a parcialidade, reflitam sobre o assunto e criem espaços onde a filosofia escrita por mulheres apareça, seja conhecida e lida pelos alunos e alunas que estão na graduação ou fazendo a disciplina em outros cursos. Ou seja, é preciso discutir a questão com quem está entrando curso para que a ausência das filósofas para que elas agora estudem, reflitam, escrevam e sejam vistas.

Diz a autora que (IBIDEM, p.45)

“[...] o discurso feminista não pode se basear numa racionalidade única (logocentrismo) nem reproduzir o falocentrismo, ou seja, a dominação masculina do pensamento, tanto na história pública como privada das nossas culturas. ”

Essa não-reprodução na verdade é a denúncia do tempo passado e atual, porque a mulher ainda aparece submissa ao homem, seja na produção filosófica seja no salário que é menor do que o dele, quando se precisa criar cotas para as mulheres nos partidos políticos, quando o número de mulheres em cargo de chefia é menor do que o dos homens e quando a Igreja Católica não tem mulheres nas instâncias de decisão e nem elas podem alcançar o mesmo papel que os homens em algumas celebrações litúrgicas pelo fato de serem mulheres.

Diz Gebara (IBIDEM, p.87)

A filosofia feminista surge quando nós, mulheres, tomamos consciência de que também nós somos convidadas à mesa do pensamento, e temos todas as possibilidades de pensar a vida com maestria e sabedoria. Afinal não somos nós que arrumamos a mesa e preparamos a comida? Por isso não desprezemos o convite que a história de hoje nos faz a todas nós: ousar pensar a vida e vive-la podendo dizer com dor e amor “eis-me aqui. ”

É preciso dar voz à filósofa que existe desde quando estudantes da área. A voz da filósofa precisa se fazer ouvir para que a equidade entre mulher e homem, tão difícil no passado agora seja a prática comum entre os gêneros para que a Filosofia ganhe imparcialidade e se enriqueça com a contribuição das mulheres, sejam elas quem forem.

3 CONCLUSÃO

Como foi visto até agora, a produção das mulheres na Filosofia da antiguidade foi desconsiderada pelos grandes filósofos da época porque a visão que se tinha das mulheres era de que elas não eram capazes de filosofar, de pensar o mundo e as questões filosóficas a partir delas mesmas, do seu ser mulher. Portanto, essa Filosofia é completa e parcial porque não dá voz às filósofas.

O objetivo geral deste artigo foi alcançado, porque foi discutido a ausência total das mulheres principalmente na filosofia clássica. Os objetivos específicos também foram alcançados porque vimos que na época dos grandes filósofos a função da mulher era doméstica, do lar e também porque hoje o papel delas até pode ser a função de cuidar da casa, dos filhos e do marido, contudo, ela não precisa ser só isso. Há mulheres estudando, refletindo e fazendo Filosofia e quando essa Filosofia acontece a partir da sua compreensão de uma Filosofia que sempre foi androcêntrica ela é uma filosofia feminista porque é uma crítica à filosofia parcial, feito por e para os homens.

O livro da filósofa Ivone Gebara ajudou a perceber o quanto essa filosofia é parcial e se torna uma filosofia apenas de um ponto de vista desconsiderando a presença das mulheres.

A Filosofia não pode ser uma mera repetição desta filosofia centrada no masculino sob pena de não avançar, mas de reproduzir o modelo patriarcal de filosofar. Até hoje o número de mulheres que fazem filosofia feminista é pequeno se comparado à quantidade de filósofos.

Este artigo não pretendeu esgotar a discussão do tema, mas ser mais um indicativo da necessidade urgente de que mais mulheres estudem, reflitam e escrevam sobre filosofia feminista para que alcancem o lugar que outrora e ainda hoje lhes é negado.

4 REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, História dos animais - tomo 2, 726 b, Capa comum – Edição padrão, 2018.

FERREIRA, MLR. A mulher como o «outro»: a filosofia e a identidade feminina. Disponível em http://aleph20.letras.up.pt/index.php/filosofia/article/viewFile/528/521. Acesso em 06/01/2021.

GERABA, Ivone. Filosofia feminista, uma brevíssima introdução. São Paulo: Edições Terceira Via, 2017.

LERNER, Gerda. A criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens. São Paulo: Cultrix, 2019.

PACHECO, Juliana (Org.). Mulher & filosofia – as relações de gênero na filosofia. Porto Alegre: Editora Fi, 2015.

RUBIM, Campos Goreth e MARQUES, Dorli João Carlos. A influência do patriarcalismo na prática do homicídio qualificado pelo feminicídio in Revista de Gênero, Sexualidade e Direito | e-ISSN: 2525-9849 |Curitiba | v. 2 | n. 2 | p. 1-18| Jul/Dez. 2016.

Cátia Cristina RJ
Enviado por Cátia Cristina RJ em 11/03/2024
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