CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E A SEMIOLOGIA

Dois Poemas de Carlos Drummond de Andrade, “Consideração do poema” e “Elegia Transitiva” publicados em foram escolhidos para serem analisados à luz de uma perspectiva semiológica. E este estudo se torna interessante à medida que, ao se desenvolver esta análise, tomando-se como base o que oriente a semiologia, caberá participar da “escritura” de textos que já são conhecidos e cujo teor já gerou até discussões.

Nesta análise, se tomará por base os conceitos estudados de Roland Barthes e aplicados por Roberto Correa dos Santos, além da perspectiva crítica do leitor que, certamente, complementará a melhor compreensão desses textos. Pretende-se ainda desenvolver aqui o que Roland Barthes denominou de o “Prazer do texto”.

1.ABORDAGENS SEMIOLÓGICAS

Je ne serais rien si je n´écrivais pas. Cependant je

suis ailleurs que là ou j´écris. Je vaux mieux que j´écris.

Roland Barthes

Entendendo-se por semiologia a “ciência geral do signo”(BARTHES, Roland: 1975, pág. 148), selecionou-se dois poemas drummondianos que atendem a uma análise semiológica bastante condizente. Tomando-se por base o termo interpretação, conclui-se que:

O que pretende como uma de suas perversões , é entrar no jogo da escritura, quebrando a passividade de uma leitura que tende a seguir, sem brincar e sem considerar a ação escritural, um fio unitário de estória cujo desenlace se quer conhecer. A interpretação quer escrever sempre diferente cada vez que tocar um texto. Como quem toca rasga.( BARTHES, Roland: ibidem, pág.157)

Ainda referindo-se à escritura, o mesmo estudioso afirma:

L´écriture est ce jeu par lequel je me retourne tant bien que mal dans um espace étroit: je suis coincé, je me démène entre l´hystérie nécessaire pour écrire et l´imaginaire... D´un côté je veux qu´on me désire et de l´autre qu´on ne me désire pas. Hysthérique et obsessionnel tout à la fois.( BARTHES, Roland: ibidem, pág.140)

A partir da escritura e de textos que, em semiologia, denominam-se de scripitibles dá-se a atividade interpretativa. Em outras palavras, “Interpréter um texte, ce n´est pas lui donner un sens (plus ou moins fondé, plus ou moins libre), c´est au contraire apprécier de quel pluriel il est fait”( BARTHES, Roland:1970, pág.11).

Ambos os poemas de Carlos Drummond, tomados aqui para análise, estabelecem semelhanças e diferenças que propiciam, através do “jogo das forças” que se mantenha “o diálogo que um texto realiza com outros discursos”(SANTOS,Roberto Correa dos: 1977:pág.79). Segundo Rolland Barthes, este é o motivo que leva a considerar tais textos como textos plurais, ou seja, textos que podem ser interpretados como um conjunto de vozes, pois “chaque code est l´une des forces qui peuvent s´emparer du texte (dont le texte est le réseau), l´une des Voix dont est tissé le texte.( BARTHES, Roland:1975, pág,48).

Estas vozes se tornam muito importantes nos textos modernos, sobretudo porque, neles, é “le discours, le language ( que) parle”e isto é o suficiente para torná-los textos plurais. A linguagem é a a responsável pela construção do sentido e, de fato, “Para a semiologia, sujeito e objeto organizam-se dentro de um mesmo espaço: a linguagem”( SANTOS,Roberto Correa dos:ibidem,pág.6). Rolland Barthes se preocupou em não distanciar aquele que escreve daquele que lê, afirmando que “Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e objeto...( BARTHES, Roland:1977, pág.24). Estabelece-se aí a diferença entre os dois diálogos, ou seja, a do leitor e a do escritor ou, nas palavras do outro teórico, “entre duas instâncias: a do que parece olhar e a do que parece olhado” ...( SANTOS, Roberto Correa dos:1977, pág.4).

No que tange à linguagem, elemento de real importância para a semiologia, já que se refere à interpretação, cumpre ressaltar que

Le language est toujours socialisé, même au niveau individual, car en parlant à quelqu´un on essaye toujours plus ou moins de parler son language, notamment son vocabulaire (…) l´idiolecte serait donc une notion largement illusoire. (…) l´idiolecte corresponderait alors à peu près à ce qu´on a tente de décrire aiilleurs sous le nom d´écriture. (. BARTHES, Roland: 1964, pág.93).

Para que o escritor empregue uma linguagem compreensível ao leitor, é necessário que disponha dos elementos da langue que nada mais é senão “le produit et l´instrument de la parole”( BARTHES, Roland: 1964, pág.88) e que, inserida na parte social da linguagem, não permite “ni la créer, ni la modifier;...si l´on veut communiquer, il faut se soumettre em bloc; de plus, ce produit social est autonome, à la façon d´un jeu qui a sés règles...( BARTHES, Roland: 1964, pág.86).

A escritura é, pois, essa linguagem que é dirigida a outrém para ser compreendida por ele. A leitura só se completa no leitor em sua capacidade de detectar no texto as suas “vozes”. Em outras palavras, “A força da literatura só importa e só é viva, se lida – se estimulada pelo olho que se deixe (e que se possa deixar) estimular”( SANTOS, Roberto Correa dos: ibidem, pág.59). Torna-se, pois, necessária a participação de um leitor consciente que deixe aflorar sobre o texto os conhecimentos que lhe serviram antes como bagagem e que, no momento de leitura, incidam sobre o texto, complementando-o. Em outras palavras, “Ce moi qui s´approche du texte est déjà lui-même une pluralité d´autres textes, de codes infinis, ou plus exactemment: perdus (BARTHES, Roland: 1964, pág.16.

A leitura torna-se, assim, uma atividade de participação, de complementação e até de escritura do texto; trata-se, melhor dizendo, de um trabalho que visa a incluir a experiência diária de um leitor avisado e consciente da problemática social e política que o cerca e que o torna capaz de o identificar com quem o lê.

“Consideração do Poema” e Elegia Transitiva” são poemas que envolvem um contexto social, político e literário correspondentes à época em que foram escritos, logo inseridos também na realidade do autor. Para a semiologia, “Sendo a literatura, discurso social”( SANTOS, Roberto Correa dos:ibidem pág.9) e cabendo ao autor empreender a mensagem, é necessário assinalar que “le discours parle selon les intérêts du lecteur”( BARTHES, Roland: 1975, pág.157).

Neste aspecto, recai-se na recepção do texto, característica que faz com que a escritura se torne ativa, tornando o leitor alguém participativo e o autor um écrivain public, como Rolland Barthes denominou. Carlos Drummond de Andrade requisita este leitor, uma vez que seus poemas se apóiam num contexto social, político e literário pertinente à sua época. Nesses mesmos poemas, o poeta se inclui no eu lírico, mesclando-se às “vozes” dos textos. Apesar disto, “o autor pode aparecer em seu texto (...) mas de modo algum sob a espécie de biografia direta”( BARTHES, Roland: 1977, pág.72)

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I-Os Dois Poemas de Drummond e a Semiologia

“Consideração do Poema” e “Elegia Transitiva” são dois poemas que se afiguram propícios à interpretação e, conseqüentemente, às investigações semiológicas. Considerando-se que a interpretação se dá pelas semelhanças e diferenças que os textos apresentam, podem-se detectar, em ambos poemas, pontos de contatos e divergências. Tanto “Consideração do poema” que aparece publicado em A rosa do povo (1945) quanto “Elegia Transitiva” publicado em A falta que ama (1968), se aproximam por sua temática: a viagem. Viagem que é tratada num sentido de corrosão, desgaste e consumição inevitável diante da vida. Em “Consideração do poema”, observa-se que o “eu” parece reter em si o tempo presente:

Os temas passam,

eu sei que passarão, mas tu resistes,

e cresces como fogo, como casa,

como orvalho entre dedos,

na grama, que repousam,

Em “Elegia Transitiva”, o eu lamenta a perda de um tempo que a julgar pelo questionamento, parece irrecuperável:

lugares onde

se

quando

habitavas um tempo

e a cidade era teu anel escolar.

Onde habitas agora, como

Saber tuas jóias errantes?

Em “Consideração do poema”, o eu empreende uma viagem através do tempo, ora pretendendo segurá-lo, ora buscando recuperá-lo:

Essa viagem é mortal, e começá-la

Saber que há tudo. E mover-se em meio

a milhões e milhões de formas raras,

secretas, duras. Eis aí meu canto.

O motivo da poesia é, declaradamente, essa viagem que, ao longo de seu desenvolvimento, assume certo tom de amargura, de distância e de perda irreparável, nele “Apaga-se o conhecimento” e até a existência.(“Elegia Transitiva”). Em “Consideração do Poema”, o eu lírico declara que o seu canto, melhor dizendo a poesia, tem como principal preocupação o tempo e o seu inevitável transcorrer. Aliás, deve-se observar que o poema está inserido em A rosa do povo, livro que reflete o pós-guerra, o seu desencanto e que se caracteriza por uma “poesia de participação onde o poeta (...) adepto de uma integração mais ampla que abrange vários níveis, mas sempre com o seu modo peculiar de ver as coisas”(SANT´ANNA, Affonso Romano: 1977, pág.70). Trata-se de uma obra sincrônica e, concordando com Barthes, deve-se admitir que, nas obras modernas, “A desconstrução da língua é cortada pelo dizer político, (...) e a história permanece no entanto legível”(BARTHES, Rolland: ibidem, pág.81).

Em “Consideração do Poema”, o questionamento do eu lírico gira em torno de um sentimento de desalento, concernente às devastações do pós-guerra. Por outro lado, torna-se impossível – por mais que se queira – individualizar o eu lírico e seu autor. E, de fato, em 1945 Carlos Drummond de Andrade estava deixando a chefia do gabinete de Gustavo Capanema, onde atuara desde 1934, refletindo-se, quem sabe, as vivências destes momentos nos desencantos daquele período que sobrevivia às dificuldades da Segunda Guerra Mundial. Também “Elegia Transitiva”enfatiza os reflexos de uma sociedade massacrada pela industrialização, pelos conflitos diários e pelo estrangeirismo que predominava no país. A figura do brasileiro torna-se minorizada e o eu lírico, num tom de ironia, característico do poeta em questão, questiona:

Quem és tu, que embarcas

Num jato de olvido e chegam postais em mexichrome

com o diabo velando na torre de Notre Dame?

Estes aspectos voltados para o contexto social aparecem em ambos os poemas e justificam a teoria marxista segundo a qual “há um vínculo entre a produção do texto e a sociedade a que pertence o autor”( SANT´ANNA, Affonso Romano: 1977, pág.21). Tal literatura exige também a participação der um leitor consciente e avisado, um indivíduo semelhante àquele a quem Barthes aludiu, referindo-se a si mesmo:

Cada vez que tento analisar um texto que me deu prazer, não é a minha subjetividade que volto a encontrar, mas o meu indivíduo, o dado que torna meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e seu prazer; é meu corpo de fruição que volto a encontrar. E esse corpo de fruição é também meu sujeito histórico....(BARTHES, Rolland: ibidem, 1977, pág. 70)

Este leitor avisado, desperto para a problemática existencial que o cerca, é indispensável quando se faz uma análise semiológica. E isto torna-se claro, admitindo-se que “Por serem tantas as atitudes possíveis de aproximação e de leitura, impõe-se a mim uma outra escolha – a do gesto adequado --, que implica cortes, destaques de aspectos e, sobretudo esquecimentos.”( SANTOS, Roberto dos: ibidem,1979, pág. 4). A obra de Drummond e, obviamente, os textos em questão, buscam ouvir constantemente o leitor:

Como fugir ao mínimo objeto

Ou recusar-se ao grande?

(“Consideração do Poema”)

O pronome oblíquo te é também empregado de modo a revelar que a mensagem está sendo dirigida a alguém que é capaz de responder:

Tal uma lâmina

O povo, meu poema, te atravessa.

Os textos se referem a uma realidade bem próxima e visível, capaz de revelar um tempo no qual:

a página marítima do Jornal do Comércio;

preço do dólar;

(“Elegia Transitiva”)

e em que as preocupações gerais se revelavam no eu, revelando um inconformismo ao qual não cabia explicação, mas onde proliferavam questões do tipo:

Como aceitar? Quem suprirá o perdido?

Quem permanece igual, se em volta

Os elementos se desintegraram?

E estas questões tomavam lugar através de um

Lento conhecer; obscuro, ter conhecido;

e em nosso museu desapropriado a angústia passeia

altas perguntas sem contestação.

Esta forma de o poeta se posicionar ajusta-se ao duplo papel da literatura à qual cumpre atingir a produção e a recepção simultaneamente. Em outras palavras, “É a literatura produzida e fundamentalmente lida que torna possível qualquer projeto na vida social, qualquer projeto de invasão no conjunto das atividades a partir das quais se formam as estruturas sociais”(SANTOS, Roberto dos: ibidem, 1979, pág. 65). Por outro lado, cumpre assinalar que

L´oeuvre se révèle en tous ses fragments, comme l´expression de la pensée ou de l´expérience ou de l´imagination ou de l´inconscient de l´auteur ou encore des déterminations historiques dans lesquelles il était pris.”(FOUCAULT, Michel: 1969, pág.35).

Os poemas que servem a esta análise revelam as experiências e as ideologias do poeta. Por mais que se procure dissociar o eu lírico do poeta, identificam-se particulariedades que têm muito a ver. Embora o poeta não tenha participado diretamente da Semana de 22, é óbvio que se deixou impregnar, inevitavelmente, pelas idéias que dominavam os modernistas. O eu exige liberdade até mesmo quando afirma:

Não rimarei a palavra sono

com a incorrespondente palavra outono

Rimarei com a palavra carne

Ou qualquer outra, que todas me convêm.

As palavras não nascem amarradas,

Elas saltam, se beijam, se dissolvem,

no céu livre por vezes um desenho,

são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

(“ POEMA?)

Outra característica do modernismo é, sem dúvida, o espírito de brasilidade que se revela num momento de mudança quando o eu declara com sentimento:

Estes poemas são meus. É minha terra

e é ainda mais do que ela. É qualquer homem

ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna

em qualquer estalagem, se ainda as há

(...)

Se bem os poetas brasileiros o influenciem,

(...)

Furto a Vinícius

Sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo,

(...)

Que Neruda me dê sua gravata

chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski,

(...)

São todos meus irmãos, não são jornais

nem deslizar de lancha entre camélias;

é toda minha vida que joguei.

(“Consideração do poema”)

Estas alusões remetem à vida pessoal do autor e tanto é assim que, num dado momento, o eu lírico alude ao incidente da pedra no meio do caminho. O incidente que repercutiu em referências pejorativas e que magoaram profundamente a sensibilidade de Drummond, dadas as críticas que advieram da publicação do poemas na Revista de Antropofagia em São Paulo, teria também alusão sofrida em Confissões de Minas quando o autor declara:

Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais.” (ANDRADE, Carlos Drummond: 1973, pág.747).

Também no negativismo que se revela em certas passagens de “Consideração do Poema” ou em “Poema das Sete Faces”, Chaplin se revela o protótipo de uma resposta irônica e de interligar literatura e psicanálise. Aliás,

Pour que la psychanalyse puisse parler, il faut qu´elle puísse s´emparrer d´un discours autre, d´un discours un peu gauche, (...) le discours psychologique. Ce serait en somme la fonction de la psychologie que de se tendre comme un bon objet à la psychanalyse(BARTHES, Roland: ibidem, pág. 153)

A angústia volta a predominar nas produções drummondianas , ora através do eu lírico que afirma:

e em nosso museu desapropriado a angústia passeia

altas perguntas sem contestação.

(“Elegia Transitiva”)

ora caracterizando o próprio poeta que, consciente do seu fazer poético, se auto-define:

Poeta do finito e da matéria,

Cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,

Boca tão seca, mas ardor tão casto.

(“Consideração do Poema”)

Em outros poemas, ao longo da obra, o eu lírico de Drummond revela um sentimento de completa tristeza e angústia. É o caso de “Explicação” , no qual há uma referência bem clara ao pranto durante uma “noite inteira chorando”. Retornando a “Consideração do Poema”, reconhece-se a presença de um eu , entristecido pela perda de um tempo melhor que o do presente, um tempo que, em outro momento poético, procura resposta para o que parece inexplicável:

Viajar é notícia

De que ficamos à sós à hora de nascer?

(“Elegia Transitiva”)

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Carlos Drummond de – Nova reunião Rio de Janeiro: José Olympio, Vol. I, 1987.

----------------- Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.

BARTHES, Roland- Le dégré zero de l´écriture. Paris: Editions du Seuil, 1964.

______________ - S/Z . Paris: Editions du Seuil, 1975

______________- Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Editions du Seuil, 1975

FOUCAULT, Michel- L´archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.

SANT´ANNA, Affonso Romano de- “O Escritor e io Leitor” crônica publicada em Jornal O

Globo, 17/3/91

_______________- Carlos Drummond de Andrade: análise da obra, Rio de Janeiro:

Documentário, 1977.

SANTOS, Roberto dos- “O texto de Clarice em exame” Rio de Janeiro: PUC : tese defendida

em 1977.

__________- Para uma teoria da interpretação. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

TELES, Gilberto Mendonça & outros- “Cadernos da PUC” Rio de Janeiro: Série Letras e

Artes, caderno no 28, 1976

Regina Souza Vieira
Enviado por Regina Souza Vieira em 06/02/2008
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