A Mulher de Deus

E pousará no coração da América num claro instante.

Um Índio

(Caetano Veloso)

Na universidade aprendi que, muitas vezes, é preciso alguém de fora, de outra cultura, com outra visão, que nos questione para podermos pensar melhor, para pensarmos sobre o que nunca pensamos. Às vezes é preciso alguém que pouse de uma estrela colorida e brilhante.

Foi um índio cree canadense que parou na minha frente , com seus cabelos compridos e um jeito feminino, e perguntou:

- Onde está a mulher de Deus?

Fiquei parado com a pergunta, inesperada e sem resposta.

Neste caso foi um índio canadense, da tribo dos cree, que tendo feito doutorado, escolheu a área da mitologia para desenvolver. Sua tese foi sobre a comparação das mitologias ocidental e oriental, grega e indígena. Já foi surpreendente pensar em nossas crenças religiosas como sendo apenas uma mitologia. E ele foi além. Explicou que nossa mitologia é hierárquica e masculina. Nosso ser superior é homem e ocupa o topo da importância divina. O primeiro ser que ele resolveu colocar no paraíso foi um homem, criado a partir da essência da Terra, o barro. Apenas por estar necessitado, este homem teve sua costela extraída e dela criou-se a primeira mulher, um subproduto, que veio para servir este homem necessitado. Não importa que estas figuras sejam simbólicas para os menos radicais religiosos. Esta é a mitologia preponderante na cultura ocidental. Contamos que numa época, nosso ser supremo mandou seu filho – homem – para nos salvar. Mas, a mãe do filho de Deus é imaculada. Maria é mulher carnal de José, mas não teve sexo com ele para produzir o filho de Deus, foi concebida por um espírito santo. O sexo é eliminado da mitologia divina, sendo considerado pecado.

Diferentemente, a mitologia grega estabelece casais entre os seus deuses. Zeus é esposo de Hera e assim por diante. Alguns deuses têm conjunção carnal com humanos e Hércules, por exemplo, é filho de um deus com uma humana. A mitologia ainda é hierárquica. Sexo não é pecado, pois os deuses o praticam. A mulher tem tanta importância quanto o homem.

A mitologia indígena é não-hierárquica. Todos os deuses têm a mesma importância. E os deuses são inúmeros. Deuses das árvores, da água, das pedras, masculinos, femininos ou hermafroditas, que se reúnem em um círculo. Nesta cultura, as pessoas quando morrem passam simplesmente de dentro do círculo para fora e vão fazer parte da reunião divina. Sexo não é pecado para eles, mas faz parte do processo natural, do círculo da vida. Não há a menor distinção entre homem e mulher.

E o índio analisou e escreveu sobre as conseqüências de cada mitologia sobre seus povos. Sobre o que representa a hierarquia para cada uma dessas civilizações, sobre como o poder ali se distribui, sobre o papel da mulher em cada uma delas, sobre as conseqüências do pecado, sobre o respeito pela natureza...

Até hoje estou pensando: onde está, afinal, a mulher de Deus?