Aspectos de um Admirável Mundo Novo

Aspectos de um Admirável Mundo Novo*

Nelson Samuel Porto Veratti

Os avanços tecnológicos e científicos têm sido vultosos. O homem é totalmente absorvido pela sedução ocasionada pela descoberta, sobretudo quando seu poder de dominação sobre o real aumenta enormemente. Com isso, parece se inscrever no horizonte o despontar de um mundo novo. Este mundo é ainda indescritível, mas em vista das configurações da nossa realidade contemporânea, pode muito bem ter sido prefigurado na arte.

A leitura de algumas obras teóricas e outras ficcionais, juntamente com a observação das condições atuais de vida, mostra-nos que o capitalismo gerou situações e condições que agridem cada vez mais o espírito do homem, quando, na verdade, deveria servir-lhe no aprimoramento da vida; o socialismo, por outro lado, foi minguando até permanecer, apenas, como ideologia na mente de alguns, já que o seu poder sucumbiu à abertura dos mercados.

A sociedade atual vive sob o efeito de uma hipnose coletivo-induzida que sustenta a máquina produtiva do capitalismo. A geração e o consumo do supérfluo, o poder do dinheiro e a conseqüente exacerbação do materialismo são fatores que ampliam o abismo entre as camadas sociais. Estas verdades têm como maior exemplo os Estados Unidos e a discrepância da sua riqueza e poder sobre o resto do mundo.

O poderio econômico somado aos avanços surpreendentes da tecnologia e à desmedida ambição do homem moderno alimenta os pensamentos mais extraordinários. Enquanto os poderosos arquitetam as mais variadas esquisitices, a arte as realiza em seus mundos fictícios. Assim, aos mortais cabem as perguntas: a ficção imita a realidade ou vice-versa? As obras de ficção são vaticínios que se apóiam sobre as potencialidades da ciência e da tecnologia ou o mundo atual inspira-se nas obras de ficção? Os livros Admirável Mundo Novo e 1984 e o filme Inimigo de Estado são inspirados ou inspiradores?[1]. Enfim, de quem é o mérito das idéias geniais? Estas perguntas comprovam aquele lugar-comum: às vezes, a vida imita a arte.

Sob esta atmosfera, nós refletimos acerca de alguns aspectos da obra Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, tentando analisá-la ao abrigo de teorias psicanalíticas e sociológicas que corroboram o seu caráter verossímil. Apesar de se tratarem de especulações, acreditamos no crescimento e no amadurecimento do homem a partir de algumas reflexões filosóficas.

I. Freud, Marcuse e Huxley

Algumas pessoas conseguem entrever os prejuízos causados pela voracidade capitalista em nossos dias e sabem que o atual estado de coisas e sua necessária mudança dependem de inúmeros fatores. Entre eles, o principal agente é o homem esclarecido, sendo que seu esclarecimento depende de si mesmo, como defendia Immanuel Kant [2]. Entretanto, cada vez mais, há uma profusão de condicionamentos nocivos ao espírito, até mesmo nos projetos educacionais que grassam por aí [3].

Diante disso, os agentes catalisadores de uma reviravolta não seriam os operários ou os povos dos guetos, como pretendia Karl Marx. Óbvio que sua esperança residisse nessas pessoas vitimadas pela exploração e que viviam distantes das benesses do capitalismo. Mas, os tempos são outros: os tentáculos do sistema capitalista estão devidamente estendidos sobre quase todos os recantos do planeta, o que torna inviável uma revolução pela eficiente dominação de seus possíveis deflagradores. Esta realidade não nos é estranha, visto que nosso povo é cada vez mais explorado e eficientemente dominado por fatores condicionantes: música de péssima qualidade, programas televisivos medíocres e apelativos, costumes e modas alienantes. Juntando-se a isso um sistema de ensino que “sai do nada e leva a lugar nenhum”, resta pouco para a extinção da Razão e do Esclarecimento [4].

Tais descalabros têm a conivência e o incentivo de instituições de ensino e de governantes: estes exultam com as novas vítimas da sua retórica persuasiva, aqueles não exigem demais para não espantarem os cifrões. Por isso, o agente histórico tão sonhado por Marx está em extinção e os poucos que ficam parecem exauridos.

Quando nos interamos das propostas socialistas, vemos que as sugestões envolvem a criação de um novo indivíduo. Herbert Marcuse, por exemplo, partia da reestruturação moral, política e estética do ser humano. Para ele, especialmente o radicalismo moral é que recondicionaria o homem para a liberdade. Estas mudanças radicais atingiriam, segundo ele, a dimensão biológica e modificariam o comportamento orgânico [5]. Talvez, estas observações tenham despertado o seu interesse sobre a teoria de Sigmund Freud acerca da formação da civilização, sendo a obra marcusiana Eros e Civilização uma interpretação filosófica das teorias freudianas expostas em O mal estar na civilização.

Pois bem, nossas reflexões inclinam-se sobre as teorias expostas nas obras citadas de Freud e Marcuse e convergem na análise do mundo fictício criado por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, com a presunção de sondar os abusos que se ocultam sob as falácias de um sistema desumano.

A leitura de algumas obras de Huxley foi suficiente para apreender uma parcela da sua intensidade filosófica. Os mundos criados por ele são críticas contumazes e pertinentes de um mundo caótico que caminha para a autodestruição. Não que ele tenha pregado os ideais marxistas ou as teorias freudianas, pelo contrário, ele as criticou com propriedade.

Os caminhos trilhados pela humanidade e o desmantelamento dos últimos países socialistas projetam-nos a uma realidade muito mais próxima do “admirável mundo novo” do que da sociedade idealizada por Huxley na ilha de Pala [6]. Portanto, o papel de agente histórico, nestes tempos de dominação completa do capitalismo, cabe aos homens esclarecidos, fraternos e solidários que ocupam funções e papéis que lhes permitam formar novas mentalidades para o futuro.

II. A liberdade e a felicidade humana

Desde o prefácio de Admirável Mundo Novo, Huxley já revela algumas particularidades que se aproximam das teorias de Marcuse. Sua preocupação para com a liberdade e a felicidade humana esconde-se entre as críticas feitas aos sistemas totalitários e seus meios de repressão que são levados ao extremo sob os recursos da ciência e da tecnologia, enquanto Marcuse discute sobre a servidão humana como fruto de uma excessiva revolução mental patrocinada pelos sistemas totalitários e denominada mais repressão [7]. O processo que conduz a esta servidão progride na mesma proporção que o desenvolvimento da civilização [8].

A inquietação destes intelectuais vem, justamente, da subjugação psicológica acarretada pelo uso dos recursos repressores que geram efeitos destrutivos sobre o aparelho mental dos indivíduos, além deste domínio psicológico levar os homens a amarem sua servidão e a tornarem-se alienados [9]. As pessoas, assim, seriam conduzidas por pensamentos e intenções alheias à sua própria liberdade. Esta condução humana se faria pelos métodos científicos de sugestão (lavagem cerebral, persuasão química e subconsciente e hipnopedia).

Huxley e Marcuse, privilegiados pelas descobertas freudianas, puderam perceber os novos aspectos da alienação humana e observaram a face mais oculta da repressão: aquela que se esconde por detrás da gratificação compensativa. Com as descobertas de Freud sobre o funcionamento do aparelho mental e suas teorias sobre o princípio de prazer e o de realidade - formadores da civilização -, os governos subseqüentes parecem ter encontrado os meios definitivos para o controle social: o funcionamento do sistema se coaduna ao funcionamento psíquico e tudo parece natural ao homem. Este recebe compensações pelas suas renúncias, o que lhe confere certa sensação de liberdade e felicidade que o dissuade de qualquer reivindicação de caráter revolucionário [10].

A relação dialética entre a renúncia humana e a sua compensação tem início nas principais camadas do aparelho psíquico, nomeadas por Freud como id, ego e superego. Não nos cabe, no momento, a explicação pormenorizada de cada uma destas instâncias, mas podemos ter uma vaga idéia sobre elas observando as palavras de Herrmann: “O id supre energia libidinal, que o ego, autorizado pelo superego, transforma em pensamentos conscientes, projetos, ações a serviço dos fins instintivos, de maneira adequada à realidade”[11].

A transformação da libido em ações que se ajustam à realidade é o ponto inicial do processo civilizador [12]. Os instintos totalmente satisfeitos levariam ao caos, mas a energia destes instintos, racionalmente direcionada, promove a civilização. Por outro lado, a severidade exigida pelo princípio de realidade impede a liberdade e a felicidade humanas [13].

III. A repressão no mundo novo

As noções de liberdade e felicidade, surgidas da especulação freudiana e marcusiana, levaram-nos à observação destes conceitos no mundo fictício do Admirável Mundo Novo. A civilização projetada por Huxley vive o ano de 634 d.F (depois de Ford [14]). Dela aboliu-se a viviparidade e os indivíduos são originados em proveta, frutos de uma escolha rigorosa dos genes, de um conveniente tratamento químico durante a fase embrionária e de uma formação psicológica que se estenderá por toda a vida, desde o berçário. Neste ponto, Huxley usufrui as descobertas na área da psicologia. Além dos bebês serem cruelmente condicionados nas “Salas de condicionamento neopavloviano”, segue uma série de condicionamentos psicológicos eficazes, destacando-se a hipnopedia. Deste processo científico, surge a hierarquia social (funcional) do admirável mundo novo: alfas, gamas, betas, deltas, ipsílons e os grupos Bokanovsky de semi-aleijões[15].

Através desta formação psicogenética condicionada, extinguiu-se a família (pai e mãe)[16], a religião, a história, a monogamia e, sobretudo, as emoções. O indivíduo sem estes vínculos emocionais é estável e a sua estabilidade conduz à estabilidade social, objetivo supremo da civilização do admirável mundo novo[17]. Quando algum fator ameaça o equilíbrio individual, é consumida uma droga chamada “Soma” que restabelece o controle psíquico sobre a situação[18], representando a fuga protetora contra a súbita manifestação de pensamentos que são abominados pelo sistema.

Salvos estes aspectos, que consideramos serem formadores de um superego sui generis e modeladores das outras instâncias do aparelho psíquico, atentamos ainda para as características da sexualidade nesse curioso mundo. Nele a sexualidade é estimulada desde a infância através das brincadeiras eróticas e a promiscuidade é moralmente obrigatória. Esta realização parecia ser a aspiração de Marcuse para a consecução de uma sociedade não-repressiva, pois, enquanto Freud estabeleceu o contraste entre liberdade e felicidade e entre sexualidade e civilização como sendo um produto da natureza humana, Marcuse defendeu a tese de que este contraste existe como produto de instituições sociais específicas construídas durante o desenvolvimento humano sob o interesse de dominação.

Para Marcuse é aceitável certa dose de repressão no estabelecimento da civilização, mas houve um excesso de repressão para a manutenção desta civilização. O princípio de realidade sofreu imposições em função dos interesses desmedidos de produtividade capitalista e transformou-se em princípio de desempenho que exige a mais-repressão para se manter.

A repressão das energias sexuais acentuada na supremacia genital, na monogamia e no trabalho alienado é considerada desnecessária pelo filósofo frankfurtiano. Ele defende a libertação das renúncias e a liberação da sexualidade “para que o homem se liberte”[19], ao passo que Freud nos diz que seriam imprevisíveis os caminhos tomados pela civilização se abolíssemos a família e permitíssemos “a liberdade completa da vida sexual”[20]. Entretanto, estes aspectos são observados na civilização do Admirável Mundo Novo, embora de forma um pouco distinta.

Apesar da brevidade desta exposição, pode-se observar que Huxley operou algumas mudanças na teoria freudiana a fim de produzir uma sociedade equilibrada, embora esta tenha se sujeitado a uma outra forma de organização repressiva que, de certa maneira, intuímos como subjacente em nossa civilização. Esta subjacência constitui, para nós, um dos interesses pela obra, visto que o que difere a nossa civilização da ficção de Huxley parece ser uma questão de transparência: no mundo novo não se oculta o condicionamento e suas intenções, enquanto em nosso mundo o condicionamento disfarça-se nas entrelinhas da educação e da cultura de massa que alienam cada vez mais.

Neste ponto, para alguns, otimismo seria crer na concepção cíclica de história estabelecida pelos gregos e, conseqüentemente, no retorno a uma Idade de Ouro para a humanidade. Por outro lado, o realismo apreendido nas ações humanas nos projeta a uma forma irônica de permutação histórica: o mundo se alternando entre o excesso de repressão e o excesso de liberdade, sendo que um parece levar ao outro como se fosse o capricho de uma força oculta operando simultaneamente nas instâncias psíquicas (id, ego e superego) e nas esferas sociais (principio de desempenho).

Desse modo, fica-nos a sensação de que a realização de um mundo onde reine a justiça, a igualdade e o bem estar social - condições que proporcionam dignidade ao ser humano - só é possível na arte, que nesse ponto não é imitada pela vida. Porém, sondar as utopias e sopesá-las é uma das maneiras de nos orientarmos na direção de um ideal. Nem que este ideal nos alimente eternas utopias, afinal de contas, a esperança é a mais humana das virtudes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, in Obras Completas, ESB, Vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1974.

HERRMANN, Fábio. O que é Psicanálise, 13ª edição, São Paulo: Psique, 1999.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo, 18ª edição, São Paulo: Ed. Globo, 1993.

___. A Ilha, 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

___. Regresso ao Admirável Mundo Novo, São Paulo: Hemus, 1959.

KANT, Immanuel. Textos seletos, Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.

MACINTYRE, Alasdair. As idéias de Marcuse, São Paulo: Cultrix, 1973.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização, 6ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

___. Um ensaio sobre a libertação, Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.

ORWELL, George. 1984, 18ª edição, São Paulo: Editora Nacional, 1984.

Revista VEJA, edição 1779, nº 47, 27/11/2002.

NOTAS

* O presente ensaio foi um dos que produzi durante o curso de Mestrado em Teoria e Crítica literária na UNICAMP, cujo objeto de estudo foi a obra Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A dissertação foi defendida em fevereiro de 2007 e encontra-se disponível no site do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, Campinas, SP.

[1] A última criação dos EUA é o Departamento de Segurança Interna: invadem as vidas dos cidadãos norte-americanos, por meio de alta tecnologia, em busca de possíveis terroristas. Algo bem parecido com o mundo fictício de 1984 e Inimigo de Estado. (Ver artigo “O grande irmão americano”, Revista Veja, nº 47, p.97).

[2] “Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo.” ( KANT, Textos seletos, p.100.).

[3] O governo do Estado de São Paulo começou a implantar o Ensino Técnico nas escolas públicas estaduais. Por trás da fachada de boa iniciativa, há a perversa manutenção da hierarquia social: as públicas produzem empregados e as particulares, patrões.

[4] “Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar” (ORWELL, 1984, p.53).

[5] Cf. Herbert MARCUSE, Um ensaio sobre a libertação, pp. 22 e 23.

[6] Cenário do livro A Ilha, que é considerado uma antítese do Admirável Mundo Novo. Nela, materializam-se os sonhos de liberdade e felicidade humana: reverência pela natureza, amor livre, respeito às diferenças individuais, religiosidade sem dogmas etc.

[7] A partir de um conceito freudiano de repressão como determinante do processo civilizador, Marcuse estabelece o conceito de “mais repressão” como formas repressivas adicionais, instauradas pelos novos interesses de dominação.

[8] O conceito de civilização utilizado por Marcuse é haurido de O mal-estar na civilização, de Freud.

[9] “Tal é a finalidade de todo condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar” (HUXLEY, Admirável mundo novo, p.14).

[10] “O povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre (...) Não faz sentido falar sobre libertação a homens livres...” (MARCUSE, Eros e Civilização, p.14).

[11] O que é Psicanálise, p. 70.

[12} Corresponde à transformação do princípio de prazer em princípio de realidade.

[13] “Se a ausência de repressão é o arquétipo de liberdade, então a civilização é a luta contra esta liberdade”. (MARCUSE, Op. cit, p. 36).

[14] Sinal de reverência a Henry Ford. “Nosso Ford – ou nosso Freud, como... preferia ser chamado sempre que tratava de assuntos psicológicos...” (HUXLEY, Op. cit., p.35). A recorrência a esta figura deve-se ao fato dele ter criado a produção em série e ter intensificado a automatização que, no caso do mundo novo, constitui um dos fatores que mantém a estabilidade social.

[15] Este grupo é o extremo da padronização do produto humano: noventa e seis gêmeos idênticos fabricados com o mesmo ovário e os gametas do mesmo macho.

[16] “Nosso Freud (Ford) foi o primeiro a revelar os perigos espantosos da vida familiar”. (HUXLEY, Op. cit., p. 35).

[17] “Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade individual” (HUXLEY, p.39).

[18] “Podem proporcionar a si mesmos uma fuga da realidade sempre que o desejarem...” (Ibid., p. 52). Estas observações de Huxley sobre o Soma coincidem com a opinião de Freud acerca dos métodos químicos de influência psíquica: “Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois se sabe que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade...” (O mal-estar na civilização, pp. 96-97).

[19] Ver Alasdair MACINTYRE, As idéias de Marcuse, pp.53-54.

[20] FREUD, Op. cit, p.136.