Homossexualidade

Estive percorrendo a discussão instigante sobre homossexualidade. O babado tem estado fortíssimo, insuflado pela tramitação da Lei Federal que criminaliza a homofobia. Aí fica aquele ping e pong polarizado - os "cristãos" argumentando com todo o arsenal pseudo-moral: "é uma agressão à liberdade de expressão e religiosa" - tudo embasado biblicamente em qualificações irrefutáveis de aberração ou prática anti-natural. No pólo oposto, os GLS argumentam a partir dos direitos humanos, revindicando uma compaixão meio choramingas, meio ressentida, agressiva e não menos apelativa - homofobia é então conceituada como crime contra os direitos humanos e a revanche raivosa toma a cena.

Ah! A velha solidão de quem não encontra sentido na polarização tão cara às massas: o banal maniqueísmo do bandido vesus mocinho. Se houvesse um pouco mais de disposição para o silêncio e a reflexão, ficaria claro que o bandido tem um pouco, ou um muito, de mocinho e vice-versa. A solidão é uma exigência cada vez mais acentuada na vida de quem não foge à meditação sobre a morte e a impermanência.

Mas voltando ao foco, a ferida sangra quando a discussão dos "entendidos" descamba para tipo assim: " ... não creio que a comparação zoofilia, necrofilia, pedofilia caiba no caso da homossexualidade. Afinal esta nada mais é do que amor; e as outras são mera violência. Não dá para falar em pedofilia da mesma forma que falamos em homossexualidade. Os balaios são outros." A bem da verdade, pedofilia ocorre tanto no campo da hetero quanto da homossexualidade. Convenhamos que trata-se de uma noção de sexo bem moderna, alheia aos monstros dos pântanos atávicos da sexualidade humana. A modernidade prima por apresentar a sexualidade profilática, asséptica, esteticamente afinada, performática e muito, muito sempre romântica e amorosa. Bom seria se assim fosse; que a sexualidade fosse bem domesticada e obediente. Na verdade, ela é doce e amarga e não se pode vacilar: Eros espreita o momento de tomar de assalto a consciência e a autonomia de quem brinca com ele.

Em outros tempos, a sexualidade não se escondia sob tantos véus. No caso da homossexualidade, seu conceito - atenção, não estou dizendo "pré-conceito", essa palavra tão batida na modernidade - estou me referindo a conceito historicamente construído, tipo um pós-conceito -, pois bem, em outros tempos, a homossexualidade esteve ligada à prática renitente e repetida da violência, inclusive contra crianças. Calma!, não se trata de pedofilia, este é um conceito pós-cristão, já que na época de Cristo, a lei imperial romana tolerava, sem qualquer escrúpulo, a venda de crianças em mercados de escravos, em função da garantia do proveito sexual aferido pelos ricos e respeitáveis pater familiae romanos e suas matronas - daí que soam bem menos sentimentalóides as palavras evangélicas em defesa das crianças, aquilo de "deixai vir a mim as criancinhas". Ora, numa sociedade que privilegiava a força e o poder, criança não tinha cotação. Assim que o escândalo, hoje provocado pela pedofilia, é uma construção histórica da moral cristã. Da mesma forma, na Antiguidade, não se tem notícia de sanções morais à castração de crianças - da Pérsia à Índia (nesta última, há eunucos até os dias atuais).

A antiga legitimidade da transformação de crianças em eunucos para satisfação da libido dos poderosos sodomitas no mundo ocidental se constitui em golpe mortal na alegação dos GLS em favor da admissão da liberdade de escolha da orientação sexual, tema tão caro aos politicamente corretos de nossa sociedade humanista pós-cristã. Assim que a reação contra a homossexualidade, por parte dos antigos judeus, é muito compreensível; esse povo nômade e tribal vivia fugindo dos trabalhos forçados, violentamente impostos a povos nas mesmas circunstâncias, ou seja, carentes de organização estatal e tecnologia de guerra confiável - portanto vulneráveis a castrações, rapto e violação de suas poucas mulheres. Desde aquele tempo, e especialmente naquele tempo, mulher em abundância era coisa de bacana. Esse povo e suas poucas mulheres enfrentava, diuturnamente, a ameaça de extinção. Como se vê, a sodomia, no contexto de tal povo, era mesmo uma aberração, bota fé? E o sodomita era mesmo visto como o protagonista da indesejável aberração, pois ele era o que se deitava com outro homem, como se fosse mulher: o comando proibitivo era imposto ao primeiro, o ativo, normalmente aquele que havia usado de violência, e não sobre o segundo, o passivo e, no caso, a vítima*. Detalhes que passam desapercebidos pelos pregadores e lamentavelmente, também, pelos GLS. Assim como as doenças sexualmente transmissíveis, que eram, na Antigüidade, verdadeiras catástrofes; não havia mais a fazer do que matar e queimar o doente (é preciso atentar para o fato de que o controle epidêmico era então inexistente).

Portanto, se aquela perspectiva fosse levada em consideração na defesa moderna do direito de "optar" pela homossexualidade - e hoje pode mesmo ser uma escolha, não é? -, bem, então, em tal caso, a defesa da homossexualidade ficaria menos choramingas, com histórias de traumas, de coitadinhos e todo um discurso desfocado. Da mesma forma, os moralistas seriam confrontados com uma argumentação que lhes poria diante de seu fundamentalismo, muito mais efetiva que as costumeiras lamentações improdutivas e muito individualistas (aliás, em nossos dias, o individualismo tudo pode). Quanto aos moralistas cristãos, não dá prá ficar esbravejando contra todos. Muito pouca gente sabe da existência de grupos de homossexuais cristãos; tenho notícias de um no seio de uma Igreja bem tradicional, a anglicana. Então, a moral seria alçada à sua função precisa e respeitável, qual seja, exigir comportamento digno de casais tanto homo quanto hetero.

Há resquícios de machismo romano em nossa brasilidade, do tipo o homem pode sair por aí com o seu falo exercendo poder sexual sobre todos e tudo, enquanto a mulher tem que casar virgem; isso não é moral, é hipocrisia. Agora, o contrário, a mulher sair distribuindo, também não é justificável, é uma revanche. O correto mesmo seria ao homem se exigir casasse, ele também, virgem e que respeitasse as mulheres pobres e etc. Isto se chama castidade, que não se confunde com ausência de exercício da sexualidade. Antes trata-se de uma sexualidade limitada ao respeito e compaixão. Bom, mas isso é o que precisa ser considerado como moral prá valer e a serviço dos que aceitam um código moral como escolha de vida e busca da felicidade. Não é imposição a quem não aceita freios.

Mas não percamos o foco - a perspectiva da construção histórica do pós-conceito de homossexualismo poria fim ao pavor aos preceitos bíblicos, já que foi exatamente a postura bíblica, naquele momento em que as pessoas viveram a realidade para a qual os preceitos foram dirigidos, que humanizou o panorama da homossexualidade, desbastando a prática da violência a que estava atrelada para frutificar em virtualidade de ternura, passível de prosperar numa significativa maneira de casais, bem decentes, viverem seu amor de iguais. Detalhe importante: o esclarecimento histórico abriria espaço para o diálogo entre os contendores na cena do debate, além de abrir espaço para a aproximação dos homossexuais à vida religiosa com dignidade, especialmente aqueles, e eu conheço um bocado, que têm afinidades espirituais com algumas religiões tradicionais. Parafraseando a Rita Lee: sexo é debate, amor é diálogo.

E quanto às zoofilias, sado-masoquismo e outras práticas, seja de ordem performática ou por diversão e prazer (ainda que pouco compreensível para os que não são chegados a uma experimentação da sexualidade genital e preferem a vivência da sexualidade afetiva, que inclusive é expansiva aos filhos, netos e etc. - e não estou aqui sugerindo qualquer incesto -, do pouco contato que tive com pessoas envolvidas com essas práticas, observei, para minha profunda tristeza, devido a ter amado alguém afim a tais condutas e não saber como lidar com essa realidade, momentos de depressão e agonia, uma coisa que não me parecia exatamente prazer ou felicidade, mas enfim, não vamos cair nas subjetividades), a impressão que guardei é que este tipo de preferência, que deveria proporcionar prazer ou que era justificada pelo prazer, parecia trazer também perturbação, confusão, angústia. Vai saber...

O fato é que hoje estamos muito longe das idiotias sexuais registradas em literatura do começo de nossa era, a exemplo de Satiricom. O sexo pagão de então era mesmo pauleira e generalizado. A gente não sabe mais o que é isso, a sexualidade moralizada resultou humanizada, abrandada: tomou contornos de suavidade, em contraste com a maneira de vivenciar o sexo na Antigüidade. O romantismo é uma construção cultural e religiosa do Ocidente e bem recente, data do século XII. Vejam a Ilíada, em que a guerra é uma metáfora para o combate sexual, o atrito dos corpos.

Mas o fato é que homossexualidade pode ser tipo papai e mamãe, ops, papai e papai ou mamãe e mamãe e pode ser monogâmica também. Enfim, é sexualidade humana, com todas suas variações. Assim como, quanto a mapas astrais, acredito que os homo têm direito a toda a variedade das mais de trinta mil combinações mapeadas, tanto quanto os hetero.

Vale colocar um pouco de poesia de Rita Lee sobre o assunto:

"Amor é um livro - Sexo é esporte

Sexo é escolha - Amor é sorte

Amor é pensamento, teorema

Amor é novela - Sexo é cinema

Sexo é imaginação, fantasia

Amor é prosa - Sexo é poesia

O amor nos torna patéticos

Sexo é uma selva de epiléticos

Amor é cristão - Sexo é pagão

Amor é latifúndio - Sexo é invasão

Amor é divino - Sexo é animal

Amor é bossa nova - Sexo é carnaval

Amor é para sempre - Sexo também

Sexo é do bom - Amor é do bem

Amor sem sexo é amizade

Sexo sem amor é vontade

Amor é um - Sexo é dois

Sexo antes - Amor depois

Sexo vem dos outros e vai embora

Amor vem de nós e demora."

* No texto Bíblico, em Levíticos, capítulo 18, temos os comandos proibitivos sempre dirigidos àquele que está na posição de poder, o patriarca, o cabeça da família. A este estão proibidas as práticas sexuais desestabilizadoras das relações familiares e, inclusive, aquelas atitudes voltadas a tomar para si um outro homem como se fora uma mulher. Mais adiante, no capítulo 20, aquelas mesmas proibições são acompanhadas das penalidades que, estranhamente, recaem sobre todos os envolvidos, em posição de poder ou de submissão - haja visto que nos casos de bestialidade, o animal objeto de intercurso sexual devia também ser morto, juntamente com a pessoa envolvida. Tudo indica não se tratar de penalidades embasadas em responsabilidade, mas antes em ações de purificação, ou seja, para banimento da impureza (ou doenças) do meio do povo escolhido.