Entrevista ao Jornal Delírio Cultural - Rio de Janeiro - AGO/1990

     Ele tem a agitação característica de quem está sempre em busca de novas maneiras de viver neste planeta tão maltratado pelo homem. Alargar os horizontes, ainda mais em tempos negros, tal como agora, parece ser o seu objetivo sempre.
Douglas Carrara, 47, trabalha no Banco do Brasil, mas faz desta apenas uma das suas muitas atividades. Paralelamente ele escreve e, como escritor, já publicou inúmeros livros de poesia, poesia independente.
     Como poeta, ele participou do primeiro movimento, pós-ditadura militar, que procurou levar a literatura alternativa à população. Era a Feira de Poesia Independente da Cinelândia.
     "Foi uma experiência inesquecível, tanto para nós, poetas, quanto para quem nos ouvia declamando. Convocamos mais poetas pelos jornais e, numa sexta-feira de agosto de 1980, fizemos a primeira apresentação, que começou às 17 horas e só terminou de madrugada. Ficamos o final de semana todo na Feira. Todos ansiavam por falar e por ouvir, porque vínhamos de uma ditadura onde a manisfestação era castrada".
     A Feira de Poesia Independente chegou a abrigar 101 poetas participantes, constituindo-s num fórum de produção cultural popular importantíssimo, pois levava uma mensagem nova, que não havia nos livros tradicionais e através de múltiplas formas, variando de autor para autor. Durante três anos a 'população flutuante' da Cinelândia pôde conviver com este grupo de criadores.
     - Mas aí começou o processo eleitoral e a Cinelândia começou a ser ocupada pelo movimento político-partidário, pelo movimento sindical e suas manifestações. Em 1982 não tivemos como continuar a resistir àquela avalanche de aparelhagens de som e manifestações seguidas quase todos os dias. Por isso o movimento foi escasseando, até terminar em 1983 - conta Douglas Carrara.
     Tinha de ser encontrada uma nova forma de colocar a poesia à disposição do povo. Uma delas era manter a venda de livros feitos em pequenas gráficas, a baixo custo. A outra era tentar agrupar-se em movimenhtos que mantivessem com a população vínculos mais imediatos, à semelhança da Feira de Poesia Independente. E foi o que aconteceu já a partir de 1984, quando surge o "Projeto Cultural Passa na Praça que a Poesia te Abraça".
     Cada domingo um grupo obstinado de poetas aterrisava numa praça do Rio, principalmente naquelas que não tinham tido contato com este tipo de experiência.
    - 'Depois de muita luta o grupo conseguiu verba junto à Secretaria de Cultura, para manutenção do projeto. Entretanto mais tarde o grupo perdeu o apoio da Prefeitura e o Projeto foi se extinguindo.'
    - 'Em 1986, eu tive de me afastar porque comecei a ter problemas com a minha garganta, assim como problemas com a direção do Banco. Em 1988, o grupo paralisaria suas atividades'.
    Mas não acabava a vontade de criar de Douglas Carrara, de estar sempre procurando ter uma ou mais atividades paralelas às do Banco.
     - 'O meu bom humor, a minha alegria dependem muito do exercício de uma atividade criativa que compense o meu trabalho maçante no banco. Eu tenho que acumular atividades até para agüentar a barra que este país representa na minha vida, na vida da gente. Um país arrasado, dominado, colonizado, explorado. Ainda mais agora com este plano covarde, que está destruindo o pouco que há em defesa da própria população'.
     E a outra atividade a que se dedicou a partir de 1987 foi a construção de uma editora de livros alternativos, que cumprisse o papel que as grandes editoras que controlam o mercado, se negam a cumprir: o de aumentar o leque de títulos oferecidos ao público, possibilitando a entrada de escritores desconhecidos no mercado.
     A Editora Ribro Arte começou a funcionar, inicialmente, na residência de Douglas Carrara, desde 1983, juntamente com sua esposa, Jania Cordeiro. Ele entrava em contato com poetas de todo o Brasil e recebia as obras deles em consignação. Para vender estes títulos, a Ribro Arte passou a editar e enviar para todo o país um pequeno boletim com os nomes dos livros e suas respectivas sinopses. O empreendimento ia bem, a ponto de obrigar Carrara a alugar uma sala para continuar com o trabalho da editora. Até que o preço do aluguel disparou e, logo em seguida, o plano Collor obrigou Carrara a fechar a sala.
     A partir de então, o poeta retornou ao trabalho de pesquisa com a medicina popular, iniciado nos tempos da faculdade, em 1972. Desde então começou a projetar um livro que reunisse todo o trabalho de pesquisa realizado nesta área.
     - Trabalhei com cinco tipos de especialistas: o mateiro, o raizeiro, a parteira, o umbandista e o rezador. Deles eu obtive as informações sobre as plantas e outras substâncias e sobre a maneira como eles a usavam. O livro intitula-se 'Possangaba - O Pensamento Médico Popular', que em tupi, significa medicina nativa. Trata-se de uma análise teórica do ponto de vista antropológico, do pensamento médico popular, da lógica da parteira e do mateiro, de como eles trabalham.'
     Uma boa idéia, um ótimo livro, que não foi aceito pelas editoras por não se adequar aos seus padrões meramente comerciais. Mas Douglas não desistiu ainda e está tentando escrever uma espécie de dicionário de ervas medicinais, feito principalmente a partir de dados colhidos da pesquisa de campo por ele realizada.
Carrara foi recentemente à Amazônia. Ficou morando numa vila bem primitiva, no interior do Pará, no rio Xingu. Lá ele pôde observar de perto a miséria daquela população, a falta de perspectivas, a destruição da floresta por parte das grandes empresas agro-pastoris. E a luta daquele povo pela preservação do açaí, que vem sendo cortado aos montes, para dele ser extraído o mais fino palmito exportado. Viu o que os índios e caboclos chamam de 'a geleira', grandes embarcações pesqueiras municiadas de aparelhos que localizam com exatidão onde está o cardume, capturando-o inteiro, o que já fez diminuir o nível de fecundidade do Xingu.
     - 'Mas ainda sou otimista. Acho que encontraremos solução para cada um destes grandes problemas. Com relação ao Collor, acho que as pessoas já estão conscientes do que ele representa, de qual é o seu projeto, este projeto entreguista, de privatização das estatais, do Banco do Brasil, da CSN, da Petrobrás. Acho inviável a permanência desta política por cinco anos. Porque, se continuar assim, vai ser inflação zero, mas em compensação, vai ser povo zero' - finaliza Douglas.

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1) Publicado no jornal "Delírio Cultural" - Rio de Janeiro - Agosto/1990.
2) Publicado em "Poesias ao Sabor do Vento" - http://www.bchicomendes.com/dcarrara/deli0890.htm