Quando o corpo fala: expressões de gênero em uma nova montagem

Tentando dialogar sobre gênero em Minas Gerais, pesquisamos e conversamos com quem vivencia o sentido contrário da ordem social. No trabalho de buscar personagens, histórias e experiências diferentes, encontramos com um muro de retenção de vozes. Ao olhar para lojas, bares, ruas, supermercados e escolas, vê-se uma expressão maioral dos modelos heteronormativos. A ideia é conversar com os mais estigmatizados pela sociedade e quebrar o fardo de “sujeira social” que indivíduos de orientação e identificação sexual diferentes carregam sobre si. Não foi fácil encontrar transgêneros/travestis/transexuais/drag queens/intersex dispostos a relembrar e contar sobre seu dia a dia.

Thiago Augusto Lopes Machado da Silva, 25, nascido e crescido em Mariana, homem e homossexual, conta sobre sua experiência vivenciando a arte de uma drag queen negra e brasileira. Thiago estuda Letras na Universidade Federal de Ouro Preto e utiliza o espaço acadêmico para estudar e discutir corpo-arte e gênero. Em 2001, quando ainda estava no ensino médio, venceu a Mostra Estudantil de Teatro de Mariana. Também atuou em um projeto que levava às escolas mostras de filmes com temas voltados aos direitos humanos e diversidade étnico-racial, questões de gênero e classe. Com amigas, Thiago, na brincadeira, encontrou Sofia, nome dado ao lado feminino do seu corpo, e a transformou em um ser político e artístico na Universidade. .

Sofia é uma drag queen extrovertida, “caruda”, negra e muito mais que mulher. Thiago nos conta que quando é Sofia não pensa em cumprir apenas a imagem de mulher. A ideia de uma drag queen, diz, é transgredir a figura padrão de gênero, ir além do ser mulher e questionar a política de afirmação sobre os sexos, o que explica a extravagância da personagem. Sofia vê na arte cênica, aprendida com Thiago, uma forma de questionar politicamente a ordem social do presente fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo e as instituições que educam a humanidade a um ideal pré-estabelecido.

Thiago e Sofia fizeram uma performance chamada “O Corpo 70”, onde buscavam dar um giro pela arte na década de setenta e mostrar com o corpo o que a música dizia sobre o cenário brasileiro em época de ditadura política, sexual, racial e filosófica, explorando a relação do performer com o público, os limites do corpo e as possibilidades da mente. O jovem diz que não tem como desvencilhar a arte da política, algo que o leva sempre a questionar o que se faz com o corpo, quais as possibilidades de sua utilização e como o limitamos.

Quando questionado sobre os preconceitos que já experimentou, Thiago afirma que é evidente uma política homofóbica no Brasil, mas também uma sociedade que discrimina a mulher e o negro. Sofia decidiu levar consigo essa luta que traça seu corpo na cor e no sexo. E mostra que na performance há um debate político. O marianense revela que já percebeu mais o preconceito por ser negro do que homem gay e drag queen. Quando questionado sobre a melhor forma de buscar o fim da discriminação, Sofia e Thiago bailam em uníssono querer: respeito e posicionamento político; e cobram movimentação social. Para Thiago, qualquer lugar vira um café filosófico sobre preconceitos. E já passamos do tempo de ficar apenas teorizando as diferenças e não agir para que os direitos sobre elas sejam iguais, afirma.

Reconhecimento

Fomos conhecer o dia a dia de uma transexual aos dezoito anos. D.R., como pede para ser identificada, nasceu em Governador Valadares, vive em São Paulo e trabalha como modelo fotográfica. Nos conta aqui como foi o processo de descoberta de sua sexualidade e as problemáticas em encontrar e identificar-se com um gênero, mesmo sabendo que se via em um corpo estranho. Quando morava no interior e ainda era adolescente, era vista praticamente como uma criminosa, por ser afeminada. Pelo mesmo motivo, pensou ser homossexual, já que a sociedade a julgava assim, e assumiu-se na escola.

O tabu define-se como o inviolável, o sagrado e o intocável. E quem tocá-lo, é considerado um transgressor. A sociedade passa a olhá-lo com estranhamento, por julgar moralmente a sexualidade secreta de cada indivíduo. A sexualidade envolve desejo, afeto, autocompreensão e até a imagem que o outro tem de nós e tende a ser vista por cada um de forma individual, secreta e própria; ela é tecida em todas as redes de pertencimento social. Guacira Lopes, no livro em “Pedagogias da Sexualidade”, publicado em 2007, estuda a educação sexual pelo viés cultural e político transmitidos pelas instituições sociais e diz que a propagação de uma ideia una de orientação sexual – heterossexual – não passa de uma forma de dominação do corpo.

Por ser induzida a se identificar como gay e assumir-se como um, D.R viu-se presa. Mas lembra que não se sentia homossexual. Somente quando experimentou morar em uma metrópole saiu de seu conflito com o corpo. Até então, não podia pensar em transexualidade, pois já era estigmatizada como afeminada e vigiada constantemente, antes mesmo de descobrir-se mulher. A vigilância sufoca a manifestação desembaraçada do gênero, mas não limita o desejo e o interesse de se conhecer. Na capital paulista, ela diz que também há um preconceito, mas algo bem mais leve, por ser um lugar de diversidade cultural.

Sobre oportunidades no mercado de trabalho, D.R não vê seu gênero como barreira e pensa que não existem melhores oportunidades, mas que elas se criam. E completa: hoje em dia, muitas transgêneros levam uma vida considerada normal, aceita por uma parcela da sociedade, “só depende como a pessoa lida consigo”, conclui.

Decidida sobre si e seu corpo, D.R. nos mostra como sua vontade de ser quem realmente é destruiu as barreiras que lhe seguravam. Ela ainda não trocou de nome e sexo biológico, mas faz planos para o futuro. É uma mulher que nasceu menino e lutou para ser reconhecida.

D.R. ainda precisa de uma comunidade politizada para reconhecer que a moral não é algo que exala hormônios específicos de sexualidade, um saber fundado sob o que Thiago insiste em dizer e lutar: respeito. Ela ainda necessita de uma sociedade com educação baseada em um olhar voltado ao novo e diverso.

Diversidade de gênero no Brasil é ainda um tabu, que limita, pressiona e impõe características por vezes não desejadas por quem não se sente como alguém caracterizado pelos padrões. O caráter sagrado do corpo, atribuído pelas instituições sociais e que carregamos hereditariamente, tem construído muros diante a discussão e a execução de novas visões para o corpo. Saber olhar com menos afeição ao poder e domínio sobre as pessoas e ter abertura para mudar o caráter de invisibilidade das perspectivas subalternas é um modo de alterar a ordem e as imposições.

Respeito

Thiago propõe uma sociedade que não apenas pregue respeito e direito a todos, mas que assuma esse papel e torne-o realidade. O Brasil necessita de uma política de mudança e do reconhecimento do diferente, para fazer com que D.R não sinta medo de dizer seu nome, sobrenome, de se mostrar de cara limpa. E para que Sofia não se mostre apenas no espaço acadêmico, mas nas praças, nas festas. Para que quando experimentarmos colocar o pescoço nos espaços públicos e privados e observarmos as pessoas que ali transitam, não filtremos os sujeitos por um modelo sexual único. As individualidades precisam de respeito. Uma rua mais plural na cor, no corpo e no amor.