Caneca furada

Capítulo I:

A música estava em uma altura boa, era uma espécie de jazz instrumental, que se espalhava agradavelmente pelo pub, estava anoitecendo lá fora, as portas estavam abertas, e as luzes do local já estavam acesas. O local continha várias mesas de madeira, e além de lâmpadas espalhadas no centro do recinto havia um belo lustre, e abaixo deste um aquário grande, onde peixes também não pequenos nadavam . O pub ficava no final da cidade, e não era muito frequentado pelas pessoas, seu dono havia herdado o local de seu avô, que morrera em uma morte trágica, e este usava o pub mais para receber seus amigos, sendo que de vez em quando aparecia alguém a mais por ali. O chefe do local preferia assim, sobrevivia de outras coisas, e gostava dali apenas por ser um bom local para passar com aqueles de quem gostava.

Charlie estava atrás do bar, enxugando o copo calmamente, ele estava esperando alguns que havia chamado, havia tido um dia puxado, e agora estava relaxando. O cão era branco de porte médio e usava um chapéu juntamente com óculos escuros. Charlie era um músico, e vivia disso, sendo que desde muito cedo apreendera a tocar piano com os pais, ele gostava do que fazia, e como não tinha uma rotina muito fixa para trabalhar, havia dias em que ele ficava bastante ocupado, e outros como aquele, em que ele podia descansar um pouco. O cão era reconhecido na cidade, e tinha contatos o suficiente para não morrer de fome e até mesmo viver bem. Ele havia marcado com os amigos de virem as oito horas, para conversarem um pouco, já estavam dez minutos atrasados, sendo que sempre faziam isso.

Charlie continuou enxugando o copo quando a porta de faroeste do recinto se abriu, passos leves e difíceis de ouvir puderam ser ouvidos por ele. O cão continuou enxugando o copo mais alguns segundos e levantou a cabeça, a sua frente estava Rob. Charlie sorriu e colocou o copo no balcão:

-Hora, você e os outros estão atrasados como sempre!

A voz do cão era grossa, e as vezes o cão cantava um pouco de jazz na sua profissão, seus amigos diziam que era uma voz de gente muito velha para sua idade, mas ele não ligava, pois ela lhe rendia alguns trocados, e nunca ninguém reclamava dela.

-Bem, você sabe que não gosto muito de relógios, além do mais, isso nunca foi um problema muito grande para você.

A frente de Charlie estava um gato do mesmo tamanho que ele, seu pelo era cinza e preto, e o animal era mestiço, vestia uma blusa social branca junto com um par de calças jeans e sapatos, como era de seu gosto quando saia para se divertir. Rob era um escritor, apesar de escritores poderem ter dificuldades econômicas, o gato havia se estabelecido bem, isso porque começara muito cedo, e seus pais tinham alguns contatos, sendo que isso ajudou muito nas primeiras publicações de Rob. Seus progenitores haviam morrido fazia alguns anos, haviam tido uma condição financeira estável, e puderam ver o filho ganhar a independência.

Rob escrevia na média de quatro a cinco dias por semana, vivia sozinho, era um jovem adulto, e diferente dos seus ele escrevia de dia e dormia a noite, se bem que às vezes ele perdia sono e invertia o processo, quando a inspiração vinha quando o céu ficava escuro.

-Como vai?

-Daquele jeito de sempre Charlie, nada de novo, acho que vai chover hoje, é melhor os outros se apressarem.

-Sim, é verdade. Mas já vamos começando, o que você quer bebericar hoje?

-A boa e velha soda Charlie, e resto como de sempre.

O cão se virou, pegou duas garrafas, alguns copos e uma vasilha com alguns aperitivos, como queijo e batatas.

-Me ajude com isso.

Os dois pegaram aquilo tudo e foram para uma mesa perto do balcão e perto do canto do local.

Assim que se sentaram a porta se abriu de novo, e os outros dois que faltavam estavam ali. Tom era um grande, imponente e gordo urso polar, usava assim como Charlie um chapéu cinza, e trajava também um terno e calça preta, seu pelo branco ficava bem ressaltado com a luz. Tom era um comediante, e se apresentava em casas noturnas espalhadas pela cidade, o urso era engraçado, e tinha uma voz firme, sendo que nunca faltava emprego para o animal. O urso viera para aquele local tentar uma boa oportunidade para seu talento, já que de onde era ele não teria muitas boas chances como tal, sendo que dera certo, de vez em quando ele ia visitar os pais e estes vinham lhe visitar.

Ao lado do urso estava Morgan, uma raposa vermelha. O animal era o melhor dos quatro, e usava uma roupa bem casual, sendo uma camiseta e uma bermuda. Morgan tinha um pequeno bigode, e era dono de um muito bem conceituado circo. Seu empreendimento era diferente dos outros de mesma natureza. Nele, os funcionários eram muito bem tratados, o que era muito atrativo e de boa fama para a raposa. Os espetáculos costumavam variar com certo dinamismo, e os animais eram muito bem respeitados, sendo que Morgan dera para cada um deles um quarto com um camarim, pagava-lhes bem, e saia com eles com certa frequência. O circo da raposa era estático, e não saia para outras cidades, isso porque era mais fácil, e já havia um bom publico naquele local, sendo que o empreendimento havia se tornado um ponto turístico para os de fora, e não havia o porquê de viajar. A raposa era jovem, e vinha de uma família circense, sendo que seus pais lhe haviam ensinado desde muito cedo a trabalhar no circo. Morgan já havia feito de tudo, mas sua especialidade era como malabarista, embora gostasse muito também do globo da morte.

Os dois se aproximaram da mesa e se sentaram à mesa perto de Charlie e Rob, a mesa era grande o suficiente para caber todos, O cachorro se levantou, foi até atrás do balcão e trouxe mais copos e soda, que era a bebida favorita de todos. Assim que se sentaram todos se puseram a conversar empolgadamente, embalados pela música, depois dos cumprimentos formais ao cão e ao gato. Charlie voltou logo com mais copos e garrafas enchendo seus braços. Assim que se sentou junto com eles, o cão voltou a participar da conversa:

-Quais são as novidades Tom?

A voz grossa do urso soou pelo aposento.

-Hora, você sabe Charlie, nada de mais, tudo a mesma coisa, conto minhas piadas não muito boas e as pessoas riem, a pior parte é quando não riem, mas com o tempo superei isso, e você cachorro velho?

-Bem, também nada de muito novo, continuo tocando por ai, estou juntando dinheiro para comprar um piano novo, uma belezinha, é recente, acho que irei fazer mais barulho com ele.

Rob entrou na conversa.

-Vocês tem o gosto muito refinado, me contento com coisas simples, nunca me preocupei em juntar muito dinheiro, afinal de contas, dinheiro não traz charme rapazes, e vocês sabem que nesse quesito ninguém ganha de mim.

A raposa deu uma risada.

-Hora, não é errado o cão e o resto de nós juntarmos um pouco de dinheiro, na verdade eu mesmo sou meio manicado com isso. Junto dinheiro já faz um tempo, talvez gaste ele no futuro com algo que não sei o que é. Como não confio nos modos de guardar de hoje, guardo do jeito antigo.

-Bem, você sabe que todos nós vamos morrer Morgan, e tudo esse dinheiro vai virar cinzas, junto com nossos cadáveres horríveis.

O urso olhou para o gato.

-Hora gato, não seja vaidoso, talvez haja um pouco de beleza na morte, afinal de contas, você não acredita, sendo um escritor, que somos mais que carne e sangue?

-Não que não acredite nisso Tom, mas não gosto da morte assim como todo mundo, me diga, quem é que desejaria morrer, mesmo sabendo em teoria que há algo bom ou ruim do outro lado esperando? Ninguém deseja a morte, você até que tem razão, a morte não deveria ser encarada com horror, mas é isso que ela causa nas nossas profundezas, afinal de contas, é uma terrível verdade saber que dentre algumas décadas morreremos todos, e não há como se demonstrar se há alguma coisa do outro lado. Mas claro que há uma ignorância tremenda em pensar que o que não se demonstra não existe, nisso os humanos andam extremamente equivocados.

Charlie entrou na conversa outra vez.

-Humanos, falando neles você me fez pensar em algo Rob. Me lembrou de uma história, como eles são estranhos.

O cão olhou para baixo e balançou a cabeça, Morgan o incentivou.

-Nos conte a história.

Com a voz grossa e um pouco rouca Charlie iniciou.

-Bem, isso é algo que tenho observado já faz algum bom tempo. Vocês sabem que eu toco na noite já faz alguns bons anos, e tem alguns lugares em que sempre fui. Num deles, um bar parecido com esse, só que mais escuro, comecei a tocar no inicio da carreira e vou lá até hoje, por isso pude acompanhar um pouco o crescimento e o comportamento de um menino. Ele era agitado, era filho do dono do local, e gostava de estar lá. Era sempre divertido para com os outros, sendo que estes gostavam de sua companhia, pois tornava o ambiente mais animado. Ele sempre trazia seus amigos lá, desde que era pequeno. Como era mesmo o nome dele? Me lembrei! Era John. Sempre que eu tocava naquele lugar observava o garoto, eu sempre gostei dele, e ainda gosto, o conheci bem superficialmente, mas porque reparei no seu crescimento, ele acabou sem perceber me fazendo pensar em algumas coisas.

Eu ouvia suas conversas desde pequeno, e me lembro bem de certas coisas que ele dizia. Quando ele era muito novo, o garoto se reunia com amigos de sua idade, e passava a zombar de várias coisas, criticava os adultos, criticava e tinha nojo de seus pais, e de adolescentes mais velhos por namorarem e uma infinidade de outras coisas. Ele se comportava como se fosse o dono da razão e da verdade, sendo que a maioria da humanidade ao seu redor não era para sua existência, sendo ridículas para ele. Não estou dizendo que ele não gostava dos pais, apenas que ele criticava intensamente diversos comportamentos. Com o tempo, o menino foi crescendo, e as zombarias continuaram, no entanto, havia algo diferente, ele continuava a criticar ferozmente diversos comportamentos de seus pais e pessoas ao seu redor, mais uma vez o garoto se achava a autoridade máxima existente nesse mundo, e para ele, seus pais e as pessoas que não concordavam com ele eram ignorantes e inferiores.

Esse ritual continuou, apesar de com o tempo isso foi algo que foi diminuindo de intensidade, mas não cessou por completo. Mas o que o menino nunca percebeu, e o que me deixou perplexo, foi ver que quando o menino crescia, os comportamentos tão ridicularizados e atormentados pelos julgamentos do garoto, eram assumidos por ele, e isso foi algo assustador de se observar. Assim, a mesma pessoa que massacrava certas condutas, passava a assumi-las, os beijos que ele tinha tanto nojo quando criança, e as roupas ridículas do pai, passaram a ser seu comportamento quando mais velho. E o que mais me assustou nisso tudo, foi perceber que o menino tinha a conduta tão criticada de uma maneira totalmente oposta a suas críticas. Ele assumia o comportamento de modo que parecia ser outra pessoa, de modo que passava a respeitar as pessoas com a mesma conduta, e agir como se aquilo fosse o certo a se fazer. E isso tudo, era uma hipocrisia de me dar calafrios. Para ser aceito, incluso, e se desenvolver no meio em que estava inserido, o garoto agia completamente diferente do que havia feito antes, sorria para aquilo que escarrava.

Mas então percebi algo. A culpa não era do garoto, não era a criança que era má ou tinha intenções terríveis em mente. Na verdade, a partir disso, passei a observar os outros seres humanos ao meu redor, e pude perceber que todo ser humano é assim, de acordo com o meio em que está inserido, com as pessoas com quem convive, não importa se detesta ou já teve nojo daquilo tudo. Ele colocará máscaras, e sorrirá para todos, concordará com muito daquilo que renega, e se tornará adepto daquilo que nunca foi, para que seus interesses de sobrevivência e desenvolvimento no meio sejam preservados. A humanidade come, e cospe no prato que come sem cessar.

Todos na mesa ficaram calados por alguns instantes enquanto a música tranquila continuava a tocar. Morgan olhou satisfeito para o cão.

-È verdade meu caro, isso é a humanidade, e disso tudo que você me falou não são esses fatos que mais me perturbam, pois veja, o ser humano é assim como você disse não por maldade. O que realmente tira do sério Charlie, é perceber que o ser humano não admite nada disso. A humanidade é orgulhosa demais para admitir seus comportamentos. Ela age escondendo tudo debaixo do tapete, como se tudo aquilo jamais tivesse existido, e isso sim é macabro meu caro. Ela não encara a si mesma como ela é, continuando a agir da mesma forma, como se seus atos não tivessem consequências, e como se as pessoas e as situações que foram afetadas por seu comportamento não tivessem voz alguma no mundo, e não fossem afetados, ou até mesmo massacrados por esses comportamentos. Para mim, isso é cúmulo do egoísmo e da hipocrisia, e ai sim está o verdadeiro problema, não os comportamentos que tem, mas sim não admiti-los. O ser humano se acha geralmente, acima daquilo que realmente é, e por vezes passa a negar a existência do mundo ao seu redor, e do seu próximo, por pura vaidade.

Vaikus
Enviado por Vaikus em 05/02/2014
Código do texto: T4678569
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