DEUS NEGRO, A FARSA DESFEITA? NÃO O POEMA!

Luciana Carrero

Sempre digo, com toda a convicção, que a Poesia não é o poeta. Que o poeta é o receptáculo deste mistério da inspiração. Assim sendo, a Poesia é uma entidade independente, com maior ou menor participação do intelecto do autor. Quando eu escrevo, posso dizer que não me responsabilizo plenamente com a ideia; que não sou o poema; que não endosso, necessariamente, o que o poema diz. As imagens vão passando e eu as registro. Recebo-as da mente da ordem, da desordem, do caos, das beatas e prostitutas, dos políticos de todos os gêneros, das crianças, dos velhos e por aí vai, de tudo que se possa imaginar, dentro do mundo animado, inanimado, racional, irracional, divino, diabólico, louco, existencial, com conotação nunca pessoal, mas universal. Não sou aquilo que está escrito. Apenas captei e dei a melhor forma. Se tentar mudar a inspiração, o poema não se cria. Já acostumei que o poema se impõe. E não há o que fazer. Ao considerá-lo acabado suficientemente, publico. Este ato da publicação é minha responsabilidade maior? Dirão que sim. Respondo que não! Não posso censurar a arte, a inspiração e minha missão de transmitir sentimentos de toda ordem, dos mais absurdos aos mais nobres. A Poesia é democrática, contempla pensamentos de facínoras, até,se for o caso. Escrever poemas dói na alma, porque o poeta incorpora as mazelas do mundo. Há os que se controlam, censuram. Não faço isto. Apenas retrato tudo que a mim vem em poesia e até mesmo em prosa, cujo princípio aplicável é o mesmo, assim penso, em quaisquer gêneros. Isto é uma mediunidade, não religiosa, mas cósmica, de onde emana a literatura de ficção. Por carregar e retratar o mundo, já sofro a dor do mundo. E isto é um calvário suficiente. Não me julguem pelos meus poemas. Se me julgarem, me condenarão duplamente.

Estive, hoje, relendo o poema “Deus Negro”, de Neimar de Barros, que declarou-se um ateu, ex-cristão falsário, depois de escrever este belíssimo poema cristão, que deu título ao seu primeiro livro. Tudo pode acontecer, mas o poema sai ileso.

DEUS NEGRO

Neimar de Barros*

Eu, cheio de preconceitos, racista!

Eu, com falsos conceitos, neonazista!

Eu, detestando pretos.

Eu, sem coração...

Eu, perdido num coreto, gritando: "-Separação!"

Eu, você, nós... Nós todos, cheios de preconceitos. Fugindo como se eles carregassem lodo, lodo na cor...

E com petulância, arrogância, afastando a pele irmã.

...Mas, estou pensando agora:

E quando chegar a minha hora?

Meu Deus, se eu morresse amanhã, de manhã?

Numa viagem esquisita, entre nuvens feias e bonitas, se eu chegasse lá?

E um porteiro manco, como os aleijados que eu gozei viesse abrir a porta, e eu reparasse sua vista torta, igual aquela que eu critiquei?

Se sua mão tateasse pelo trinco, como as mãos do cego que não ajudei?

Se a porta rangesse, chorando os choros que provoquei?

Se uma criança me tomasse pela mão, criança como aquela que não embalei...?

E me levasse por um corredor florido, colorido, como as flores que eu jamais dei?

Se eu sentisse o chão frio, como dos presídios que não visitei?

Se eu visse as paredes caindo, como das creches e asilos que não ajudei?...

E se a criança tirasse corpos do caminho, corpos que eu não levantei dando desculpas que eram bêbedos, mas eram epiléticos, que era vagabundagem, mas era fome.

Meu Deus! Agora me assusta pronunciar seu nome!

E se mais prá frente a criança cobrisse um corpo nu, da prostituta que eu usei, ou do moribundo que não olhei, ou da velha que não respeitei, ou da mãe que não amei...? Corpo de alguém exposto, jogado por minha causa, porque não estendi a mão, porque no amor fiz pausa e dei, sei lá, dei só desgosto.

E, no fim do corredor, o início da decepção!

Que raiva, que desespero se visse o mecânico, o operário, aquele vizinho, o maldito funcionário e até, até o padeiro, todos sorrindo não sei de quê...

Ah! Sei sim, rirem da minha decepção.

Deus não está vestido de ouro, mas como?

Está num simples trono.

Simples como não fui humilde como não sou.

Deus decepção!

Deus na cor que eu não queria. Deus cara a cara, face a face sem aquela imponente classe.

Deus simples! Deus negro!

Deus negro e eu... Racista, egoísta.

E agora?

Na terra só persegui os pretos. Não aluguei casa, não apertei a mão.

Meu Deus você é negro, que desilusão.

Será que vai me dar uma morada? Será que vai apertar minha mão?

Que nada! Meu Deus, você é negro, que decepção!

Não dei emprego, virei o rosto.

E agora?

Será que vai me dar um canto, vai me cobrir com seu manto?

Ou vai virar o rosto no embalo da bofetada que dei?

Deus, eu não podia adivinhar porque você se fez assim?

Por que se fez preto, preto como o engraxate, aquele que expulsei da frente de casa.

Deus pregaram você na cruz e você me pregou uma peça, eu me esforcei a beça em tantas coisas, e cheguei até a pensar em amor, mas nunca, nunca pensei em adivinhar sua cor!

*Neimar de Barros foi um escritor e poeta brasileiro, nascido em Corumbá/ MS. Trabalhou como produtor de televisão no SBT. Em 1971, converteu-se ao catolicismo. Cristão novo, não podendo aceitar coisas do mundo secular, afastou-se da Televisão.

Começou a escrever livros religiosos. Editou o livro “Deus Negro”, que tornou-se Best-Seller, com 4 milhões de exemplares vendidos. A partir de 1975, tornou-se missionário. realizando palestras em auditórios, igrejas e teatros. Teve uma fase em que não aceitava dogmas da igreja e queria mudá-los. Neste período, escrevera mais dez livros, todos com relativo sucesso.

A GRANDE SURPRESA:

Em 1986, em entrevista à revista Veja, declarou ter sido, sua conversão, uma farsa. Declarou-se um espião infiltrado, a serviço da maçonaria na igreja. A edição da revista vendeu 900 mil exemplares, na semana. Ainda escreveu mais dois livros, e, por um período, voltou a trabalhar com Sílvio Santos. Sofria do Mal de Alzheimer.Faleceu em 06/05/2012. (Luciana Carrero, Produtora Cultural)