O Poder emana do Baixo Clero

<Livre adaptação do conto “A Revolução dos Órgãos” (Autor: Desconhecido – Caso algum leitor tenha conhecimento do nome do autor, favor entrar em contato através do link “comentário”, localizado ao final da página para que sejam efetivados os créditos devidos).>

Certa feita o Corpo Humano, cansado, depois de uma árdua semana de trabalho estava deitado à sombra de um frondoso cajueiro, afinal, era Fim-de-Semana e nada melhor que ficar mordendo um talo de capim olhando para o nada... Só esperando a Segunda-Feira chegar para recomeçar a labuta de sempre.

Tarde modorrenta, uma brisa fresca soprando, passarinhos cantando, as pestanas abrindo e fechando, veio Morfeu e... Tchan! O envolveu em seus braços.

Aproveitando que o corpo estava tranquilo, feliz e aconchegado nos braços do deus do sono, os Órgãos que há tempos vinham travando uma luta surda pelo comando do Corpo resolveram reunirem-se em assembleia para decidir quem seria eleito o Comandante em Chefe do Corpo Humano.

Após as considerações iniciais, Lorde Cérebro sugeriu que, para evitar dispersões e até distensões políticas, que a palavra seguisse a ordem da disposição do órgão no Corpo Humano, ereto, ou seja, de cima para baixo. Sugestão prontamente contestada pela Viscondessa Vesícula Biliar que alegou que o rito sugerido era uma flagrante discriminação com o Baixo Clero e que não entendia a razão do Lorde Fígado aceitar semelhante aberração.

Lorde Cérebro, temendo o início de mais uma acalorada e inútil discussão, apelou para a Dona Razão que explicou para a entojada Duquesa Vesícula que a sugestão devia-se a uma questão de ordem prática dado que, o menor número de Órgãos na parte superior do Corpo tendia à redução dos apartes dos demais Órgãos daquela região o que contribuiria para a celeridade dos trabalhos.

A Viscondessa Vesícula ainda tentou contra argumentar, mas foi contida com um enérgico beliscão do Lorde Fígado, seu superior.

Lorde Cérebro, após os ânimos serem serenados, prontamente lançou-se como candidato argumentado que sendo ele, Cérebro, responsável pelas funções do controle mental, sem o qual o corpo não saberia o que fazer ou mesmo para onde ir, nada mais justo que ele, o ilustre, o iluminado, o magnífico Cérebro, assumisse o Comando em Chefe.

A Irmandade dos Dentes, que aspirava o Vice Ducado para seus membros e via no posto de Comandante em Chefe uma possível ascensão social, contestou a candidatura do Lorde Cérebro argumentando que importante mesmo naquele conjunto era a Irmandade, ou melhor, os Dentes. Argumentaram que sem o trabalho deles os alimentos não seriam triturados, o que dificultariam em muito a digestão e a consequente obtenção da energia daí advinda, ponto vital para a manutenção do Corpo.

Marquesa Faringe com um sorriso maroto olhou com desdém para os alpinistas sociais, Dentes, e maldosamente exclamou: “Ora, ora meus caros! Os senhores são meros objetos descartáveis, senão vejamos, quando os senhores estão incomodando, o Senhor Corpo simplesmente os substitui por uma prótese e o problema está resolvido... E quanto à minha função? Ora, quanto à minha função? Ela é absolutamente indispensável... Vamos aos fatos... Quem é diretamente responsável, melhor dizendo, indispensável pela passagem do ar e dos alimentos para os operários do Baixo Clero, hem? Quem? Quem? Sem a minha imprescindível contribuição nada funciona, fica tudo parado... – E apontando para baixo, continuou – Essa turma aí, oh! Fica sem fazer nada. Por isso, em razão de tudo o que foi dito o cargo me pertence por direito.

O pessoal da turma de baixo armou o maior alarido em razão das argumentações impertinentes e politicamente incorretas da Marquesa Faringe.

O Baço ficou inchado de indignação; Lorde Coração ficou palpitando; a Princesa Bexiga se abriu deixando a relva toda molhada; o lorde Esqueleto que possuía a maior parte de seu império vizinho da turma de baixo, em solidariedade, se estremeceu todo; o Arquiduque Estômago engulhou; a Viscondessa Laringe fingiu indiferença, afinal era amiga íntima e parceira da preconceituosa Faringe; Dom Fígado, furioso e indignado, azedou de vez; os irmãos e aliados, Lordes Intestinos Delgado e Grosso, em represália aos insultos ameaçaram regurgitar em cima das sirigaitas Faringe e Laringe... Ô duplinha!

A confusão se generalizou na assembleia. Tudo culpa das fingidas e sirigaitas Laringe e Faringe. Lorde Cérebro a tudo analisava impassível.

A discussão perdurava por horas enquanto o Senhor Corpo dormia. De repente o Lorde Cérebro sentiu uma tonteira, o Coração quase parou; as Glândulas Salivares quase entupiram e a senhora Garganta secou; a Laringe fechou, o Pulmão sentiu uma embolia e a Baronesa Boca sentindo um amargor suspeito perguntou:

“Afinal, o que é que está acontecendo?”

O Príncipe Sangue pediu silêncio e disse que tinha um recado mandado pelas Damas Células que por sua vez haviam sido avisadas pelo guardião Senhor Cólon.

Depois de algum tempo pedindo silêncio, o Lorde Cérebro com a ajuda da Senhora Razão que continuava ali por perto, conseguiu que todos os nobres, cavalheiros e damas que, a despeito de estarem passando mal em menor ou maior grau, conderam um tempo para a ouvir o recado que o Príncipe Sangue tinha para dar.

-Nobres Senhores, Senhoras... Cavalheiros e Damas... O Senhor Cólon, eterno guardião do Portão de Saída manda dizer que o Duque Ânus, em represália por não ter sido convidado para tão egrégia Assembleia resolveu, unilateralmente, lacrar o Portão de Saída. Afirma ainda, aquele nobre senhor que, enquanto não forem levadas, em comitiva, as devidas escusas por tão abjeta afronta, nada, absolutamente NADA, sai por aquele portão sem o seu expresso CONSENTIMENTO.

O caos instalou-se na assembleia.

Perguntas e sugestões, as mais estapafúrdias possíveis circularam pelo ambiente sem que os presentes chegassem a um acordo.

A ilustre Marquesa Traqueia até então calada, em parte por causa de sua excessiva timidez, num murmúrio, ensaiou um comentário;

“Estranho, muito estranho, o ilustre Duque Ânus, apesar da sensibilidade à flor da pele, sempre tão recluso, raramente se manifesta. Estranho... Muito estranho...”

O jovem Marquês Nariz que durante as discussões mantinha-se afastado em um canto, parou de teclar freneticamente seu iPad, tirou o fone da Arquiduquesa Orelha e murmurou baixinho, com receio de ser repreendido pelos demais:

“Prefiro assim, toda vez que o Duque Ânus emite uma opinião ou se manifesta... Sou eu quem sofre as consequências”.

A Marquesa Faringe, num rasgo de criatividade, ensaiou uma sugestão um tanto quanto ortodoxa:

“E se nós pedíssemos aos nobres irmãos Intestinos para forçar uma carga de gás metano em direção ao Portão de Saída, será que o Duque Ânus diante da pressão, talvez, não capitulasse?”

Diante dos impropérios dos demais membros da Assembleia, surpresos com tão estapafúrdia sugestão, a Marquesa Faringe retraiu-se de tal forma que obrigou a Baronesa Garganta a tossir desesperadamente.

O nobre Cérebro, sempre assessorado pela senhora Razão, altivamente, pediu um aparte e exclamou:

“Parece-me que, diante do inusitado da situação, convém formarmos uma Comissão Parlamentar de Paz com plenos poderes de negociação a fim de estabelecermos um urgente armistício com o nobre C., desculpem-me, digo, com Duque Ânus”.

Diante da sensata sugestão do nobre Cérebro, formaram-se comissões, conchavos diversos, negociatas as mais variadas, o que contribuiu para prolongar a escolha dos membros da CPP, agravando ainda mais os sintomas da FGO (Falência Geral dos Órgãos), para gáudio da piriguete Emoção que circulava resoluta pela Assembleia instigando uns e outros a escolherem sempre a melhor posição para benefício próprio, é claro.

Por fim, após a Senhora Razão, discretamente, aprisionar a piriquete Emoção em algum escaninho do Plexo Celíaco, estabeleceu-se um acordo para a escolha dos membros da Comissão Parlamentar de Paz que caminhou resoluta para mansão do Comendador Coccix a fim entabular um acordo de paz com o Duque Ânus.

Porém, durante as negociações, e com o nobre Ânus quase que completamente convencido a assinar a CIP-Carta de Intenções de Paz, as sempre fofoqueiras jovens Células mandaram um SMS para o irascível Duque informando-o da inoportuna sugestão da Marquesa Faringe.

Para a fúria geral dos membros da CPP, o sempre temperamental Duque Ânus ameaçou encerrar as negociações e, num ato de fúria incontida, tentou enfiar a caneta em um dos orifícios do sempre amável Marquês Nariz, na ocasião, nomeado secretário, que, visivelmente transtornado espirrou furiosamente. E não satisfeito, o altivo Duque Ânus contraiu-se mais ainda, impendido o trânsito de uma carga de gás que estava sendo despachada clandestinamente para o Portão de Saída.

Diante do impasse, a Senhora Razão argumentou de um lado, ouviu sugestões de outro e por fim convenceu os membros da CPP para terem paciência com o imprevisível Duque, afinal, a atual situação política tendia para o colapso total de todos os sistemas, tais como, Circulatório, Digestório, Linfático e Respiratório, mas a preocupação maior era com o sempre sensível e imprevisível Sistema Nervoso que, precisamente naquele momento estava sendo contido às duras penas pelo Sistema Muscular.

Com muita dificuldade a Senhora Razão conseguiu com que todos os membros da CPP e o Duque Ânus sentassem novamente à mesa de negociações onde eram observados atentamente, um pouco afastado, por um assustadiço Marquês Nariz, abnegado Secretário da Mesa.

Mesmo com os ânimos serenados, os membros de CPP continuavam com o mal estar cada vez maior.

Solícito, o Sistema Linfático, a despeito de seu iminente colapso, tentava, diligente, manter o fluxo da linfa para minorar o sofrimento de todos.

Depois que todos os membros da CPP expuseram as suas considerações o Duque Ânus foi peremptório em suas declarações.

“As meninas Células, essas damas fofoqueiras, fúteis e deslumbradas, afinal, demonstraram a sua utilidade... Informaram-me, tardiamente, é claro, dessa famigerada Assembleia sem a minha egrégia presença. Não satisfeitos, vossas senhorias tentaram diminuir, na verdade ridicularizar a minha nobre e utilíssima função ao mesmo tempo em que superestimaram os seus burocráticos afazeres”.

Os membros da CPP principiaram um protesto em uníssono, porém, ao verem o Duque Ânus esboçar um gesto de abandonar a mesa de negociação, optaram pela prudência e calaram-se imediatamente.

Pigarreando, o Duque continuou:

“O senhor, Nobre Cérebro, se arvora uma importância que atualmente pode ser meramente burocrática, por exemplo, se vossa senhoria um dia der uma pane, o Corpo continua a sua existência sem maiores problemas; e o senhor, Nobre Coração? Já virou rotina ser substituído por qualquer ‘dê cá aquela palha’; e quanto ao senhor, Nobre Fígado? O senhor então... Hunfff!!! O senhor mesmo é que é substituído com tanta facilidade que não vale nem a pena perder tempo comentando aqui. O mesmo raciocínio vale para todos esnobes presentes e ausentes. Quanto à minha nobre pessoa, não...!!! Quero ver alguém me substituir... Quero ver alguém fazer a nobilíssima função de expelir os mais variados e estranhos dejetos com tanto garbo e maestria quanto eu”.

Diante da mudez estática e estupefata dos membros da CPP, o Duque Ânus se inflou em toda a sua magnitude, altivez e orgulho e, encarando-os, vaticinou categórico:

“Portanto, nobres senhores e senhoras, EU, somente EU, o magnífico, o altivo, o garboso, e porque não dizer o IMPONENTE, o ONIPOTENTE e ilustre DUQUE ÂNUS, tem por direito divino que assumir o honroso e supremo cargo de COMANDANTE EM CHEFE do Corpo Humano”.

Sem alternativa, os poucos membros da CPP que ainda não tinham entrado em colapso, homologaram o ilustre Duque Ânus como Comandante em Chefe de sua majestade, o Corpo Humano.

Desolado, o Nobre Cérebro entregou a espada de Comandante em Chefe para o Duque Ânus que daquele dia em diante adotou o pomposo nome de guerra de... MARECHAL ESFÍNCTER!

No entanto, as fofoqueiras Células, maldosamente, espalharam através da corrente sanguínea os epítetos poucos lisonjeiros que a dissimulada Condessa Próstata atribuiu ao Marechal recém nomeado.

Diziam elas que o Marechal Esfíncter, na verdade um verdadeiro déspota boçal, era conhecido entre os membros do Baixo Clero como “Tenente Fiofó”, “Coronel Quinca”, “Capitão Boga”, e por fim, “Cabo Brioco” e até “Recruta Furico”.