TRAVESSIA

Aconteceu certa vez que um velho comerciante solitário e muito rico, qual gostava de se vestir feito a um príncipe, pressentindo-se que ia morrer em breve, desejou atravessar o mar e ir para uma ilha isolada onde viveria sozinho os seus últimos dias de vida. Isso se deu devido ao fato de ele ter vivido a vida inteira preocupando-se em juntar riquezas a ponto de não ter dado tempo de cativar amigos, criar vínculos com a família ou possuir a sua própria, casando-se e tendo filhos. Portanto, para a realização desse desejo sádico e mórbido, ele consultou alguns barqueiros pedindo a eles informações sobre a existência de uma ilha onde não morasse ninguém para a realização cabal dos seus desejos. A maioria dos barqueiros estranhou o desejo do velho comerciante, tentando fazê-lo desistir daquela absurda ideia, pois morar numa ilha, isoladamente, não mais competia aos humanos, uma vez que a vida em sociedade estaria modernamente repleta de outras opções melhores. O velho comerciante, encasquestado com a ideia absurda, oferecia riquezas aos barqueiros, mas eles não animavam a realizar o seu desejo. Todos os barqueiros, conhecedores de ilhas e dos mares, conscientes de seus atos, não queriam assumir a culpa de ter de abandonar um velho e rico comerciante em uma ilha isolada para viver a mando do deus-dará.

Dizem que certo dia, estando alguns barqueiros reunidos na orla marinha, eles lembraram-se em seus “causos” do velho e rico comerciante, pondo-se a rirem do seu desejo exótico de morrer em uma ilha isolada. Entre os barqueiros estava um simples pescador, que, ao ouvir os casos sobre o personagem desconhecido, sentiu pena dele pelo fato de nenhum dos amigos barqueiros tê-lo ajudado a realizar tal desejo. Ele pensava "não importa se o desejo era estranho ou não, o fato é que o moço queria realizá-lo para ser feliz."

Tempos depois, o rico e velho comerciante voltando a frequentar novamente as orlas marinhas, desta vez, vestido a trajes simples, igual a todos os homens daquela comunidade de pescadores, acabou conhecendo o simples barqueiro. Os dois se apresentaram e o rico e velho pescador dizia ser um pobre andarilho que vivia a conhecer o mundo andando pelas estradas de asfalto e de areia, conforme tocava o seu destino. Eles trocaram longas conversas. O simples pescador contou “causos” fantásticos sobre pescarias, ilhas e mares, quais encantavam o velho comerciante. Entre um caso e outro, o velho comerciante disfarçado em andarilho, acabou relatando ao simples pescador o estranho desejo dele de morar sozinho em uma ilha até o fim dos dias dele. O simples pescador, atinado a nada, acabou apiedando-se do andarilho, oferecendo a ele os seus simples préstimos. Ele dizia ao andarilho que conhecia uma ilhota, onde, vez em quando, ele pescava sozinho em um fim de semana e outro. E para maior encantamento da história, ele também revelou ao recente amigo existir na ilhota uma antiga oca de índios, qual, ele acreditava, sê-la dos índios remanescentes da história da fundação do Brasil. Entre uma conversa e outra, o pescador relatou ao andarilho a história ouvida através dos amigos barqueiros sobre um velho comerciante rico que por lá apareceu há algum tempo sonhando em realizar o mesmo desejo, mas, infelizmente, ninguém ali, por dinheiro algum, prontificou a ajudá-lo. O andarilho mergulhou-se em seu íntímo e sentiu vergonha da riqueza que possuía, vendo, pois, que esta mais uma vez atrapalhava-lhe a cumprir outro plano. Ao voltar à tona, o andarilho disfarçado ganhou a confiança do simples pescador, recebendo dele a promessa de ajuda na realização do estranho desejo.

Dizem que alguns dias depois, numa madrugada, o velho comerciante colocou numa pequena mala algumas coisas valiosas e embarcou com o simples pescador para a ilhota, onde, decerto, ele moraria até findar os tempos dele. Ao chegar à ilhota, o simples pescador resolveu ficar por lá mais três dias fazendo companhia ao recente amigo. Durante os três dias, o simples pescador ensinou ao andarilho algumas regras de sobrevivência, mostrando a ele também alguns pontos interessantes da ilhota, quanto a busca de alimentos. No final do terceiro dia, antes de o sol se pôr, o simples pescador despediu-se do andarilho e, ao entrar no barco descobriu ali a mala dele. Ele saiu do barco, pegou a mala e correu até a praia para devolvê-la ao andarilho. Mas o andarilho, o nosso velho e ex-rico comerciante, olhou contente para a ilhota, abriu os braços para sentir todo o frescor da tarde e depois voltou ao simples pescador, dizendo.

- Não perguntaste a mim qual o valor de toda a realização desse meu desejo, quais, outros barqueiros, mesmo sabendo que eu os pagaria com muito dinheiro, se acovardaram em realizá-lo a mim... Portanto, fique com a mala e somente abra-a quando se sentir seguro em casa...

O simples barqueiro advertiu-o.

- É uma mala de viagem e o senhor deverá precisar das coisas que há dentro dela...

- Não, não mais precisarei de nada que está dentro dela. Até eu mesmo estava aí dentro, preso nela, sem saber porque. Hoje consegui safar-me dela e quero viver aqui, nesta ilha maravilhosa. O que está dentro desta mala será um presente meu para você. Aproveite a vida e não deixe que esta mala te prenda, isto é, não se apegue aos valores que contém nela. Faça o que pedi, reforço, somente abra-a quando estiver seguro em casa...

O barqueiro, diante da insistência do estranho amigo, apenas respondeu humildemente.

- Senhor sim, senhor sim...

Dizem que o barqueiro foi embora e, ao chegar a casa dele, se sentindo seguro, abriu a mala e mal pôde acreditar quanta riqueza havia dentro dela. Ele se lembrou dos conselhos do amigo e andarilho e, a partir daquele dia, pegou a família e foi morar em outro lugar capaz de aprender a viver como todo mundo que tem riquezas vive.

Quanto aos outros barqueiros, medrosos de realizar desejos alheios, continuaram lá, na orla marítima, a esperar por passageiros que tivessem sonhos limitados de um simples ir e vir de uma praia à outra.

Sobre o velho comerciante e solitário, nunca tiveram notícias dele, mas todos creem na sua felicidade, quai deu início na realização do seu exótico desejo de travessia.

MORAL DA HISTÓRIA: “Quem se preocupa com a presteza, devido ao medo, acaba perdendo a chance da riqueza”.

Shicko Rodrigues
Enviado por Shicko Rodrigues em 19/04/2012
Reeditado em 25/04/2012
Código do texto: T3622086