URUBUS
URUBUS
O Professor Rozental estava em um pequeno povoado de Tobias Barreto chamado Jabeberi. O Jabeberi nunca cresceu. Desde sua povoação até os dias atuais ele tem quase o mesmo tamanho. Seus moradores agem do mesmo jeito e acreditam nas mesmas coisas. Eles cuidam de seus bichos e de seus filhos. Vivem seu mundo não importa o tamanho. O povo costuma descansar no final da tarde quando o sol esfria um pouco. O vento que desce a Serra do Canine traz esperanças para o povo do Jabeberi. Na verdade, é um alento no final de um dia quente e abafado.
Quando aqueles sertões foram ocupados pela etnia branca, os índios Jês invocaram os Capangueiros da jurema vermelha. Todo sabido da jurema sabe que esses Capangueiros são seres afinados com o mal – Para eles o mal é um prazer. Um feiticeiro Jê, mestre na magia da raiz da jurema, profetizou que o branco conquistaria a serra, mas, sempre teria problemas com a mãe Okaru – a natureza!
- Mãe, tá sabendo que descobriram uma tubulação secreta que despeja produtos químicos na barragem?
- Não, minha filha! Sua mãe não sabia disso. Mas, quem te disse?
- Foi o professor Rozental. Ele disse que o meio ambiente do Jabeberi está alterado.
- Que bom minha filha! Continue assim estudiosa como seu finado pai. Sueli ao ouvir sua mãe falar em seu pai, se calou, e foi para o quarto.
Sueli era uma menina de dez anos muito sabida. Ela era a menina que mais lia no quinto ano. Sabia a tabuada de cor, e podia conjugar qualquer verbo. O único que parecia para ela impossível era o verbo morrer. “Esse eu num digo não professor Rozental!”
Rozental fazia de tudo para ajudar aquelas crianças especiais. Ele não acreditava que especial fosse apenas um grupo com limitações psicomotoras. Para aquele pedagogo, todos os seres humanos eram especiais. Assim, as crianças do Jabeberi eram crianças muito especiais. Sueli era um exemplo. A casa da menina tinha os fundos voltados para Serra do Canine. De lá se podia avistar a majestosa serra que foi cenário de muitas lutas entre índios e brancos na época de Belchior Dias Moreira – O colonizador. Comenta a população do povoado que Belchior tinha casa no Jabeberi. A Vila de Campos nasceu no Jabeberi por isso muito se parece com o povo de lá.
- Mãe! Mãe! A serra está coberta de preto, e o preto se mexe!
- Deixa de besteira menina!
- Não mãe, é verdade! Dona Maria das Dores olhou para serra para ver se era verdade aquela história. Para sua surpresa, a serra estava coberta de urubus. Maria pensou que era o “tempo”. O povo da roça quando não entende uma coisa costuma dizer que é o tempo. Os urubus formavam uma cobertura preta sobre o pasto seco no alto da serra. O céu da serra estava cheio de aves negras devoradoras de bichos e homens mortos. Nunca se havia visto tanto urubu como naquele dia. O padre rezava uma missa na pequena paroquia do povoado quando seu Tonho entrou apavorado gritando bem alto. “O mundo vai acabar!” Os fiéis correram de imediato para a porta, a sombra da nuvem de urubus que cobriu o lugar, andava apressada rumo a serra. Os carcarás se juntaram aos seus parentes urubus. A serra tremia ante o peso de tanta ave.
- Mas o que é isso? Perguntou Padre Arnóbio ao seu protegido Ricardo. Este nada respondia. Somente balançava a cabeça em sinal de atenção.
- Diga alguma coisa, rapaz! Ordenou Arnóbio ao seu escudeiro.
- Eu num sei que bicho é isso não padre! O rapaz respondeu a sua santidade com voz medrosa. Ricardo era um rapaz que fora viciado no jogo e se converteu a fé católica quando o padre cantor Sebastião esteve em Tobias. O povo da igreja ficou muito alegre com o rapaz. Desde então, ele acompanha o Padre Arnóbio. Aonde ele vai, Ricardo vai atrás.
A segunda feira chegou, era dia de escola. Rozental estava no Jabeberi. A menina sabida Sueli o esperava à porta da escola.
- Professor, os urubus estavam na Serra do Canine, era uma multidão! Nunca ninguém viu tanto bicho como ontem! Próximo aos dois, um grupo de agricultores comentava a morte de alguns animais.
- Encontrei uma vaca morta no pasto. Ela estava toda picada e não era cobra não. Era mordida de bicho grande. Parece mordida de gavião. Os urubus vieram em cima e devoraram a carcaça, bem rápido.
- Os urubus invadiram minha roça e devoraram duas reses.
- A menina de Fátima foi atacada por urubus de manhã bem cedo quando ela foi ordenhar.
- Seu Jeremias teve de se esconder na malhada para se livrar dos urubus. E eram muitos, só andam em grupos. O grupo de pessoas se desfez quando o vereador Matias da Serra chegou. “Povo cheio de estória!” Pensou Matias consigo mesmo.
- Pois num é! Quem num sabe que nessa quadra do ano os urubus ficam mais agitados?
- É porque o povo do Jabeberi gosta mesmo é de conversar!
- É. Esse povo fala de tudo. Tá lembrado do enterro de dona Gemina?
- Quem num se lembra da finada! Aquela coitada!
- No dia do enterro o caixão num abriu? E o povo comentou que foi por causa da língua grande dela. Os dois saíram proseando em direção ao um Jeep dos anos 70. Matias estava indo para o Canine.
A viagem para o Canine foi rápida. A estrada da agrovila havia sido restaurada. O prefeito Nogueira Pinto atendeu ao pedido de seu colega vereador Matias. O povo do Jabeberi diz sempre: “Sem Matias num dá!” Isso parece ser verdade, pois, quando tem qualquer problema é Matias quem o enfrenta.
- Onde estão os urubus, vereador? Perguntou o encarregado.
- Rapaz, parece que sumiram! Mas, num pode. Essas aves são de fazer morada no mesmo canto por muito tempo. Deve ter realmente sido um mal entendido, coincidências digamos.
- Pois, é. O vereador falou tá falado. Concluiu o encarregado Geraldo. Ao terminar a conversa Geraldo olha, por caso, para o topo da Serra, para o lugar onde dizem que Aragão enterrou o ouro de Belchior quando foi ferido pelo povo Jê e vê a figura de um índio observando os dois de longe. “Mas, como?” Perguntou Geraldo ao seu espírito. “Índio? Deve ser alguém trajado e quer fazer gracinha”.
- Seu Matias! Olhe para cima, para o topo! Tem um índio lá!
- Índio? Perguntou o vereador caçoando de Geraldo. Deixa de ser burro rapaz! Deve ser alguém brincando! Não tem índio por essas terras há muito tempo. Meu tataravô matou foi tudo.
- Mas, num foi isso que eu disse?
- Tá! Tá! Deixa para lá! Vamos voltar, pois, cá em cima não tem nada para a gente ver, exceto, o pasto seco. Nem ovo de urubu tem!
A manhã de terça feira trouxe uma notícia muito triste para o Povoado. Logo cedo, a emissora de radio de maior audiência de Tobias Barreto anunciava a morte de uma criança branca de cabelos avermelhados e que tudo indicava ser do povoado. O repórter do povo João Sabido, acrescentou que o Jabeberi perdeu 277 cabeças de gado durante a noite. Os corpos dos bichos foram levados de caminhão para a capital sergipana.
- Vereador! E a criança?
- Foi também, homem!
- E agora? O povo vai dizer que Matias não tem solução para o caso. O amigo nem sabe como foi? Sabe?
- Cala a boca homem! Deixa-me pensar!
- Porque você num vai à favela! Dizem que lá tem uma mulher que sabe de tudo.
- Rapaz, tá doido! O povo vai me chamar de que? Bruxo, feiticeiro! Geraldo você tem mesmo a cabeça oca! Geraldo coçou a cabeça, arrastou um punhado de caspas nas unhas, levou-as ao nariz, e as cheirou. Quando ele ficava nervoso ou pensativo entrava em relação narcísica com seu corpo.
Ao meio dia o radio torna a falar. “Tantos os animais quanto a criança foram mortas por mordidas ou bicadas de urubus e carcarás. E se não tivessem morrido logo, morreriam de todo jeito, pois, foi encontrado nos corpos alto teor de cianeto – um poderoso veneno”. A cidade de Tobias entrou em pânico. Certamente havia alguém envenenando bicho e gente. O suspeito segundo Matias era a estranha pessoa do alto da serra. Mas, Quem era ele ou ela?
- Geraldo! Vá pegar o Jeep! Precisamos subir novamente a serra. Matias tomou uma dose de pinga, no balcão do bar do Saraiva, que fica quase em frente à Rodoviária Velha. Em alguns minutos, o encarregado Geraldo chega com o Jeep.
Os dois rumaram na direção do povoado Jabeberi. A estrada estava nivelada, pois, a máquina de terraplanagem foi usada para dar um novo aspecto. No sertão, no ano de eleição, aparece de tudo, até estrada boa, mesmo sendo de barro massapê. No caminho, nos dois lados da rodagem, uma coisa estranha chamou a atenção dos dois heróis de Tobias. Carcarás estavam pousados nos paus das cercas desde a granja até a caixa d’água do Jabiberi. Parecia que os bichos sabiam o que estavam fazendo. Um carcará Rei levantou voo e rodou sobre o Jeep; fez dois rasantes e depois saiu em direção a serra.
- Você viu chefe?
- Que chefe rapaz! Tenho cara de índio, ou de mafioso?
- Não! Eu estava só brincando patrão!
- Então dirija! Pois, a coisa tá ficando cada vez mais estranha. Nunca vi um carcará fazer isso! Nós não somos carniça para ele fazer um rasante desses. Faz quanto tempo que você não toma banho Geraldo?
- Olha pra ele! O patrão tá achando que o bicho veio por causa de mim! Geraldo parou o carro na praça logo na entrada do povoado. A igreja estava cheia de fiéis implorando a São José para interceder pelo povoado, pois, nunca se vira tamanha coisa. As aves haviam, realmente, assustado o povo do Jabeberi.
As nuvens ficaram cinzentas sobre a serra e o povoado. Trovões rimbombaram. As mulheres e crianças correram para suas casas para desligarem os aparelhos e cobrir os espelhos. Segundo a crença espelho atrai o raio. “Sueli cubra minha filha o espelho perto da televisão!” A menina cobriu o espelho. Ao virar-se para a porta viu a silhueta de um índio em pé na porta olhando para ela. Foi muito rápido, tão Rápido quanto o clarão do raio. A chuva ameaça cair, mas, nenhuma gota descia do céu. As aves se agrupavam formando um grande exército no topo do Canine. Um grupo de senhoras e velhos, e moças de casa permaneceram com o pároco na capela do povoado, os demais se enfiaram em suas casas.
- Matias, o povo está com medo. Eu não tenho medo não. Deve haver uma explicação.
- Rapaz, se você não está com medo, então, você é macho mesmo. A vontade que eu tenho é de me abrigar. Matias apontou para serra. As aves negras e os carcarás estavam mais agressivos. O barulho que faziam dava medo.
- Então vamos para a paroquia?
- Não amigo, vamos pegar as armas. Os dois entraram em casa. Alguns minutos depois saíram em direção a serra novamente.
As aves estavam agitadas no alto da Serra do Canine. Os urubus voavam pairando no céu como que aguardassem uma convocação. Os carcarás formavam um grupo grande numa árvore no alto de um pequeno monte elevado. O carcará Rei estava no meio dos bichos. Tiago e Geraldo chegaram no momento em que o carcará Rei falava com seu exército. A ave emitia grunhidos, às vezes, grave, às vezes, agudo. A esse comando elas reagiam. Os grunhidos eram tantos que deixaram Tiago irritado. Ele apontou sua escopeta para cima e atirou. As aves se assustaram e fugiram. No entanto o gavião Rei permaneceu no mesmo lugar. A ave Rei do sertão de Tobias encarou Tiago olhando-o dentro dos olhos. Naquele instante, o vereador Tiago do Jabeberi entrou em estado de transe. O rapaz se vê voando por uma floresta de juazeiros e juás, macambiras, jenipapos, umbuzeiros, paus-ferros, mandacarus, juremas brancas e vermelhas, jenipapeiros, muricizeiros, pés de udicuris, e outras árvores que povoam os sertões do nordeste. Uma imburana hospedava muitos gaviões na visão de Tiago. Os riachos estavam cheios, o mato verde. A vida desabrochava da terra. Em lugar de pastos, campos de alecrim, cipó caboclo, e outras ervas aromáticas, cobriam a face da terra. A onça andava na terra livremente. E o veado se alimentava das gramíneas que arrebentavam do chão de massapê. Tiago viu crianças se banhando no rio Jabeberi onde hoje é a barragem. Ali o rio guardava o passado dos Cariris-jês do sertão de Campos. Um pouco mais, na frente, onde o rio faz uma curva na direção de Tobias, estava o cemitério do povo Cariri. Dezenas de urnas de barro enterradas na margem direita do rio, outras na margem esquerda. Esses eram os Capangueiros da Jurema Vermelha. Os índios que não perdoaram o agravo do branco contra sua gente. Os Capangueiros eram os vingadores. Tiago, em sua vidência, vê uma gruta no barranco do rio, numa baixada quase coberta pelos galhos das cajazeiras. Lá estava a figura de um índio pintado com carvão e urucum. Em sua cabeça, um pequeno cocá de penas pretas e vermelhas. Em seus beiços, pequenos ossos enfiados. Em seus braços, na altura da junção do antebraço e o ombro, coteguns feitos de palhas de udicuris. Na sua mão esquerda, uma bodurna feita de pau de jucá – um dos mais duros do sertão. O guerreiro Jê entra em sintonia mental com Tiago.
- Okaru demanda contra sua terra. O chão cobra o veneno derramado. Mãe d’água chorou.
- Num estou entendendo nada! Disse Tiago apertando as garras na madeira da escopeta de dois canos.
- Okaru e Tupã contra a terra de vocês. Vão pagar pelo rio preso.
- Okaru? Rapaz, você tá doido! Tiago apertou a escopeta e ela disparou. Com o barulho, o homem volta a si.
- Geraldo!
- Sim! Seu Tiago estava a onde?
- Rapaz, num sei. Mas, eu derrubei o índio! O carcará Rei desapareceu. Os urubus voltam para a serra e a sombra da nuvem de urubus se retirou de sobre o povoado. O povo deu graças a Deus.
Tiago e seu ajudante se deram por satisfeitos. Os urubus e os carcarás sumiram do céu e da terra. A vida voltaria ao normal no Jabeberi. A morte da menina, no entanto, ficou sem explicação. Os dois servos do povo foram para o bar de seu Tonico comemorar o feito com cerveja e carne assada. Muitos moradores se juntaram a dupla de heróis.
- Todo mundo aqui sabe que Tiago gosta da terra, mas, ao ponto de arriscar a vida por nós não. Mas, e o caso da menina galega da Lagoa Real?
- Rapaz, as aves atacaram a menina, deve ser a mudança no tempo. De agora em diante a gente tem que ficar atento aos bichos. Eles podem se comportar de forma diferente. Está tudo mudado.
- Tiago é sabido. Acredito que Tiago vai ganhar de novo. A bebedeira varou o dia. A noite chegou com um friozinho típico do lugar. O Padre Arnóbio, que acompanhou o drama do povo, estava na igreja para agradecer a Deus pelo livramento.
“Meus irmãos o apocalipse está acontecendo perante nossos olhos. Precisamos nos dedicar mais a Deus”. A tônica de sua mensagem foi uma mudança de vida. As pessoas retornaram às suas casas confortadas e certas que no outro dia fariam as mesmas coisas de sempre.
Tiago estava na cama com sua mulher quando a porta de sua casa recebe pancadas apavoradas. Era o povo assustado com o que viram no romper da aurora. Eles saíram de casa para trabalhar, mas, não puderam porque o povoado estava cheio de urubus e carcarás nervosos atacando povo. O melhor a fazer era não sair. Mesmo quem tinha arma de fogo não se arriscava por que era muito bicho voando e atacando sem piedade. As aves estavam determinadas a travarem uma luta com os humanos.
- Tiago! Tiago! Tiago!
- Mulher eu não vou mais me candidatar a nada! Esse negócio de ser vereador está me tirando do sério. O que eu posso fazer? Porque eles não chamam a polícia?
- Se você não quiser tem Rozental que vai se candidatar. Diz o povo que ele será eleito. Tiago deu um pulo da cama, pegou o celular e chamou seu ajudante.
- Acorda Homem! Estamos sob ataque!
O sol se levantava preguiçosamente e quente no céu do povoado. Ninguém tirou leite, deu comida aos bichos, ou fez qualquer coisa fora de casa. Alguns valentes tentaram enfrentar as aves, mas, foram picados e voltaram correndo.
- Num dá não! É bicho muito! A gente derruba um, e logo aparecem dez diante de nós. E agora Franzé?
- O jeito é chamar por Deus!
- Mas você disse que num cria nessas coisas?
- Mas agora creio. Padre Arnóbio explicou que é o apocalipse.
- Sei.
A fé do povo aumentou. Talvez o aumento seja a quantidade de urubus e carcarás no encalço do povo. Tiago retorna a montanha do Canine.
- Onde está a carne?
- Está aqui!
- Os dois deram carne para as aves na intenção de agradá-las. Os bichos nem olharam. E havia bicho demais para tão pouca carne. As aves nem chegaram perto da carniça. O carcará Rei se aproxima da dupla. Passa o bico na galha de uma aroeira branca e pousa defronte o líder político do Jabeberi. Seus olhos amarelados estavam arregalados. Ela parecia determinada a enfrentar o valente do sertão – Tiago da serra ou do Jabeberi – verdadeiro parente de Aragão. A ave grunhia agudo, depois, passou para o grave. Os urubus alçaram voo. Naquele momento estavam no topo da serra Tiago, seu homem, e o carcará Rei. Este último parecia ler a mente dos dois homens. Diz a lenda que os índios Jê Cariri dominavam a técnica de encantar aves para que elas fizessem suas vontades. Um gavião se tornava um aliado na prática de suas magias, ou um assassino de guerreiros inimigos. A pena do carcará usada na porção mágica de água de raiz de jurema com casca de anatemba se tornava um feitiço para curar doenças letais.
- Tiago num olhe o bicho nos olhos não! Ele quer te hipnotizar!
- Num tenho medo não! Venha seu filho da peste! Tiago entrou em transe novamente.
O vereador de Tobias era agora um índio jê pintado para a guerra. O preto e o vermelho cobriam seu corpo sobrando apenas a curta tanga que cobria suas partes fracas. Ele voava montado em uma enorme ave – um carcará gigante. A distância de uma asa a outra era de três metros. O bicho voava sobre o povoado. Lá em baixo havia uma pequena vila de casas. Todas grudadas parede com parede uma a outra. As casas pareciam que pertenciam a outra época. Uma pequena igreja com um cruzeiro na frente podia ser vista do alto. Defronte a ela, uma senzala de escravos. Ao redor do povoado onde hoje são pastos, roças e fazendas estavam as malocas de índios. Os índios iam e vinham em paz. O povo da pequena vila não era hostil aos selvícolas. Os negros eram os únicos que sofriam naquele pequeno pedaço do paraíso. O carcará toma a direção da barragem. Ali havia um vale e nele o majestoso Jabeberi deitava em seu leito. Tiago viu do alto uma cerimônia fúnebre na beira do rio. As mulheres choravam e os homens também. Os pajés batiam suas maracas e fumavam cachimbo defumando o corpo do falecido. Junto ao cadáver eram enterradas ervas que, na visão deles, garantiriam o retorno à mãe Okaru. Tiago chorou de emoção quando viu a urna ser selada com lama de barro e depositada na margem enlameada do rio. O chão entijucado do Rio Jabeberi permitia a construção dos cemitérios jês. 277 urnas estavam ali. Eram seus entes queridos, suas lembranças, memória, e religião – Tudo inundado pela barragem! O carcará gigante retorna ao povoado. As pessoas estavam trancadas em casa. O povo valente do Jabeberi se rendera ao medo. Ninguém tinha coragem de enfrentar as aves enfurecidas. O carcará dá mais uma volta, agora, em voo rasante; Tiago é jogado bruscamente no meio da praça. Logo em seguida, o vereador via as pessoas saírem de suas casas. Elas passavam por ele e não o saudavam; sequer lhe dirigiam a palavra. Alguns carregavam velas acesas nas mãos. Homens, mulheres, meninos e crianças, todos iniciam uma reza; a ladainha cresce quando surgem os Caboclos da Jurema Branca e os Pretos Velhos do Cruzeiro Santo – as almas benditas. Padre Arnóbio com o terço na mão inicia um clamor a Virgem Santa e Padroeira de Campos. O Pastor da pequena e única congregação Protestante do povoado aparece com seu terno cinza de todos os dias, e se junta ao povo. Ele deixa a bicicleta no meio fio da praça para se unir à multidão orando em voz alta o Salmo 91. O religioso evangélico acreditava que Deus só olhava para os crentes protestantes. Em frente ao santuário de São José um milagre acontece perante os olhos de Tiago. O povo, suas histórias, e sua memória ressuscitam das cinzas em atitude de fé e amor. Os negros da senzala perdoaram seus antigos senhores. Um homem de pele avermelhada, bigode fino, beiços finíssimos cospe o fumo mascado na boca. Um besouro cascudo morre ao contato com a baba sinistra. Os capangueiros também perdoaram seus algozes – os fazendeiros. Mas disseram que a coisa podia tornar. Suas almas foram levadas para o espaço em um facho de luz. Os capangueiros da jurema disseram que dariam uma segunda chance ao povoado e que Okaru estava muito alegre com o arrependimento das pessoas. Dona Rubenita, uma evangélica antiga do Jabeberi, ficou tão feliz que deu uma aleluia tão forte, que seus dentes caíram na bosta do boi. A chapa encrustou-se no bolo fecal, mas, a mulher nem se incomodou, tamanha era sua alegria. O rapaz do jogo do bicho confessou publicamente que não levava as apostas do povo à casa do bicheiro. Por incrível que pareça, o Jabeberi perdoou o agravo. A menina que namorava um homem casado disse que não mais faria isso. O traficante Zaltinho decidiu parar seus negócios. Seu Zé da venda garantiu que ia mandar consertar a balança que estava, segundo ele, descalibrada. Dona Neusita prometeu, em alto e bom som, que jamais levantaria agravo contra uma pessoa – “Eu estou arrependida”. Os pardais dos pés de juás se assustaram um pouco ao ouvirem a confissão da anciã. A comoção era imensa. O chão da praça ficou encharcado de lágrimas. Tiago tenta falar com as pessoas e ninguém o ouve. As aves horrendas sumiram do céu. Um papagaio muito sabido apareceu do nada e falava com o povo. “Tá vendo? Tá vendo? É o canço!”
- Tiago! Tiago! Está vivo?
- Sim, estou!
- As aves sumiram. Vamos voltar! O barulho de foguetes estourava lá embaixo no povoado. Não havia mais perigo. As pessoas comemoravam a vitória.
“Tiago subiu a serra e o chão tremeu;
Nos pastos do Jabeberi tem cabra macho e mulher bonita.
Não adianta mexer com a menina que a espingarda grita.
Foi na mão de Tiago que o carcará padeceu”.
A popularidade de Tiago aumentou depois do problema dos urubus. A eleição veio e o homem foi eleito novamente. Quatro anos depois foi convidado para ser vice-prefeito. Sua carreira política não parou. Contudo, o povo não sabe, nunca soube, e nem saberá o que houve. Os ossos da barragem foram desenterrados e sepultados com muito respeito. Tiago foi buscar um Pajé Cariri-Xocó para fazer a cerimônia. Enquanto o índio fazia seu rito, no alto da serra, aparecia a figura de um índio observando tudo.
Os anos passaram. Rozental mudou de povoado. O pedagogo foi trabalhar em Moita Bonita. Dizem que de noite, o povo de lá vê uma mula- sem- cabeça. Será isso verdade? A pequena Sueli não crê em mulas desse tipo. Um dia ela disse: Aqui quando o povo vê urubu no céu, pede perdão a Deus pelos pecados todos. A felicidade foi tão grande que o povo esqueceu a menina morta. O povo não soube, ao certo, o que de fato ocorreu e quem pôs o cianeto.
- Seu Valdo! Vai usar o herbicida hoje?
- Sim, vou!
- Quanto?
- Umas dez sacas. O pasto é muito!
- Mas fede num é seu Valdo?
- E esse bicho é veneno até pra gente!
- A chuva depois num leva não pra dentro dos tanques seu Valdo?
- Deve levar; fazer o que? É carecido! Senão o mato sufoca a verdura. Num é compadre?
- É!
- A pois!...
Roosevelt Vieira Leite, Tobias Barreto 29/04/12