UM SABIO FERREIRO

Da janela do meu quarto, todos os dias, sempre à mesma hora,

ouvia o som que o ferreiro produzia. Sabia de sua existência, mas,

por maior que fosse a minha curiosidade, nunca tivera tanta

vontade de conhecê-lo como tive naquele dia.

O sol ainda não havia nascido e de minha cama ouvia o

martelo que batia com precisão na bigorna, soando a uma sinfonia

de metais tocada por alguém com grande conhecimento musical.

Levantei-me extasiado. Caminhei com lentidão pelo quarto, depois

pela escada que me levou para o andar térreo. O som do ferreiro

ecoava em meus tímpanos e conduzia-me num embalo quase que

espiritual. Meus olhos mantinham-se abertos, mas o caminho que

eu seguia era diferente do habitual. Fui afastando-me em silêncio.

Os ruídos começaram a se modificar, as batidas do ferreiro

aumentavam gradativamente. Eu, agora, ouvia outros ruídos

também, não só aquele que ritmicamente ele produzia. Percebia o

gorjear dos pássaros, o assovio do vento, o murmurar da relva e os

galhos sendo pisoteados pelos animais. Sentia uma paz espiritual

que tomava conta do meu corpo e de tudo que estava a minha volta.

Era como se ele, com suas batidas sonoras conseguisse apaziguar o

mundo, alimentar a minha alma e trazer complacência a minha

mente.

Tinha certeza que minha jovialidade não seria limite para o

meu aprendizado. Eu sempre quisera conhecer o desconhecido.

Ouvir o murmúrio do vento, o estalido dos galhos, as vozes

espirituais que rodeiam o Universo, mas nunca havia conseguido.

As marteladas musicadas do ferreiro faziam com que eu sentisse o

caminho de um novo mundo, de uma nova Era. Tentei apressar os

passos, mas vi que isso era impossível, eles também seguiam as

batidas do martelo. Fui me afastando, não sei por quanto tempo

andei. Talvez, mais alguém ouvisse aqueles sons que me traziam

tanta alegria e bem estar. Não posso precisar o tempo, mas quando

meus olhos puderam ver novamente, vi que estava diante de um

casarão. Fora construído com tábuas duras como ferro. O som

prosseguia rítmico, suave, puro, doce como mel. Fui chegando um

tanto assustado. Meus pés tocavam em plumas, tão macio era o

meu caminhar.

Passei pela casa e deparei ao fundo com um galpão de tábuas

pintadas em branco. A cor transluzia a esperança, a amizade, o

afeto e, principalmente, o amor. Continuei, até que meus olhos

depararam com a figura do ferreiro. Estava sentado sobre o assento

de madeira e couro. Sobre a bigorna, um pedaço de ferro cilíndrico e

incandescente, o qual ele martelava incessantemente. Só então,

percebi que durante a minha caminhada recolhera, em algum

lugar, em algum ponto, uma barra de metal. Trazia-a segura em

minha mão direita, como se trouxesse um presente para aquele

homem que todos os dias, durante muitas horas, fazia-me feliz

ouvindo o martelar de sua sinfonia. Era velho, barba espessa,

comprida e branca como neve. Soergueu os olhos meigamente e

abriu um sorriso afável, extremamente carinhoso. Senti-me

arrebatado por um novo Eu, uma paz espiritual indescritível,

retribuí o sorriso.

– Há tempos que o esperava. – afirmou mansamente,

enquanto batia o martelo com delicadeza.

Fiquei apavorado e recostei-me junto a um mourão, que

possivelmente um dia servira para amarrar a montaria de algum

visitante.

– Eu? Era eu quem esperava? – indaguei temeroso de estar

sendo confundido com alguém, ou com alguma coisa que naquele

momento de submissão eu não sabia precisar o quê.

Novo sorriso. O trabalho artesanal que o ferreiro estava

fazendo parecia terminado. Ele colocou-o dentro de uma tina com

água, e o metal em contato com o líquido frio fez com que uma

densa nuvem de vapor subisse para o céu.

– Você mesmo, Tiago. – retrucou ele.

Senti minhas pernas trêmulas. Ele conhecia o meu nome e

parecia conhecer-me há muito tempo. Tentei afastar-me num gesto

instintivo. Não pude, algo me prendia no chão. Meus pés estavam

alicerçados, duas pilastras sem qualquer movimento. Tomei

coragem.

– Eu?!... – balbuciei – Como poderia me esperar? Como pode

saber meu nome, se nem sequer o conheço? – inquiri,

aproximando-me um pouco mais. Tinha a barra de ferro na mão, e

se fosse atacado saberia como revidar a uma agressão. Trocamos

olhares por alguns segundos, depois ele disse.

– Não se preocupe. Não tenha medo. O medo é um

sentimento dos fracos. Você é forte. A barra de ferro em sua mão

não foi feita para agredir, mas sim para trazer-lhe ensinamentos, só

eu e o tempo poderemos ensiná-lo. Venha, acomode-se. – pediu o

velho apontando um banco a poucos metros do seu.

Caminhei ainda nervoso, mas satisfiz o seu pedido.

– Quem é o senhor? Como pode saber o meu nome? – insisti

com as perguntas. O velho estendeu a mão, solicitando com

delicadeza a barra que recolhi em minha caminhada. Não tive

medo, levantei-me e dei-a esboçando um sorriso. Queria

demonstrar que confiava nele e que me sentia feliz por estar ali. Só

não entendia porque esperara tanto tempo para seguir o som das

batidas, se elas me faziam tão bem.

A barra de ferro foi colocada no forno. Mentalmente imaginei

que o fogo consumiria o metal, não bem o metal, mas suas

irregularidades -a ferrugem, as dobras e as saliências. O velho

deixou-a em fogo ardente e voltou a sentar-se em seu lugar. Olhou

fixamente em meus olhos. Sua face denotava tranquilidade, algo

mágico ou de mago. Naquele momento, não soube precisar com

clareza tudo o que sentia por aquele nobre ancião.

– Então, finalmente Tiago, seguiu o som do meu martelo,

pensei que não viesse mais, tanto foi o tempo que o chamei, sente-se

feliz agora?

Não respondi palavra, apenas movimentei a cabeça de modo

afirmativo.

– Por que demorou tanto a vir?

Fiquei, por alguns segundos, quieto, não sabia responder, de

repente a resposta sobreveio de maneira clara, convincente.

– Porque só agora senti necessidade de ouvir os seus

ensinamentos.

– Como sabe que tenho algo para te ensinar? – a face do velho

franziu.

– Ninguém chama alguém em sua casa para dizer coisas que

ela já sabe, se o chama é porque tem conceitos novos para ensinar. –

retruquei confiante.

O ancião movimentou a cabeça, concordando com minha

resposta.

– Ótimo! Você tem o dom que tanto procuro, certamente

servirá a meus propósitos. – em seguida ficou em silêncio.

O ferro já estava ardente e confundia-se com o fogo, eram

uma só imagem. O ferreiro pegou uma espécie de tesoura e com as

mãos enluvadas em pele de carneiro, retirou o metal. Este havia se

dilatado, como regem as leis da física. Ele cortou um pequeno

pedaço e começou, com habilidade incrível, a movimentá-lo até

transformá-lo em uma bola. Depois, jogou dentro da tina de água e

o vapor subiu em rodamoinhos. O pedaço restante já tinha

perdido o calor e ele o recolocou na fornalha. Depois, olhou-me e

perguntou.

– Sabe o que eu fiz?

Esbocei um sorriso irônico, pois considerei a pergunta idiota

para uma pessoa que, no primeiro instante, transmitia uma luz de

sabedoria e de paz espiritual.

– Claro... o senhor fez uma bola de metal. – ponderei,

apontando para a tina.

O velho continuava a olhar-me fixamente. Olhava ou para o

interior dos meus olhos, ou para o interior dos meus pensamentos.

– O que eu fiz não foi somente uma bola, você pode ter se

confundido. Não se esqueça que nem tudo o que vemos é real. A

realidade é facilmente manuseada. Podemos transformá-la em algo

diferente do que nossos olhos vêem.

Fiquei confuso, não havia entendido o raciocínio do ferreiro,

mas tive medo de dizer-lhe o que pensava.

– Por seus olhos vejo que está em dúvida. Vou explicar, não de

maneira realística, mas em outro sentido: você chega em casa e

conta para sua mãe uma mentira, o que faz com tanta sinceridade e

veemência, que para ela sua mentira torna-se uma verdade sobre a

qual não paira dúvida; no entanto, você sabe que o que disse era

mentira. O que quero dizer é que o que você viu, para você, pode ser

apenas uma bola, pois este foi o seu primeiro pensamento, outros

poderiam vê-la de outra maneira.

– Que outra maneira existe de se ver uma bola? – queria

desnorteá-lo com minha indagação, mas não foi isso que aconteceu.

O velho, sem sair do seu lugar, com uma espátula desenhou

um círculo no chão.

– O que é isso?

– Um círculo. – respondi prontamente.

– Por que não uma bola?

– Porque uma bola rola e o círculo está fixo no chão. – senti que

minha resposta o deixara atônito, mas, mais uma vez me enganei.

– A terra é uma bola ou é um círculo? – indagou o ferreiro indo

retirar o segundo pedaço de ferro do forno.

– Uma bola, é claro. - retorqui levantando-me e puxando a

cadeira para mais perto, queria ver o que ele faria com o outro

pedaço de metal. Além do mais, a conversa deixava-me intrigado e

interessado.

– Então, sua primeira resposta foi errônea. – sugeriu.

– Por que?

– Porque você disse que uma bola rola. Por acaso já viu a Terra

rolar?

– Não!

– Neste caso, sua afirmação foi precipitada. Como eu disse,

nem sempre o que vemos ou afirmamos é verdadeiro. Cada um vê o

que sua mente e seus olhos querem que veja.

Calei-me. O raciocínio do ferreiro deixara-me novamente

confuso. O outro pedaço do metal foi retirado do forno e ele

começou a martelá-lo. Não eram batidas que causassem um som

desagradável, mas sim musical, a mesma música que me trouxera

até ele. Depois de alguns minutos, seu trabalho ficou pronto.

Segurou-o com a grande pinça e o mostrou para mim.

– E isto, o que acha que é?

Agora não poderia errar. Havia visto aquele instrumento

durante toda a minha infância. Meu pai sempre levava

dependurado em sua mochila quando íamos para o campo, na

coleta de alimento.

– Uma foice. Isso é uma foice. – afirmei e insisti taxativamente.

O ferreiro colocou o seu trabalho na água e uma nova coluna

de fumaça subiu se perdendo no ar. Ficamos em silêncio. Ele

estudava-me nos pequenos detalhes. Havia algo, um elo que nos

unia. Éramos parte de um mesmo todo. Eu o aprendiz, e ele o

mestre. A bola e a foice tornaram-se frios. O ferreiro pegou os

objetos e colocou sobre a mesa, depois, um a um, os lixou. Ficaram

reluzentes como o dia.

– E agora o que acha que são? – perguntou, encarando-me

frente a frente.

Não quis mudar de opinião.

– Uma bola e uma foice.

O velho sorriu.

– Pois bem, são suas. Quando descobrir o significado destes

dois objetos, sentirá, novamente, o desejo de seguir o som do

martelo e da bigorna, estará então, apto a aprender um pouco mais

sobre o mundo, sobre a vida.

Dito isso, o velho colocou a foice em minha mão direita e a

bola na esquerda. A paz espiritual que, até então, eu sentia, foi se

dissipando, como se alguém, ou uma entidade, empurrasse-me

para fora daquele humilde barracão. Saí em passos longos,

diferentes daqueles que eu usara pra ali chegar. O martelo iniciou

suas batidas, agora não tão suaves, violentas, como se eu estivesse

sendo jogado de volta para o meu mundo real, materialista.

Caminhei alucinando, em transe. Durante o trajeto esqueci-me por

completo o que tinha nas mãos. Só fui notar quanto tempo estive

fora do meu lar, quando lá cheguei. Já entardecia, e meu pai

voltava do trabalho. Escondi-me entre os arbustos e esgueirei-me

suavemente pela escada até o meu quarto. Agora os objetos já se

mostravam presentes em minhas mãos, eram reais, podia senti-los,

mas para mim, continuavam sendo uma bola e uma foice. Coloquei-

os embaixo da cama e fui tratar dos poucos afazeres que tinha e que

naquele dia, embalado pelo som do martelo e da bigorna, deixara de

fazê-los.

Os dias se passaram numa monotonia que me causava

náuseas. Já não ouvia com nitidez as batidas do martelo. Por

diversas vezes, coloquei a bola e a foice sobre a cama. Não vi

nenhum significado diferente, daquele que eu impusera. Onde

estaria o meu erro? Ou seria o ferreiro o errado? Sonhava com

aqueles objetos. Trabalhava pensando em outras alternativas que

me conduzissem, novamente, até o celeiro. Comecei a achar que

tudo fora um sonho e que minha lucidez estava chegando ao fim. As

batidas sumiram por completo no sexto dia. Eu perdera o contato

com o mundo da magia e do encanto que emanava do ancião.

Entristeci-me. Chorei. Mas, sentia que tinha ainda uma chance de

encontrar o caminho da felicidade, do regresso. O lado certo. O

ponto a ponto de um tecido bem confeccionado.

No amanhecer do sétimo dia, coloquei, pela milésima vez, os

dois objetos sobre a cama. Continuavam sendo uma bola e uma

foice. Minha mente não conseguia impor outros nomes, que

diferenciassem dos primeiros que lhes impus. Sentei e recostei-me

na guarda da cama, estava triste, desolado, cabisbaixo com o meu

fracasso. Neste preciso instante, em que me sentia sozinho no

mundo, minha irmã adentrou, sorria abertamente e posicionou-se

junto à porta.

– Tiago!

Fiz de conta que não ouvi nenhum chamado. Não queria

conversar àquela hora, muito menos com uma menina de dez anos.

Eu tinha dezessete e já me achava dono do mundo. Ela insistiu.

– Tiago!

Olhei de soslaio

– O que quer Cristina? Estou sem vontade de conversar.

Ela se aproximou sorrateiramente, como se adivinhasse

minha solidão.

– Há dias que você nem fala comigo, por acaso eu lhe fiz algo

de mais? – indagou, sentando-se junto a meus pés. Seus olhos

estavam tristes e pediam uma resposta concreta. Percebi o quanto

estava errado em menosprezá-la, abri os braços e a chamei para

junto do meu corpo. Cristina sorriu. Um sorriso meigo e carinhoso.

Abracei-a fortemente e falei.

– Não... meu problema nada tem a ver com você. Eu só estou,

preocupado...

– Preocupado? Preocupado com o quê?

Os dois objetos estavam inertes sobre a cama, bem juntinhos a

ela. Desviei meu olhar para a bola e a foice. Cristina levantou-se,

mais que depressa pegou os dois objetos, um em cada mão.

Primeiro, colocou a foice sobre a cama e, em seguida, a bola logo

embaixo e, no mesmo instante, comecei a ouvir as marteladas do

ferreiro. Eu sempre tentei decifrar o enigma isolando um objeto do

outro, Cristina, na sua pureza de menina, uniu os dois e os

transformou em um ponto de interrogação. Era esta a chave do

mistério. Era isso que o ferreiro queria que eu soubesse: a vida só é

vivida quando as respostas, a uma determinada pergunta, são

dadas. A vida é feita na base do saber. Nada pode ficar sem uma

resposta, tudo tem que ser solucionado.

As marteladas começaram a ficar mais fortes. Não verifiquei

as horas, não contei os minutos, nem os segundos. Queria

encontrar-me com o mestre e explicar que graças a minha irmã,

uma menina, pequena e frágil, havia encontrado a chave do

enigma: a foice e a bola eram, na verdade, um ponto de

interrogação! Assim como é a vida, as respostas somos nós que

temos de buscar. Aquele que fica enclausurado, a espera que

alguém responda por ele, jamais encontrará a felicidade total.

Alegria e pureza invadiram meu ser. Beijei Cristina, uma,

duas, ou mais vezes. Depois, segui o som musical das batidas do

ferreiro, um som angelical que transbordava minha alma de alegria

e paz espiritual. Quais novos ensinamentos eu teria naquele dia?

Cristina quis saber para onde eu ia, não podia dar-lhe

detalhes, mas afirmei que ia em busca de sabedoria e pedi que nada

contasse a nossos pais. Ela pareceu entender os meus sentimentos,

pois despediu-se alegremente. Fiquei feliz por ter sido ela a me

ensinar a chave do reencontro.

Caminhei durante o mesmo tempo que da outra vez, e como

da primeira, não soube precisá-lo. Cheguei ao galpão sorridente,

ouvindo os acordes que me traziam alegria. O ferreiro continuava

sentado no mesmo lugar, parecia até que ele não tinha

movimentado um dedo sequer, desde uma semana atrás. Ele sorriu

ao me ver entrar, e percebi que seus olhos se desviaram para minha

mão esquerda. Estranhei, pois trazia na mão direita a foice, a bola

havia guardado no bolso. O que haveria em minha mão esquerda,

que nem mesmo eu havia notado?

Foi mediante o olhar dele, que também olhei para minha

própria mão. E lá estava, um novo pedaço de metal que havia

recolhido durante a caminhada pela floresta, e assim como antes,

não sei onde nem como recolhi tal metal, minha caminhada parecia

ocorrer em transe. Algo mágico ocorria durante meu trajeto em

direção aos ensinamentos do ferreiro. Sentei-me ao seu sinal e dei-

lhe o ponto de interrogação.

– Fico feliz que tenha descoberto que uma bola e uma foice,

também têm sentidos diferentes. – disse ele, tomando os dois

objetos da minha mão.

Olhei fixamente para o velho.

– Não fui eu quem descobriu, foi minha irmã. – retruquei, não

me sentia feliz em esconder a verdade, lembrei-me de quando ele

disse sobre uma mentira bem preparada.

O sábio ferreiro levantou-se e jogou os dois objetos na

fornalha.

– Não importa quem nos ensina a verdade, o importante é

sabermos reconhecê-la. Se foi Cristina a mensageira de sua lucidez,

ótimo, o importante é que você soube interpretar a imagem que ela

descobriu.

Senti um calafrio percorrer meu corpo. Como poderia um

velho, que vivia perdido em uma floresta, saber tantas coisas sobre

minha família. Seria um bruxo? Ou o próprio Deus, quem eu nunca

acreditara que existisse.

– Como o senhor sabe o nome da minha irmã? – perguntei,

sentando-me novamente.

– Não importa o que sei, mas o que eu tenho para te ensinar, e

o tempo que você tem para aprender. Não é a faca que é importante,

mas sim o corte que ela tem.

Minha mão comprimia o ferro que durante minha caminhada

recolhera. Os ensinamentos do ferreiro a todo instante embaçavam

minha mente. Ele tinha consciência de tudo o que se passava em

meus pensamentos. Como pode um simples mortal possuir tantos

poderes assim.

– Vamos, dê o presente que você me trouxe. – pediu,

apontando para a minha mão esquerda.

Roboticamente, dei-lhe o que fora pedido. Agi, como que

manuseado, por uma mão invisível e poderosa. Novamente, ele

colocou o ferro na fornalha, depois perguntou.

– O que aprendeu com a foice e a bola?

Por uns poucos momentos fiquei perplexo, ele agora afirmava

aquilo que tanto impus e que ele, antes, não aceitava.

– Aprendi que nem sempre o que vemos é a verdade. Aprendi

que tudo tem vários significados ou formas, somos nós quem

modelamos o nosso destino, temos, simplesmente, que deixar ele

passar e tirar o máximo de proveito de tudo o que acontece em

nosso caminho. Nunca devemos temer a escuridão, pois sempre

haverá uma luz em algum ponto, basta que a procuremos sem

temor de não encontrá-la. Foi isso que aprendi.

O velho abriu um sorriso imenso, que me encheu de alegria

e uma vontade incontrolável de aprofundar-me em seus

ensinamentos.

– Bastou uma pequena ajuda, e de uma pessoa que você

considerava insignificante, e que, no entanto, o fez desvendar o

mistério da vida. Nunca ache que você vale mais do que os outros,

somos iguais e diferentes, ao mesmo tempo... Mas, infelizmente,

existem uns que temem procurar o que há de melhor na vida, e se

escondem. Você estava se escondendo, já não ouvia mais o som do

meu martelo, precisou alguém, que o ama muito, lhe mostrar o

verdadeiro significado dos objetos para, só então, sua aura de

conhecimento vir à tona.

Uma infinidade de segundos se passaram até que o velho

retirou o ferro incandescente e o cortou em pedaços iguais.

Colocou-os na água fria e a nuvem de vapor subiu como de

costume. Deixou que esfriassem e depois os exibiu um a um e

perguntou.

– O que acha que são?

Aprendera a lição, nem tudo o que vemos é real. Nem toda

afirmação é verdadeira. Todos os objetos possuem significados

diferentes, depende daquele que o vê. Inicialmente, pareceram-me

duas paralelas achatadas. Se colocasse uma na vertical e a outra na

horizontal, poderia formar a letra L, se colocasse novamente uma

na vertical e a outra sobre a primeira, formariam a letra T. Podeira,

ainda, formar uma cruz, só que um tanto desajeitada pois, uma cruz

possui elementos diferentes. Continuei pensando...

– Então? O que acha que significam esses dois pedaços de

ferro? – perguntou o mestre, tirando-me da aparente tranquilidade

mental.

– Podem ter vários significados, um L, uma cruz, duas

paralelas, mas prefiro dizer que é um T, um T de Tiago, o meu

nome.

O velho movimentou a cabeça negativamente. Momentaneamente,

fiquei enraivecido.

– Por que não pode ser um T? – minha voz soou forte e

contraditória, estava tenso.

– Acalme-se, não disse que não pode ser um T, apenas não é o

significado que gostaria que você visse. O T leva-me a pensar que

você continua achando que tudo o que é seu vale mais que dos

outros. Não quero que se prenda às coisas materiais desse mundo,

não estamos aqui para vivermos, e sim para morrermos. O tempo

que passamos na terra é tão pequeno, tão ínfimo, que devemos

aproveitá-lo para nossos dons espirituais, assim, quando

voltarmos, encontraremos, sempre, um melhor aproveitamento

para os objetos materiais. Entende o que digo?

Relutei em responder. Queria colocar meus pensamentos em

ordem, eu sempre fora um materialista convicto, e agora, um

homem, que eu conhecera a tão pouco tempo, tentava ensinar-me a

essência da vida. O meu pai sempre dizia o contrário, dizia que

“devemos sempre aproveitar o que o dinheiro pode comprar,

usufruir de tudo, pois jamais voltaremos a ter o que hoje temos,

nem sei se um dia voltaremos.”

O velho demonstrava que eu voltaria, e se aproveitasse

a minha passagem para obter ensinamentos, provavelmente,

quando retornasse, teria uma felicidade maior e um

aproveitamento melhor, dos bens materiais, que conseguisse no

meu processo de vivência. Automaticamente, lembrei-me de que

ele dissera: “Não viemos a esse mundo para vivermos, viemos para

morrermos”. Mentalmente, troquei a palavra viver por morte. Senti

que tudo o que eu acreditava, perdia sua coerência.

– Bem... – fui começar a falar, mas o mestre cortou meus

pensamentos, colocando o dedo em riste sobre os lábios. Pedia

silêncio.

– Não precisa falar, já escutei o que você tem a dizer.

O velho me surpreendia mais uma vez.

– Mas eu não disse nada!

– Não precisamos dizer algo em voz alta para que alguém

nos ouça, basta pensarmos e demonstrarmos nossos sentimentos.

– ponderou o mestre, pegando um pedaço de ferro que começou a

martelar lentamente.

O som me colocou num estado de choque, fiquei hipnotizado.

A música causava-me deleite e me levava por novos caminhos. Eu

sentia que minha alma seguia por outros rumos e deixei que ela

seguisse por onde bem entendesse. Novamente, senti meu corpo

flutuando, uma sensação incrível. Eu via o meu próprio corpo, era

minha alma, o meu verdadeiro Eu que passeava e que se envolvia

no mundo que nos cerca. Via o meu Eu e o do ferreiro, era como se

fizéssemos parte de uma nuvem, a mesma nuvem que saía do metal

aquecido quando tocava a água fria. Percebi então, que o ferreiro

tinha milhares de dons, ele conseguia ouvir, sentir e perceber

qualquer gesto, qualquer pensamento, qualquer coisa que meu

corpo fizesse. Não importava o sentido em funcionamento: o olfato,

o tato, a audição, a visão ou o paladar, tudo o que eu sentia ele

também poderia sentir. Acreditei outra vez que ele fosse o Deus,

aquele ser onipotente de que tanto a minha mãe falava e que meu

pai rejeitava, com veemência. De repente, como num estalar de

dedos, voltei à realidade. O ferreiro continuava a martelar os

pedaços de ferro, mas eu só consegui escutar os sons quando a

realidade tomou conta do meu corpo. Ele esboçou um longo

sorriso.

– Onde esteve? – indagou, olhando-me pelos cantos dos olhos.

Sentei-me um tanto acanhado e temeroso pela resposta que

pudesse dar.

– Não sei explicar, só sei que foi uma sensação gostosa,

atraente, e que gostaria de sentir novamente. – retruquei, olhando

fixamente em seus olhos.

– Ótimo! Você está conseguindo despertar o espírito de seu

corpo, chegará a hora em que você sentirá a verdadeira essência do

viver. O corpo é apenas um invólucro, o conteúdo é o néctar da

vida, você conseguiu fazer com que seu espírito se deslocasse de

seu corpo e visse a realidade materialista deste mundo. Somos

feitos de carne e ossos, um amontoado de células que funcionam

esquematicamente de acordo com estímulos hormonais. Quando

esses estímulos param, o nosso corpo apodrece, os vermes o

devoram e só resta o nosso espírito, este sim, é indestrutível,

imensurável, incontrolável. O corpo se consome com o tempo, o

espírito aprende a cada lição de vida. – o velho parou bruscamente,

mostrou-me novamente as duas barras paralelas com vinte

centímetros de comprimento, com outros poucos centímetros de

diâmetro.

– Então, já pode me dizer o que são esses objetos?

Relutei em responder, não queria errar, o erro fazia com que

me sentisse mal, como uma pessoa sem dom para o saber.

– Vamos, responda, não tenha medo de errar em sua resposta,

aquele que teme o erra, nunca chegará a uma resposta coerente e

sensata. O homem só aprende a realidade da vida cometendo erros,

quem faz tudo certo ou acha que faz, nunca saberá o verdadeiro

caminho da verdade, a vida é feita de erros e acertos, só quem erra

saberá dar valor quando fizer algo certo.

O ferreiro ficou me olhando, não sei de onde veio o

pensamento, mas respondi sem o menor receio.

– Essas duas barras correspondem ao sinal de igualdade.

O velho sorriu, não foi um sorriso de apoio, ou de consolo, mas

expressava que a minha resposta fora acertada.

– Que bom! Você começa a desenvolver os seus dons, é isso

mesmo, não é um L, ou um T, ou uma cruz, é um sinal de igualdade.

Tudo nesta vida tem dois lados, dois pesos, duas medidas, e um é

completamente o oposto do outro. O bem e o mal. O bom e o ruim. A

vida e a morte. O Deus e o diabo. Tudo tem que seguir no mesmo

ritmo, você e só você, poderá modificar essa situação. Somente você

pode aprimorar seus dons, eu sou apenas instrumento, cabe a você

aprender a manejá-lo. Cada ser humano é o que quer ser. Se nasceu

pobre e assim continua, é porque o quer, não teve coragem de

procurar a riqueza. Nenhuma entidade, nenhuma religião, nenhum

Deus, tem o direito de obrigar um homem a viver na miséria. Todos

os credos que assim o fizerem, estão negando a própria existência

do homem. Nenhum ser foi criado para ser sacrificado, para sofrer,

para sentir na pele as agruras da vida. O homem foi feito para

procurar a felicidade, a espontaneidade, e isso terá que vir, não

importa por quais caminhos, desde que tais caminhos não

prejudiquem seu semelhante. Se a riqueza é um desses caminhos,

vá caminhar por ela, faça com que o dinheiro também tome parte de

sua vida. Somente é rico aquele que se sente bem diante do

dinheiro, entretanto, não faça sua vida em função dele, pois se

assim o fizer, você se tornará um escravo, um espírito obcecado

pelo poder, já não será mais um homem, mas somente um ser que

vive em função do prazer material. A vida é mais do que isso, a vida

é sentir o sorriso de uma criança, o esforço de um velho, o carinho

de uma mãe, o desespero de um pai, e principalmente, o amor de

uma mulher.

Eu escutei as palavras fluírem dos lábios do ferreiro, como

favos de mel, algo doce, puro e extremamente atraente. Sentia-me

feliz, pois minha resposta fora acertada, já não precisava ir para

casa e esconder os objetos embaixo da cama. Já não precisava mais

da ajuda de minha irmã. Ou será que precisava?

– Então, era esse ensinamento que queria que eu aprendesse?

– perguntei, olhando para os dois objetos de simetria igual.

O ferreiro levantou-se e foi até a fornalha, com o prendedor e

com as mãos enluvadas retirou um novo pedaço de ferro

incandescente. Aproximei-me um pouco mais. O ferro estava

ardente e não apresentava nenhuma figura, era apenas uma barra

de ferro vermelha como sangue.

– Sabe o que é isso? – perguntou o sábio.

Sorri, não poderia fazer outra coisa que não, sorrir.

– Como posso saber o que é, se o mestre ainda não elaborou

nenhum desenho com ele? – ponderei, tentando mostrar como era

irracional a sua pergunta.

– Engana-se, muitas respostas estão guardadas em nosso

sexto sentido.

– Sexto sentido? – repliquei, desconhecia esse novo sentido,

aprendera na escola que eram cinco os sentidos humanos, qual

seria esse sexto sentido?

– Venha, sente-se e fique olhando para o ferro incandescente,

se daqui a alguns segundos ou minutos, quando ele esfriar, você

ainda não conseguir distinguir o que quero, irá para casa, e tenha

certeza de que somente retornará ao meu convívio, quando o som

de minhas batidas o chamar novamente, pois então estará apto a

responder a mais esta indagação. Você sabe, ou pode imaginar o

que é isso?

O velho levantou o pedaço de ferro que ia pouco a pouco

perdendo sua cor púrpura e tornando-se escura como a noite.

Deixei que os minutos se passassem, não tinha a mínima idéia do

que ele queria que eu dissesse e para falar a verdade, não imaginava

o que aquilo poderia significar, além de uma barra de ferro.

– Perdão senhor, mas não vejo nenhum outro desenho

diferente. Para mim, isso é uma barra de ferro e até que o senhor a

faça parecer algo diferente, continuará a ser, apenas, uma barra de

ferro.

Incrível! Logo que expressei os meus pensamentos, uma

nuvem de mal estar pairou sobre o meu corpo. O meu espírito

pareceu conturbar-se, sem perceber, comecei a caminhar em

direção a minha casa. O meu mundo material chamava-me de

volta. Não dei muitos passos e o velho colocou a mão sobre o meu

ombro, dizendo.

– Vá, mas não se esqueça de levar este pedaço de ferro,

alguém, ou você mesmo, descobrirá o verdadeiro significado que

quero que aprenda.

Peguei a barra e segui em transe o meu caminho. Um vazio

imensurável tomou conta do meu corpo e do meu espírito. Não

estava desorientado, mas entristecido. Sabia, no entanto, que mais

cedo ou mais tarde, eu chegaria à resposta certa, era apenas uma

questão de tempo, e disso eu dispunha a vontade, tinha apenas

dezessete anos. Caminhei em silêncio para a minha casa, era lá que

descobriria a resposta.

Como da primeira vez, os dias passaram melancolicamente,

os acordes do ferreiro não chegavam até mim. No início, senti

tristeza, angústia e mal estar, com o passar do tempo a solidão

tomou conta do meu corpo e, logicamente, do meu espírito. A barra

de ferro permanecia jogada embaixo da cama, não tinha serventia

alguma. Era apenas um metal, um objeto que parecia não fazer

parte da minha vida, e era isso que eu começava a acreditar.

Passaram-se dez dias sem que nada de novo acontecesse, mas

durante a madrugada do décimo primeiro dia, fui acordado por

meu pai. Apesar de morarmos longe da cidade, nunca tínhamos

tido problemas com pessoas estranhas, entretanto, algo estava

acontecendo de errado naquela noite.

– Tiago, acorde! ... – disse ele, chacoalhando-me da cama.

Abri os olhas ainda meio zonzo.

– O que houve pai? O que está acontecendo? – perguntei,

revirando-me de lado.

– Vamos Tiago, levante-se, preciso da sua ajuda.

Esfreguei os olhos com ambas as mãos, o sono ainda tornava

meus membros preguiçosos, sem vida.

– Puxa pai, ainda é madrugada... O que é tão importante para

que me acorde a uma hora desta? – indaguei outra vez

Ele acendeu a luz do abajur.

– Estou escutando barulhos na cozinha, alguém arrombou a

porta lateral. Aqui em cima estamos protegidos, mas não sei por

quanto tempo!

Senti o corpo estremecer. Estávamos sendo assaltados, ou,

talvez, algo pior ainda pudesse acontecer. Levantei-me de pronto.

– O que quer que eu faça? – perguntei, me colocando

rapidamente em pé, logo em seguida, não sei por qual motivo,

reclinei-me rente a cama e peguei a barra de ferro, ao tocá-la, uma

força estranha pareceu me dar proteção, como se milhares e

milhares de emanações espirituais estivessem sendo absorvidas

pelo meu corpo naquele momento.

– Desça pela janela, vá até o celeiro e telefone para a polícia.

Vamos precisar de ajuda.

Era verdade, tínhamos dois telefones em casa, o principal

ficava na sala de baixo e o outro, a extensão, meu pai colocara no

celeiro, na verdade dirigia seus investimentos de lá, enquanto

cuidava dos animais. Não podíamos descer pela escada, se alguém

tinha entrado pela cozinha, provavelmente estava junto ao telefone

da sala, ou já o teria desligado, mas não teria como saber da

extensão do celeiro.

O pedido, apesar de parecer estranho, fazia todo o sentido

para mim, pois do lado de fora do meu quarto havia uma grande

árvore e seus galhos chegavam até minha janela. Por várias vezes

apostei com meus pais ou minha irmã, quem chegava primeiro na

porta de entrada da casa, eu sempre ganhava. Eles nunca

desconfiaram de minha “agilidade”, até o dia que escorreguei e caí

da árvore, o tombo me deixou desacordado por um tempo e meu

pai, por precaução, proibiu-me de fazer tal peripécia novamente.

Agora, no entanto, ele pedia para que voltasse a escalar a minha

passagem secreta.

Comecei a acreditar que o episódio que estava ocorrendo

tinha algo a ver com os ensinamentos do ferreiro. Fiquei quieto, não

toquei neste assunto com meu pai, ele não iria acreditar em uma

palavra, sequer, do que eu dissesse. Armei-me com a barra de ferro

e desci, com agilidade, pelos galhos. A noite estava escura e mal via

onde pisava, mas meu “sexto sentido” parecia conhecer aquela

árvore, centímetro por centímetro.

Ao chegar ao solo, não fui para o celeiro, caminhei em direção

à porta da cozinha, estava escancarada e a fechadura arrombada.

Alguém, um ou mais homens tinham entrado por ela. A sensação

de violação e medo voltou a me perturbar, ouvia o barulho, ele ou

eles, tentavam quebrar a fechadura que dava acesso ao andar

superior, minha mãe e minha irmã corriam perigo. O que eu

poderia fazer com uma barra de ferro, apenas? As vibrações

espirituais voltaram. Caminhei em direção aos ruídos, de repente

senti uma mão tocar o meu ombro, voltei-me com a barra em punho

e me deparei com meu pai, ele também tinha seguido o caminho da

árvore. Não sei porquê, mas a figura do ferreiro me veio à mente no

mesmo instante. Meu pai colocou o dedo sobre os lábios e pediu

calma e silêncio, o estranho é que ele tinha uma barra de ferro igual

à minha, não tive tempo de inquiri-lo. Caminhamos a passos lentos,

tínhamos a vantagem de conhecer a casa, palmo a palmo. Algumas

luzes continuavam acesas, meu pai foi até a caixa forte e desligou a

chave geral, a casa virou um breu, ouvimos vozes desorientadas.

Eram dois os assaltantes, tentaram acender fósforos, mas um vento,

vindo não sei de onde, apagou a luz artificial. Em silêncio, nos

aproximamos, os intrusos estavam armados de facas, e elas

reluziram à pouca claridade dos fósforos que tentavam ser acesos.

Não sei bem de onde tiramos a calma necessária, mas fomos nos

aproximando, lentamente, até que chegamos a ouvir seus pulmões

retirando o ar do ambiente. Foram dois golpes, não posso precisar a

violência, mas tenho certeza de que não foi exagerada, os intrusos

caíram inertes. Meu pai correu para ligar o relógio e a casa se

acendeu rapidamente. Comecei a ouvir as batidas do ferreiro, eram

suaves, quase imperceptíveis, concluí que seus ensinamentos ainda

não haviam se completado, faltava algo mais, algum novo

pormenor, e ele veio logo a seguir. Estava olhando os dois corpos

caídos no chão, quando meu pai gritou.

– Tiago, cuidado!

Virei no mesmo instante, e a faca do terceiro assaltante

chocou-se com a barra e, então, o agredi junto ao crânio. O terceiro

homem caiu como um peso, sem estruturas que pudessem segurálo.

As batidas do ferreiro começaram a soar mais fortes em meus

tímpanos, a potência do seu chamado aumentava. Percebi que seus

ensinamentos agora estavam completos, precisava somente,

compreendê-los, esmiuçá-los em cada pormenor.

A barra! Uma simples barra de ferro poderia tanto ser usada

para salvar uma vida, como para tirar outra. Tudo na vida pode ser

feito tanto para o bem, quanto para o mal, somos nós quem

direcionamos nossos sentimentos. Todo homem nasce com amor

no coração, a sociedade que o deturpa, que o faz seguir por outros

caminhos. Mas, a sociedade não é a única culpada por tais

caminhos, o homem, é ele que se deixa levar pelos ensinamentos

errôneos, não questiona, não pergunta, não luta pelo saber. O que é

certo? O que é errado? Onde prejudico alguém? Por que vou

prejudicá-lo? É certo? É errado? Como a barra de ferro, que pode

tanto ser um instrumento de defesa, como de ataque, o momento e a

finalidade do uso é que distinguem a racionalidade do Homem.

Faltavam poucas horas para o sol nascer, eu e meu pai

tínhamos cumprido nosso dever, nossa família estava protegida.

Telefonamos para a polícia e os assaltantes foram presos. Nossa

casa, nosso lar, nossa família poderia, novamente, dormir em paz,

eu, no entanto, não. Esperaria somente que os primeiros raios de sol

clareassem o dia por completo, as batidas do meu mestre soavam

fortes, e eu sentia uma necessidade imensa de vê-lo e demonstrar

que seus ensinamentos haviam sido compreendidos.

Ao amanhecer do dia, comecei minha caminhada, e apesar de

ter passado a noite em claro, sentia-me feliz ao seguir aquele mesmo

percurso, pela terceira vez, e como sempre acontecia, entrei em

transe. A floresta era densa, sozinho eu jamais faria aquele trajeto,

mas não caminhava só, as batidas do ferreiro direcionavam a minha

caminhada. Era como se uma corda estivesse amarrada ao meu

corpo, me puxando lentamente, até chegar ao meu destino.

O que me deixava impressionado era que o sábio parecia

sempre estar do mesmo jeito, tudo a sua volta parecia intocado,

inerte, como se há milhares de anos ninguém movesse uma palha

sequer a sua volta. Sempre que chegava ao celeiro, o via como uma

pintura, uma grande obra de arte, produzida pelas mãos de algum

mestre impressionista. Comecei a notar que os meus sentimentos,

ali, se tornavam agudos, captavam desde os odores mais sutis à

textura mais fina. Minhas mãos, meus olhos, meus ouvidos, minha

boca, minhas narinas, transcendiam o racional e chegavam ao

absurdo de captarem o ruído de gravetos sendo mexidos em um

formigueiro. Bastava que eu me concentrasse em um determinado

som e ele soava, claramente, aos meus ouvidos. Parei junto a

enorme porta e o velho levantou a face com displicência, seus lábios

esboçavam o mesmo doce e convidativo sorriso.

– Entre Tiago, pelo que sei aprendeu uma nova lição. – disse,

enquanto martelava um metal diferente daquele que usava

habitualmente.

Senti-me forte, orgulhoso e feliz.

– É verdade! – retruquei sentando-me a sua frente.

Estávamos a poucos metros um do outro, senti uma vontade

imensa de tocá-lo, queria constatar se aquele homem era feito de

carne e ossos como eu.

– Por que não toca? – perguntou ele, olhando fixamente em

meus olhos.

Havia me esquecido daquele maravilhoso dom, ele conseguia

ler meus pensamentos. Pensei se um dia poderia fazer o mesmo.

– Claro que poderá. – afirmou o sábio, taxativamente.

Fiquei um tanto sem jeito e pensei em falar sobre esse mal

estar para ele, sua voz, porém, soou claramente.

– Nunca tenha medo de expor o que pensa, pois aquele que

guarda seus sentimentos, jamais saberá compreender os

sentimentos dos seus semelhantes. Nunca guarde tristezas em seu

coração, conviva com elas, mas o sentimento que você tem que ter

sempre ao seu lado é a alegria, ela que nos leva a dar passos a frente,

que nos empurra no caminho da realidade e da vida. A tristeza

serve, somente, para que você se lembre de que a alegria existe.

Concordei movimentando a cabeça.

– Mas como posso sempre ser alegre, se a tristeza também faz

parte da minha vida? – perguntei.

Foram duas, talvez três marteladas e, então, veio a resposta.

– Preste mais atenção no que digo, não falei que você deve

viver só de alegria, falei que a tristeza é, na verdade, o néctar, o

insumo, que fará você dar valor a vida. Quando algo triste

acontecer em sua vida, não lastime, não blasfeme, não grite, apenas

absorva os ensinamentos dessa tristeza, daí, então, cada segundo

de alegria que tiver, será duplamente valorizado. Entende?

– Entendo.

– Pois bem, o que aprendeu e o que me trouxe? – perguntou o

sábio.

Instantaneamente, olhei para minhas mãos, não recolhera

nenhum metal pelo caminho, mas tinha a resposta para a primeira

pergunta.

– Não lhe trago nada, apenas os ensinamentos com a barra de

ferro.

– Sempre trazemos alguma coisa, mesmo que nossas mãos

estejam vazias. Falaremos sobre isso num outro dia, talvez seja a

lição mais importante para o outro estágio de sua vida.

Aquelas palavras causaram-me tristeza momentânea, o sábio

percebeu o meu sentimento.

– Lembre-se do que eu disse a poucos minutos.

Ele parecia sempre ter razão, era Deus, pensei. Um sorriso

irônico esboçou em seus lábios, fiquei quieto por alguns instantes e

dei-lhe a resposta.

– Uma simples barra de ferro pode ser uma arma, ou um

escudo de defesa, depende do momento, ou das mãos que a estejam

usando. Foi isso o que aprendi, ontem à noite. – minha voz tinha o

timbre da certeza.

– Quase isso. Na verdade, você aprendeu apenas uma parte da

lição, se esqueceu de uma outra.

Não deixei que o sábio terminasse a sentença.

– Outra? Qual outra? – indaguei, tornando-me um tanto

afoito.

– Seu pai! Sua família, você se esqueceu de que eles faziam

parte de sua lição. Não aprendeu nada com isso?

Fiquei pensativo. Sempre que estávamos em dificuldade,

lembrava do meu pai.

– Guarde dentro deste símbolo seus rancores, suas mágoas,

suas dores, suas tristezas, deixe que sua mente, seu corpo só sinta a

beleza da vida, mas não se esqueça, só faça isso depois de tirar

proveito da vida terrena.

Sorri.

– Então, tudo de ruim que acontecer durante minha existência

eu posso guardar nessa caixinha? – perguntei um tanto incrédulo.

– Por que não? – Jesus não transformou uma migalha de

comida em alimento para uma multidão?

– Mas ele era filho de Deus! – retruquei.

– E você, não é?

Abaixei a cabeça, envergonhado.

– Mas ele era o filho único – insisti.

– Todos somos únicos. Ninguém é igual a ninguém, podemos

ter traços fisionômicos semelhantes, mas espiritualmente, somos

distintos. Dentro de nós não existe nada superior a nós mesmos.

Nós somos deuses, cada ser humano é um deus. Uns são deuses

do bem e outros, deuses do mal. O caminho que cada um

segue depende, exclusivamente, da capacidade de absorver

ensinamentos. Nunca tenha medo de enfrentar a vida, como lhe

disse, é errando que se aprende.

Coloquei a caixa de metal sobre a mesa e levantei-me, o sábio

fez o mesmo, nos abraçamos demoradamente, e senti que nunca

mais o veria, ao menos, não daquela forma.

Hoje, tenho 42 anos e sinto em dizer que nunca mais o vi, para

ser bem honesto, às vezes, me pergunto se de fato ele existiu. Dentro

da caixa, de material que desconheço, estão todas as minhas

mágoas, tristezas e dores, e este último ensinamento, pude

constatar e colocá-lo em prática mais tarde, naquele mesmo dia,

logo que voltei para casa.

Ao anoitecer, meu pai se sentiu mal e veio a falecer no dia

seguinte. O sábio tinha razão, meu pai pressentira que o seu fim

estava próximo e os acontecimentos do dia anterior permitiram que

ele partisse em paz, sabendo que eu, seu filho, tomaria as rédeas da

carruagem e conduziria a nossa família pelo caminho da verdade,

da vida.

Com o tempo, passei os ensinamentos que tive para minha

mãe e minha irmã, caso acredite, faça a sua caixinha, transfira todos

os sentimentos ruins que fizeram ou farão parte se sua vida para

ela.

Não se esqueça de tirar proveito desses acontecimentos, antes

de depositá-los na caixinha e você será feliz.

Claiton Cabral de Vasconcelos ton bralca