QUE CACHORRADA !

Na segunda metade do século XXI do Terceiro Milênio, a humanidade se depara com uma pandemia de um vírus desconhecido, que desatina o planeta. Muitas pessoas morrem e os países fazem quarentena para evitar a contaminação letal. É com este cotidiano alterado que as pessoas começam a ter de ficar mais tempo dentro de casa, com filhos, trabalho e animais de estimação. Nesse período nota-se uma tensão maior entre homens e cães trancafiados num mesmo espaço.

Sem ninguém notar o que fazia, num processo inconsciente há uma adaptação simbiótica entre eles, e as pessoas passam a dialogar usando expressões caninas, invertendo a hierarquia familiar, e colocando o cão como centro de seu interesse. A expansão do delivery e dos pets cresce exponencialmente. Até mesmo os mendigos nas ruas passam a ter o seu” melhor amigo” do lado. O desemprego e a fome levam ao abandono dos cães nas ruas que retomam o agrupamento em matilhas, uma organização típica de áreas florestais.

As autoridades preocupadas iniciam uma campanha “Adote seu cão de estimação” para diminuir o risco das matilhas soltas pelas cidades. Com esta perspectiva impõem uma Cartilha nas Escolas usando as expressões caninas usadas pela população: Mundo Cão, Estar com a Cachorra, Soltar os Cachorros, Cão Chupando Manga, Gênio do Cão, Matando Cachorro a Grito, Cão do Inferno, Dias de Cão, Cachorrão, Cadela, Cachorrinha, Au-Au. Como a pandemia não passa a criançada recebe lições on-line e este novo vocabulário, só faz piorar os conflitos familiares.

Fora das moradias tudo pode acontecer pela tensão e medo das pessoas em ruas cercadas de matilhas, ambulantes, mendigos, camelôs e gente indo e voltando de seus afazeres. Um ambulante que vende balas com tabuleiro encostado na parede foi surpreendido por um homem com seu pastor alemão, que ele solta para defecar justo em baixo do cavalete. O vendedor ficou puto, mas oferece um plástico ao dono para recolher o cocô. Mas, o homem olha para o baleiro, preto, pobre e grita: “Estou cagando e olhando. Se quiser, pegue a merda e limpe.”

Um outro fato que todos sabem, do que aconteceu com o homem transsexual, um tipo folclórico, exibido e falastrão, vivendo de esmolas, conhecido por abordar mulheres e, gritando para todos ouvirem, com deboche, se aproximava e pedia dinheiro. Quando não recebia xingava a todos da redondeza. Aos poucos foi mudando de abordagem. Chegava latindo e dizia com voz melosa: “Sou um poodle e estou com fome”. Como rendeu esta atitude nova! Quando estava com a cachorra mudava o refrão: “Quem disse que cão que late não morde? Eu mordo, vai passando a grana da ração”. Pessoas presentes às cenas dizem que imitava tanto o poodle como o pitbull. Era mesmo o cão chupando manga!

Com o aumento dos conflitos causados pela identificação dos homens com os cachorros, o explosivo traveca acaba morto em uma esquina, desdentado e sangrando, cheio de mordidas e nacos do corpo retirados. Patética figura humana que lembra a antiga canção Geny de Chico Buarque. A autópsia confirma a atuação conjunta dos homens e dos cães no assassinato.

Estes fatos parecem casos isolados, mas fazem parte do caminho de transição que, de um lado coloca os cães próximos aos animais selvagens e, do outro, os homens no processo de involução para uma etapa inferior dos hominídeos. Contudo, parece mais um retrocesso do homem que do cão, pois estes descendem dos lobos e, ao retornar às matilhas conseguem circular e acasalar fora das cidades. Na selva alinham-se aos lobos e trocam as matilhas por alcateias. Ficam livres dos homens que os tratam como humanoides, e ajudam a preservar a raça dos lobos em extinção.

O Terceiro Milênio já se aproxima de sua metade e os núcleos cada vez mais reduzidos de sobreviventes iniciam uma tentativa de salvar a raça humana em extinção. A duras penas conseguem manter a escola, que é o único espaço preservado em um mundo cercado de bichos. As pessoas mais lúcidas se organizam em células como faziam em priscas eras. Alguns conservam livros de seus ancestrais. Formam células de adultos com seus filhos, crianças e adolescentes, que se infiltram nas escolas para reavivar a memória histórica que ficou perdida na poeira do tempo.

Querem ativar a consciência possível contra os ensinamentos das Cartilhas que ainda enaltecem os animais, para submeter os alunos à tutela dos grupos dominantes associados – cãeslobo ou lobocães. Os rebeldes estimulam seus filhos a ler a obra de Hobbes, O Leviatã (1651) que cunhou a expressão “O homem é o lobo do homem”, clássico do segundo milênio. Uma ferramenta que usam para derrubar a lavagem cerebral contra os humanos, e com a meta de ampliar o número de opositores à supremacia animal. Todo esse esforço é em vão, já se passam séculos e a ciência, o conhecimento e todas as descobertas científicas foram derrubados como lixo da História. Estes grupos de rebeldes são perseguidos e obrigados a fugir de aglomerações dos submissos hominídeos para formarem guetos fortificados.

O mundo do século XXI poluído e cheio de impasses entre homem/natureza e homem/homem não pode ser comparado ao fim do Terceiro Milênio. As matilhas urbanas e hominídeos entram e saem dos edifícios abandonados da primeira e segunda décadas deste século, que servem como abrigos disponíveis a todos. No entorno tem montanhas de dejetos que servem de esconderijo das diversas matilhas, que as usam antes que as chuvas as espalhem empesteando o ar. Estes lugares com tanto adubo, viraram bosques, e as árvores ganham espaço e até florescem. É um mecanismo de compensação, morre a civilização e vive a natureza.

Com o passar dos séculos e com a proximidade do IV Milênio o planeta começa a dar sinais de esgotamento. A terra fica mais fria e o sol mais fraco perde o brilho e o colorido. Nos espaços das antigas cidades, há sítios arqueológicos cheios de heras que crescem nos muros e nas fachadas dos escombros de casas e edifícios. Todos os animais para suportar a terra gelada nascem mais peludos o que facilita o uso de artifícios para se camuflarem em homem-bicho ou bicho-homem.

Faz-se uma seleção darwinista em que só os mais aptos sobrevivem. Essas três raças nunca desistem de recriar uma espécie nova, que tivesse as qualidades de cada uma delas. No passado remoto, as pesquisas do DNA de cães comparados aos homens diziam que essas espécies compartilhavam 84% do mesmo material genético. Quase no fim do mundo é que a fusão de DNA homem-cão-lobo provoca o ressurgimento de um animal lendário, meio homem e meio lobo, o Lobisomem.

Há uma retomada da raça humana, híbrida de cão com lobo, cuja força e poder é tanta que, é possível planejar um controle demográfico de todos os outros animais que habitam o planeta .Sob o argumento de que a Terra estava em fase de declínio iniciam uma repressão brutal, caçando e matando nas ciladas que armam para promover chacinas. A maioria dos animais subordinados assistem a tudo com passividade, pois acham que é necessário para garantir a vida na terra.

Depois de um certo tempo reduzidos a uma minoria de Lobisomens, em vias de uma luta fratricida, escutam um som mecânico, gutural como a voz de um Deus vingador, irado que grita: “O dia da sua desgraça aproxima-se célere. O homem é o pior inimigo do homem. Decreto o fim da humanidade e de todo animal semelhante ao homem. A voz desapareceu com uma risada diabólica.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 29/01/2022
Código do texto: T7440387
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