LÁ VEM O MONSTRO!

Dizem os antigos que há muito e muito tempo atrás, em um recanto qualquer do mundo, quase todos os animais viviam em sociedade. Abrigavam-se numa espécie de fortaleza guarnecida à frente pela mata fechada e ao fundo pelo mar revolto. A vida naquele lugar era muito difícil, bastante complicada, principalmente porque eram muitas espécies com diversos pendores convivendo num mesmo espaço. Obviamente que todos refreavam seus instintos bestiais em prol da coletividade. Também existiam severas regras de conduta, prescrições consuetudinárias que todos deviam obedecer sob pena de mergulharem num caos incontrolável. Se tinha regramento social, por consequência existiam aqueles indivíduos com poder de coerção para manter o mínimo de equilíbrio.

Pois bem, nessa aparente anarquia os animais viviam em estamentos conforme a força, a esperteza e a ferocidade de cada gênero. Os grandes felinos, como o leão, o tigre, a onça pintada, os leopardos dividiam a liderança com os ursos, outros carnívoros sinistros como as hienas e os gigantescos crocodilianos, e também com os paquidermes. Os melhores lugares para morar, as refeições mais suculentas estavam reservadas para eles. Um pouco abaixo estavam os canídeos e as cobras. Lutavam com unhas e dentes, rastejavam sem parar para conseguir se sustentarem. Por isso, às vezes, também conseguiam privilégios conferidos apenas aos mais poderosos. Na verdade, todos temiam a força dos duros incisivos da matilha e o veneno fatal dos ofídios. O restante dos habitantes era composto pelos bovinos, ovinos, muares e aves. Esses pegavam no pesado e viviam com o que sobrasse. Não raro alguns deles desapareciam sem deixar qualquer rastro.

O curioso é que os símios, animais tão inteligentes e habilidosos, não faziam parte daquela sociedade. Naquele recinto eles não eram tolerados. Estavam proscritos a séculos. Para os mandatários do lugar eles eram baderneiros demais, renitentes à disciplina, desonestos, profanos, obscenos, cruéis, escatológicos e mentirosos. Por isso viviam afastados na densa floresta em frente àquele fortim guarnecido por um enorme portão de madeira e estacas pontiagudas. Isso sem contar os guardas violentos, treinados à exaustão para repelirem eventual investida da macacada.

Mas, por que todos tinham receio da aproximação dos primatas? Simples, havia uma construção, mais ao fundo, onde eles armazenavam todos os alimentos e que também servia de berçário para algumas espécies. Os grandes macacos, gorilas, chimpanzés e também os babuínos, os mandris e outros símios eram onívoros e sempre tentavam invadir a fortaleza para saquear toda a despensa e também devorar os vários filhotes indefesos que ficavam no aposento. Daí o medo de um ataque repentino.

Todas as investidas dos exércitos de macacos haviam sido repelidas ferozmente pelos animais mais poderosos. As baixas entre os primatas eram sempre numerosas. Há muito eles não tentavam invadir o lugar e espalhar o clima de terror como queriam.

Aquela tranquilidade por vezes era assustadora.

Certo dia deram por falta de dois velhos felinos, um tigre e um leão quase cego. Todos se empenharam em buscá-los por todos os cantos e recantos do forte. Não lograram êxito. Houve uma consternação muito grande ao imaginarem que os dois poderiam inadvertidamente ter adentrado na densa floresta. Algo no mínimo temerário. Ali era território inimigo, inimigo sem ecrúpulos, sem honra e sedento de sangue.

Numa manhã de novembro, houve um alarme geral e todos os animais foram convocados para irem para a frente da fortaleza. Algo grave acontecera. Há cerca de dez metros do portão principal estavam os corpos destroçados dos dois moradores desaparecidos. Próximo, um grupo de macacos tristes, cansados, estropiados, feridos e atemorizados. Queriam parlamentar. O representante do grupo informou que eles não haviam tocado nos felinos mortos. Foram encontrados naquela situação. Havia algo na floresta, um “Monstro” gigantesco que matava e estraçalhava tudo que encontrava pela frente. A tal criatura também havia aniquilado uma centena dos seus; nem os maiores e mais fortes gorilas foram capazes de impedir-lhe a fúria assassina. Aquele inimigo iria ceifar a vida de tudo e de todos que estivessem no seu caminho. Por isso todos os símios estavam em fuga, mas apesar das desavenças vieram avisá-los do perigo que se aproximava da fortaleza. Dito isso aquele grupamento capenga adentrou na floresta e desapareceu.

Houve um petit comité intenso. As lideranças destacaram alguns animais para as torres de vigia. Incertos, de lá informaram que realmente algo estava acontecendo na mata. Ao longe as árvores balançavam e caiam como se algo enorme as estivessem derrubando. Não havia dúvida, não era fake news, os macacos estavam certos, o “Monstro” era real! Estava há alguns quilômetros à frente e vinha com tudo. A ordem era que todos aqueles que pudessem combater de alguma forma guarnecessem o portão principal. Nunca que o “Monstro”, ou fosse o que fosse suplantaria o poderio enfeixado em tantas presas pontiagudas, garras afiadas, chifres duros e pontudos, coices violentos, veneno mortal, e incomensurável força paquidérmica. A missão era ficar de prontidão, firmes, inabaláveis. O "Monstro" iria sentir a força do golpe dos verdadeiros combatentes da justiça e da virtude! Que viesse com tudo e fosse o que Deus quisesse!

E nessa vigília permaneceram durante dias. O “ Monstro” estava cada vez mais próximo, principalmente à noite as árvores pareciam que eram tombadas em sequência, seguidas de urros arrepiantes. Imaginaram que naquelas horas todos os macacos já haviam sido exterminados.

No quinto dia as árvores não mais estavam sendo arrancadas, nem mesmo agitadas. Nem um pio vinha da mata. Todos suspiraram aliviados. Certamente o “Monstro” não era burro. Percebera a tempo que enfrentar uma quantidade tão grande e avassaladora de animais decididos a dar a vida pela causa seria suicídio. Agora era relaxar e comemorar a volta à normalidade. Nada, nadinha de nada do “Monstro”.

No entanto, quando todos deram por si, tiveram uma desagradável surpresa. As portas, janelas e grades da “despensa-berçário” estavam rompidas. Não havia mais sequer uma fruta, alfafa, um farelo de pão ou mesmo um único grão de cevada; e o pior, os filhotes indefesos haviam desaparecidos. Seguiram um rastro sanguinolento e encontraram há poucos metros das paliçadas laterais restos mortais das crias que não foram levadas pelos salteadores.

A dor e uma tristeza sem fim se abateu sobre aquela sociedade. Todos haviam se focado na ameaça ilusória de um monstro irreal alardeado pelo verdadeiro “Monstro” que fugira para longe com os bens e tesouros mais preciosos dos animais estúpidos.

Adolfo Kaleb
Enviado por Adolfo Kaleb em 02/01/2023
Reeditado em 08/02/2024
Código do texto: T7685113
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