Muture-ta

Trata-se de uma história antiga, sem registros, mas que merece ser contada.

Aconteceu nos idos de 1.530, do Brasil império.

Muture-ta era uma jovem mestiça, filha de uma nativa e um serviçal da coroa portuguesa. Crescera em meio à sociedade que se formava; absorvendo seus valores, hábitos e costumes.

Na infância tratavam-na com desprezo, por conta da raça mesclada. Na puberdade, à medida que seu corpo ganhava curvas sinuosas, era mais cobiçada. No esplendor de seus 25 anos, detinha privilegiada beleza e graças a esses atributos, se tornara a messalina mais desejada pelos fidalgos, nobres, empresários, políticos e aristocratas da época. Na boca das pessoas, seu nome parecia trava-línguas. Por esse motivo, alcunharam-na: “Mutreta”.

Em conversa íntima com seus admiradores, soube que os dirigentes da colônia promoveram concurso para empossar pessoa em cargo perpétuo, de grandioso prestígio na esfera da legalidade. As exigências não eram muitas, bastava possuir valores nobres como: conduta reta, caráter idôneo e moral ilibada. Seus olhos faiscaram, entusiasmou-se com a possibilidade de ocupar o posto, mas a convicção de que não possuía os predicados necessários, refreou suas expectativas.

Usando o charme que lhe era peculiar, ela aproveitava os momentos de alcova com seus letrados “amigos”, para persuadi-los a elaborar sua carta de apresentação. Confidenciava-lhes o fervoroso desejo de concorrer àquela vaga.

“Será que não se enxerga!?”, “não tem noção!”, “despudorada como é, em um cargo dessa envergadura!?”... Mesmo denegrindo-a pelas costas, alguns de seus clientes contribuíram na construção de seu currículo, fazendo uso daquilo que melhor dominavam: as palavras. Palpites de uns, sugestões de outros, ajustes aqui, aprimoramentos acolá... Informaram-na que seu nome seria mudado, usariam outro, mais condizente com o posto. Enfim, o fraudulento documento ficara pronto. Irretocável. Sublime. Impecável.

Na data marcada, dezenas de candidatos (as) participaram da disputa, cada qual com anotações mais invejáveis que a do outro, mas uma das cartas em especial chamou a atenção dos avaliadores, que se reuniram entorno do documento, esmiuçando suas idéias, diretrizes e objetivos. Integridade, sensatez, moral e ética também abundavam naquelas linhas.

Sobre uma rústica mesa que ocupava o centro do recinto, repousavam três objetos distintos: Uma tira de pano, uma espada e uma antiga balança.

O evento contava ainda com uma segunda disputa, que complementava a primeira. O vencedor posaria para que renomados pintores e retratistas transpusessem sua imagem para a tela ou papel. Posteriormente, os retratos seriam avaliados pelas mesmas pessoas que se debruçaram sobre os currículos. Nessa segunda etapa, o critério de escolha era bastante obvio e simples. Venceria a pintura ou desenho mais fidedigno com a imagem do vencedor.

Depois de alguns minutos em profunda confabulação entre os membros do colegiado, um representante anunciou a ficha vencedora, levantando-a para o alto, sobre sua cabeça.

– Este conselho encontrou a pessoa possuidora dos requisitos que o posto exige – disse um velho político, trazendo o documento para junto de seu rosto, procurando com os olhos o nome do vencedor. Encontrou! – trata-se de uma mulher – disse ele com altivez vocal – A vencedora é a senhorita... Justiça! – Decretou.

O som das palmas reverberou pelo recinto, seguido de ruidoso burburinho. A mestiça subiu no pequeno palanque. Entregaram-lhe a balança e um das mãos, a espada na outra e em quanto vendavam seus olhos com a tira de pano, informavam-lhe que fizesse pose e permanecesse imóvel por alguns minutos.

Enquanto os retratistas realizam a segunda parte do evento, os homens que contribuíram com sua vitória, brindavam. Um deles desabafou incrédulo.

– Não imaginei que ela pudesse vencer.

Outro, com charuto entre os roliços dedos, enfiado em pomposas roupas, retrucou com sorriso matreiro no rosto.

– Talvez ela possa nos ser útil em algum momento!

E foi assim que a prostituta conhecida como “mutreta” ganhou o status de “justiça” no Brasil.

Há relatos que, até os dias atuais, quando alguma pessoa de grande poder, influencia ou prestígio lhe pede ajuda, ela se curva diante dessa pessoa e atende o seu pedido. Como forma de agradecimento pelo cargo indevidamente ocupado.