O passarinho que pousou em minha cabeça.

Disse o poeta das coisas simples, o nosso imortal Manoel de Barros, que noventa por cento do que escrevia era invenção. Só dez por cento era mentira.

O que aqui vos contarei tem um terço de mentira. Os outros dois, de imaginação.

No final da tarde de uma sexta-feira saí com minhas meninas para caminhar no parque. Elas queriam correr, brincar, ficar com outros amigos.

Sabedor disso, trouxe comigo um livro e me sentei em um banco protegido por uma sombra.

Quando minhas meninas pediam minha atenção, parava e dava a elas a atenção que me requeriam. Quando não, buscava ler as páginas que comigo carregava.

E foi em um momento de leitura que me ocorreu a razão de existir dessa história que vos conto:

Um passarinho pousou na minha cabeça.

Você poderia me perguntar: Como eu sabia que era um passarinho? E eu te respondo. Já havia nele reparado. Ele estava passeando ao meu entorno. Hora parou perto dos meus pés, hora na minha lateral... Estava desfilando ao meu redor como quem deseja chamar atenção.

Talvez não tenha lhe observado da forma que gostaria ou merecia e, então, sentindo-se depreciado, desrespeitado, ousou pousar na minha cabeça.

A imponência no bater da suas asas, assim como sua chegada, pouso e decolagem me assustou.

Nunca me esqueci do que o professor Rubem Alves nos contou, sua triste constatação: que os passarinhos não confiam em nós, humanos.

Portanto, muito embora me envergonhe, há razão e fundamento no meu assustar.

Mas o que sei, com toda certeza, é que um passarinho pousou na minha cabeça.

Curioso é como me senti ao vê-lo indo embora, o efeito que causou sobre mim. Reparei que em nenhum momento o passarinho deu qualquer traço de que olharia para trás. Nem uma despedida ou aviso, nem um adeus.

Simplesmente foi embora, num vôo rápido, difícil de acompanhar com os olhos.

O toque do passarinho me fez lembrar de quando eu era criança. Ainda que, diferentemente do passarinho e suas asas, mesmo assim, voava.

Voava pelo chão de terra do meu bairro, por sobre seus córregos sem saneamento básico, pela longa estrada até a escola, pelos núcleos de assistência e apoio sociais, pelos campos de futebol improvisados.

Voava para o colo e abrigo de minha cansada passarinha mãe. Para as asas feridas de tanto trabalhar do meu passarinho pai. Para levar alegria a uma tão difícil vida de minha passarinha avó. Para o amor e abraço da mais bela passarinha que encontrei pela jornada, que morava no mais alto monte, na mais bela vista, no alto da boa vista.

Voava pelas casas dos amigos de cujas mães com tanto amor me recebiam, que me serviam carinho e suas maravilhosas comidas.

Voava num piscar de olhos e sem relação de tempo. Vivia o momento e morava na eternidade.

E como o passarinho que pousou em minha cabeça e foi embora, esse tempo, esse tão maravilhoso tempo, passou.

Não houve notificação para despedida, para a última celebração. O passarinho se foi.

Sabe, eu percebi que no mais íntimo do meu ser ainda reside o passarinho, o passarinho que fui, sem pedigree, sem raça, sem ascendentes reais, o mais simples entre todos da espécie passarinho.

Um passarinho que ainda deseja voar, que ama a companhia dos seus amigos, de dividir o pouco que tem vivenciando o milagre da multiplicação.

De andar pelos campos de terra vermelha, pelas regiões periféricas, de ouvir e aprender outros cantos, conhecer novos lugares.

Um passarinho que odeia a gaiola das convenções sociais, da frivolidade das grifes, das inverdades estéticas contidas nas mídias sociais, da propagação de todo tipo de baixeza e seu processo de normalização.

Esse passarinho foi sufocado por tudo isso, pela falácia de que a gaiola é mais segura e melhor que a liberdade.

De fato, dentro da gaiola é improvável se perder. Todavia, quanto ao se encontrar, encontrar a si mesmo, isso também o será.

O passarinho que vive em mim segue reunindo forças, segue recebendo alimento para que possa, ainda que só mais uma vez, bater asas novamente.

Desta vez, não de fora para dentro, mas de dentro para fora, convidando e clamando por outros passarinhos que estão por aí cansados da gaiola, privados de cantar, de voar, para que revolucionem o seu pensar.

Na torcida em que façamos as pazes, de uma vez por todas e para sempre, nós e os passarinhos.

Nicollas Madeira
Enviado por Nicollas Madeira em 30/04/2023
Código do texto: T7776753
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