A dúvida filosófica do pé

E assim, de supetão, o pé direito estacou, obrigando seu irmão gêmeo a parar também.

- Ué, que foi? Machucou? - perguntou o esquerdo.

- Não.

- Então anda, mano!

Mas nem sob a ordem expressa o direito se mexeu.

- Cara, a gente vai se atrasar! Anda, anda!

- Mas... - e a pausa do pé direito tinha um toque profundo lá da cartilagem - ... se atrasar pra que mesmo?

- Ora! Pra quê! Pra... Pra aquilo lá!

O pé esquerdo tinha pressa, mas não tinha muita noção do motivo. A pressa se bastava, assim como o movimento; o resto eram detalhes desnecessários.

Contudo, o pé direito hoje estava para detalhes.

- Sei lá. Não é estranho isso? Ir assim, correndo, sempre correndo, no passo dum relógio que a gente nunca viu. Você já viu, por acaso?

- Que mané ver relógio, cara! Anda!

Mas nada do direito andar... Acordara meio gozado naquele dia. Como se tivesse esquecido algo num bolso da calça não vestida, mas, ora, sequer usava calças.

- E se a gente, tipo assim, só ficasse por aqui, curtindo a coisa toda? Essas pedras! - exclamou de súbito! - Já reparou como elas fazem uma pressãozinha maneira na nossa sola?

- Meu Deus do céu! Cheirou talco foi? Relógio! Pedra!?

Irritado como nos tempos da unha encravada, o pé esquerdo forçou tanto que o direito teve de acompanhar; ou isso ou tropeçavam. E mesmo a contragosto, uma vez em movimento não tinha mais como parar. E lá foram os dois, aos passos apressados de sempre.

Quando chegaram na esquina, o pé direito pensou em uma última tentativa, jogar uma última dúvida, porém o esquerdo sentiu a rebeldia e logo atalhou:

- E nem pense em parar!

E não parou mesmo. Não pararam. Tinham pressa e se afastavam - dois robozinhos - do centro do universo que por pouco, muito pouco mesmo, não alcançaram.