O Corvo/Gaivota

Era uma vez um corvo que quis viajar o mundo,

quis conhecer novos horizontes e se apaixonar,

desejava voar para a região costeira e ver o mar,

sentir seu pequeno coração pulsar no ritmo das ondas,

ver as cores ao invés da matriz cinza que o acompanhava,

mas seu formato, suas penas negras, sua lenda de sombras,

arauto da morte, gralha de espantalho, personagem de Poe,

assustava as pessoas, as fazia serem hostis e defensivas,

não encontrava aceitação, não era bem recebido,

o queriam bem longe, atirando pedras contra si,

buscando resolver esse dilema tão triste o corvo pensou,

pensou, pensou e pensou até ter uma ideia,

disfarçar-se de gaivota, pois tinha o dom da metamorfose,

e logo, sentiu a transformação ocorrer alterando sua forma,

penas alvas, asas compridas e estreitas, cauda curta e bico forte,

assim se viu pela primeira vez no espelho d'água após uma chuva,

mil coisas aconteciam em sua mente, sorria por dentro,

sentia-se tão livre, tão leve, tão poderoso, tão encantador,

bateu asas rumo ao mar, o Oceano que águas e possibilidades,

um destino de novas provas, experiências e memórias,

deleitou cada olhar, degustou cada sabor, viveu cada encontro,

sentiu-se tão melhor, sem dor, sem melancolias,

recebeu carinhos, declarações amorosas, promessas,

retribuindo cada gesto, cada sonho, cada interação,

mas houveram desencontros, despedidas não realizadas,

não podia se revelar na essência da realidade, seu eu era invisível,

pulou de árvore em árvore, de bosque em bosque, sem solução,

como gaivota era tudo o que nunca fora como corvo,

como corvo era o que nunca seria como gaivota,

nessa dicotomia antagônica de sentidos,

tornou-se ilusão, mistério, sedução, inverdade,

embora tenha sido muito amado e tenha amado tanto,

tudo era efêmero, fugaz, poeira que se desfazia ao vento,

seu contorno não durava ao subir da lua no céu de estrelas,

todos os infinitos eram finitos de ressentimentos,

perdeu seu próprio sentido de identidade,

não sabia mais quem era no final de cada história,

era um corvo sonhando ser uma gaivota que sonhava ser um corvo?

era uma gaivota que sonhava ser um corvo sonhando ser uma gaivota?

todas as suas histórias eram tristes, eram invenções, eram solitárias,

era culpado, era um farsante, era um burlão, era um fingidor, um ator,

quando suas penas afinal se metamorfosearam e o viram como corvo,

algumas incrédulas viraram o olhar, não o queriam enxergar assim,

não o ver transformado em si mesmo não encerrava a história,

não havia um fim, uma explicação, uma desculpa, uma nova chance,

imperdoável, mágoa inesquecível, dor descomunal, desconfiança total,

mas sem a imagem do real, sem a face da verdade, sem a aparência rejeitada,

repulsiva, desgostosa, mal quista, amaldiçoada, odiada, renegada,

era um corvo, afinal, não era uma gaivota, um arremedo mal feito,

no teatro da encenação seu texto ensaiado não durava muito,

desmascarado, tornava-se a representação do Fantasma da Ópera,

aquele a quem a protagonista não foi capaz de amar, trocando-o pelo belo,

seu rosto deformado, sua angústia pelo amor não retribuído o enlouqueceu,

a insanidade dos abandonados, daqueles que jamais são o suficiente,

desse modo o corvo entendeu seu lugar na existência e abandonou o manto de gaivota...