MENINO COM CARRINHO

In memoriam Dimitri.

Na rua dom José de Barros, no centro de São Paulo, não trafegam veículos, é intensamente ocupada por pedestres durante todo o dia. Ela é povoada de lojas, barracas, quiosques e quaisquer outras locações que permitam a exposição e venda de produtos. Estes também são os mais diversos, Há utilidades domésticas e adereços de mágica, aparelhos eletrônicos e comida feita na hora.

No horário do almoço é quando a rua ganha um ritmo frenético. Os edifícios de escritórios jorram na rua multidão de funcionários ávidos de comida e de liberdade entre dois períodos de escravidão. O sol de verão desértico ameaça fritar os passeantes desprevenidos.

Nesta hora é que de forma insólita aparece a figurinha deslocada do contexto citadino: um garoto negro de aproximadamente três anos, sozinho, anda tranquilamente, ignorando a multidão apressada. Numa das mãos um barbante, no extremo deste, um carrinho de madeira. Concentrado em sua atividade, segue reto um itinerário que só ele conhece.

A figura chama a atenção dos pedestres que olham, procuram algum adulto próximo dela, fazem comentários inaudíveis e seguem seu caminho, coincidente ou oposto ao do garoto. O velho para e contempla a cena como se fosse um espetáculo maravilhoso. Com certeza lhe chama a atenção o fato dessa cena tão familiar e corriqueira numa rua da periferia, estar se dando em pleno centro da cidade mais populosa da América do Sul.

Lembra-se de seu filho, há muito tempo, enfileirando carrinhos numa ladeira criada por uma tábua e uma caixa de sapatos e lhe dando instruções de como se comportar "quando você quer brincar de carrinhos".

O velho também está intrigado pela ausência de um acompanhante da criança. Enquanto isso o garoto segue em frente, fiel ao destino do seu veículo, condutor consciente, deve levá-lo sem percalços até o lugar designado por alguma autoridade invisível. Portanto, vez por outra para e observa o carrinho para se certificar de que tudo está em ordem. Feito isto, continua com a calma própria que só dá a consciência de estar fazendo sua tarefa corretamente. O silêncio do menino cria um vácuo na sordidez escandalosa do meio-dia paulistano.

Finalmente o velho percebe na entrada de uma pequena loja uma mulher magra parada, observando o menino. Com certeza é a mãe dele. Só esta relação pode explicar a paciência com que aguarda o andar parcimonioso do pequeno condutor. Ele a olha como se estivesse comprovando a existência de sinais de trânsito no seu caminho. Não muda de rumo nem aumenta a velocidade. O velho observa o menino. Não quer ver nenhum gesto de impaciência de quem quer que seja. Quer guardar na memória a atitude digna e responsável deste garoto que em silêncio dirige seu veículo pelos recantos do seu país mágico, indiferente à turbamulta da cidade.